Opinião

A primazia da solução litigiosa sobre a amigável no Direito Tributário

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  • é especialista em Direito do Estado Público Processual Civil Constitucional e Tributário MBA BI & Data Science (Ibmec) mestrando em Direito Tributário (FGV-SP) procurador da Fazenda Nacional e professor de pós-graduação em Direito Tributário.

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30 de novembro de 2024, 6h38

O Brasil possui histórico firme contra a exigência de “prévio esgotamento da via administrativa” e em favor da inafastabilidade da jurisdição, significando não ser necessário buscar solução amigável com a administração antes de litigar perante um juiz.

A única exceção expressa na Constituição está em seu artigo 217, §1º [1], que trata da Justiça Desportiva.

Mas, mesmo sem ressalva constitucional, o habeas data também foi condicionado, pelo artigo 8º da Lei nº 9.507/97 [2], à prévia recusa ou demora administrativa para ser impetrado, dispositivo este referendado pela Súmula nº 02 do STJ [3], de 1990. A explicação é simples.

Salvo se houver um pedido, a administração não tem meios de saber que o cidadão deseja obter alguma informação, estando, por isso, incapacitada de tomar qualquer providência, seja no sentido desejado pelo cidadão ou contra os seus interesses, a ensejar, neste último caso, a necessidade de intervenção do Judiciário

Por idêntica razão se passou a exigir prévio requerimento administrativo para as demandas judiciais buscando benefícios previdenciários. Como poderia o INSS, de outra forma, saber, por exemplo, que o segurado está doente e necessita de auxílio? Esse posicionamento foi construído no âmbito dos JEFs e alcançou a estatura de Tema nº 350 de Repercussão Geral do STF [4].

Posteriormente, em maio de 2022, a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais, julgando o Pedido de Uniformização de Lei nº 0524953-11.2020.4.05.8013, afirmou que “na seara tributária, é possível a exigência de prévio requerimento administrativo quando a Fazenda Pública não se opõe, em tese, à pretensão do contribuinte”. O contribuinte havia errado o preenchimento da DIRPF e, ao invés de buscar a correção administrativa, pediu judicialmente a condenação da União.

Assim como a lei é desatendida quando o segurado deixa de receber benefício previdenciário a que faz jus, é igualmente indesejado que um débito tributário seja cobrado do contribuinte sem amparo na legislação. Mas, em ambos os casos o Juizado Especial entendeu inexistir necessidade de ação judicial, pois a ilegalidade não decorria de um ato da administração e nada indicava que ela se recusaria a proceder à correção caso fosse provocada.

aperto de mãos entre homem e mulher sentados frente a frente em uma mesa de escritório

Nesta linha de ideias, a existência de uma disposição legal descumprida não acarreta, necessariamente, a possibilidade de busca do Judiciário, pois, como visto, a ilegalidade pode ter sido causada pelo próprio cidadão, ao deixar de solicitar o benefício previdenciário previsto em Lei ou ao preencher equivocadamente sua declaração.

Entretanto, no final de 2022 o STJ destoou desta inclinação no REsp 1.753.006 [5], que também tratava de erro no preenchimento da declaração pelo contribuinte. Embora a ilegalidade não decorresse de um ato da administração e pudesse ser corrigida administrativamente, aquele tribunal entendeu que exigir tentativa prévia de solução amigável desrespeitaria o direito de acesso à Justiça previsto no artigo 5º, XXXV, da Constituição.

Aqui é necessário distinguir o “prévio esgotamento da via administrativa” e o “prévio requerimento administrativo”.

Exigir o “prévio esgotamento da via administrativa” significa colocar como condição de acesso ao Judiciário a utilização de todos os meios administrativos disponíveis para solução amigável do litígio com o ente público.

Diversamente, o “prévio requerimento administrativo” é apenas o primeiro contato do cidadão com a administração, em busca de um determinado interesse. A sua eventual negativa é que ocasionará a lide. Sem ele, não há o que possa ser desatendido pela administração em desfavor do cidadão, a ensejar intervenção judicial.

Assim, nos casos em que a administração não tem meios de agir sem ser provocada, somente depois de realizado algum requerimento administrativo, e tendo sido ele negado, é que se pode falar de exigir o prévio esgotamento da via administrativa para acesso ao Judiciário.

Entendimento do STF no RE 1.355.208

Feita a distinção, contata-se que, no Brasil, ressalvado o já mencionado caso da Justiça Desportiva, não há hipótese de exigência do “prévio esgotamento da via administrativa”. No máximo se exige o “prévio requerimento administrativo”.

Ao menos foi assim até o final de 2023, quando o STF, durante o julgamento do RE nº 1.355.208 [6], em Repercussão Geral afirmou que a administração não poderia mais cobrar judicialmente tributo inadimplido antes de esgotar a via administrativa, inclusive mediante tentativa de conciliação.

Note-se como aqui o caso é realmente de “esgotamento da via administrativa”, pois, por ocasião do ajuizamento da execução fiscal, o “prévio requerimento administrativo” de pagamento do tributo já foi feito pela notificação de cobrança enviada pela Receita Federal, ou estava dispensado em razão do tributo decorrer da própria declaração do contribuinte.

É cedo para saber se o entendimento se aplica unicamente à administração ou se de alguma forma vai se estender aos contribuintes, ainda que apenas para exigir “prévio requerimento administrativo” nos casos de inexistência de ato lesivo praticado pelo poder público, a exemplo da ocorrência de erro no preenchimento da declaração.

De qualquer forma, importa lembrar que o CPC, em seu artigo 3º, §2º e §3º[7], manda que o Estado promova e que os juízes incentivem, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos, inclusive no curso do processo judicial.

O “prévio requerimento administrativo” para os benefícios previdenciários e nas demandas tributárias, bem como o recente entendimento do STF acerca do ajuizamento das execuções fiscais, vão neste sentido, fomentando a solução consensual através do incentivo ao diálogo na via administrativa.

Entretanto, em sentido diverso, o Judiciário segue admitindo ações cautelares dos contribuintes, para garantia de débitos ainda não cobrados em execução fiscal, embora a PGFN já tenha anunciado que aceita receber bens administrativamente, na forma da Portaria PGFN nº 33/2018, artigos 8º a 14[8].

Semelhantemente, o artigo 38, parágrafo único, da Lei nº 6.830/80 (LEF) [9], ratificado pela Súmula nº 01 do Carf [10], impede a tentativa de solução administrativa dos conflitos fiscais na pendência de discussão judicial.

Mesmo depois de todas as instâncias desde a Delegacia Regional de Julgamento da Receita Federal, até a Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf, passando por perícias, sustentações orais, embargos de declaração e órgãos paritários, caso o contribuinte, momentos antes do trânsito em julgado, ajuíze, digamos, um mandado de segurança, toda discussão administrativa deverá ser desconsiderada, por razões de economicidade e de prevalência dos atos jurisdicionais, segundo a avaliação do STF no RE nº 233.582 (2007) [11].

Spacca

Sujeitando-se a este entendimento, a Portaria PGFN nº 948/2017 (PARR), em seu artigo 6º, §5º [12], e também a já mencionada Portaria PGFN nº 33/2018, no artigo 17, §5º [13] (PRDI), replicaram o texto da LEF, reconhecendo a necessidade de extinguir o diálogo administrativo caso o contribuinte busque ou já tenha buscado o Judiciário mediante, por exemplo, exceção de pré-executividade, embargos à execução fiscal ou ação anulatória.

Essas parecem ser oportunidades perdidas de avançar no sentido da desjudicialização e da solução harmônica de conflitos, pois retira a possibilidade do diálogo consensual nas ocasiões em que o Judiciário já tenha sido acionado, a despeito do Código de Processo Civil determinar o estímulo à consensualidade “inclusive no curso do processo judicial”, conforme artigo 3º, §3º, já antes mencionado.

Tanto nos casos envolvendo pedidos de benefícios previdenciários junto ao INSS quanto no contexto de ajuizamento de execuções fiscais, o STF estabeleceu a possibilidade de suspensão do andamento processual para oportunizar o contato administrativo, o que poderia também ser estendido aos pedidos administrativos fiscais formulados perante a Receita Federal, o Carf ou a Procuradoria da Fazenda Nacional.

 


[1] Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.

[2] Art. 8° A petição inicial, que deverá preencher os requisitos dos arts. 282 a 285 do Código de Processo Civil, será apresentada em duas vias, e os documentos que instruírem a primeira serão reproduzidos por cópia na segunda. Parágrafo único. A petição inicial deverá ser instruída com prova: I – da recusa ao acesso às informações ou do decurso de mais de dez dias sem decisão;

[3] Não cabe o habeas data (CF, art. 5.0., LXXII, letra a) se não houve recusa de informações por parte da autoridade administrativa.

[4] I – A concessão de benefícios previdenciários depende de requerimento do interessado, não se caracterizando ameaça ou lesão a direito antes de sua apreciação e indeferimento pelo INSS, ou se excedido o prazo legal para sua análise. (…)

[5] PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. DECLARAÇÃO DE CRÉDITO TRIBUTÁRIO FEDERAL. ERRO MATERIAL. ANULAÇÃO DE DÉBITO. PRÉVIO REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO. DESNECESSIDADE. INTERESSE DE AGIR. EXISTÊNCIA. 1. Em razão do direito fundamental previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição, em regra, o acesso à justiça independe de prévio requerimento administrativo. 2. Na espécie, a parte demandante ajuizou ação ordinária objetivando a anulação de débito fiscal, fundamentando seu pleito na ocorrência de erro, por ela perpetrado, no preenchimento da DCTF, tendo a Corte de origem entendido ausente o interesse de agir, concluindo que a pretensão poderia ter sido dirimida na via administrativa. 3. O raciocínio desenvolvido na instância de origem até poderia ser correto, caso o desejo do autor se limitasse a retificar a declaração, já que a satisfação dessa pretensão pressuporia a provocação do titular do direito, isto é, se se tratasse apenas do direito potestativo de corrigir a DCTF, seria realmente questionável a necessidade de ação judicial, notadamente por restar dúvida sobre a existência de lesão ou ameaça de lesão a direito da parte autora. 4. Hipótese, porém, em que o contribuinte não corrigiu a declaração, o tributo foi lançado e passou a ser exigido, de modo que a pretensão não era de retificar o documento, mas de anular o crédito tributário exigível. 5. Evidencia-se, no último caso, que, no mínimo, havia ameaça a direito (patrimonial) em face da possibilidade de cobrança do tributo, sendo plenamente aplicável o direito fundamental previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição; em razão disso, dispensável o prévio requerimento administrativo. 6. Recurso especial provido. (REsp n. 1.753.006/SP, relator ministro Gurgel de Faria, 1ª Turma, julgado em 15/9/2022, DJe de 23/9/2022.)

[6] 1. É legítima a extinção de execução fiscal de baixo valor pela ausência de interesse de agir tendo em vista o princípio constitucional da eficiência administrativa, respeitada a competência constitucional de cada ente federado. 2. O ajuizamento da execução fiscal dependerá da prévia adoção das seguintes providências: a) tentativa de conciliação ou adoção de solução administrativa; e b) protesto do título, salvo por motivo de eficiência administrativa, comprovando-se a inadequação da medida. 3. O trâmite de ações de execução fiscal não impede os entes federados de pedirem a suspensão do processo para a adoção das medidas previstas no item 2, devendo, nesse caso, o juiz ser comunicado do prazo para as providências cabíveis.

[7] § 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos. § 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.

[8] Art. 8º. Notificado para pagamento do débito inscrito em dívida ativa, o devedor poderá antecipar a oferta de garantia em execução fiscal. (…)

[9] Parágrafo Único – A propositura, pelo contribuinte, da ação prevista neste artigo importa em renúncia ao poder de recorrer na esfera administrativa e desistência do recurso acaso interposto.

[10] Importa renúncia às instâncias administrativas a propositura pelo sujeito passivo de ação judicial por qualquer modalidade processual, antes ou depois do lançamento de ofício, com o mesmo objeto do processo administrativo, sendo cabível apenas a apreciação, pelo órgão de julgamento administrativo, de matéria distinta da constante do processo judicial.

[11] EMENTA: CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL TRIBUTÁRIO. RECURSO ADMINISTRATIVO DESTINADO À DISCUSSÃO DA VALIDADE DE DÍVIDA ATIVA DA FAZENDA PÚBLICA. PREJUDICIALIDADE EM RAZÃO DO AJUIZAMENTO DE AÇÃO QUE TAMBÉM TENHA POR OBJETIVO DISCUTIR A VALIDADE DO MESMO CRÉDITO. ART. 38, PAR. ÚN., DA LEI 6.830/1980. O direito constitucional de petição e o princípio da legalidade não implicam a necessidade de esgotamento da via administrativa para discussão judicial da validade de crédito inscrito em Dívida Ativa da Fazenda Pública. É constitucional o art. 38, par. ún., da Lei 6.830/1980 (Lei da Execução Fiscal – LEF), que dispõe que “a propositura, pelo contribuinte, da ação prevista neste artigo [ações destinadas à discussão judicial da validade de crédito inscrito em dívida ativa] importa em renúncia ao poder de recorrer na esfera administrativa e desistência do recurso acaso interposto”. Recurso extraordinário conhecido, mas ao qual se nega provimento.

[12] § 5º Importará renúncia à instância recursal e o não conhecimento do recurso eventualmente interposto, a propositura, pelo interessado, de qualquer ação judicial cujo objeto coincida total ou parcialmente com o do PARR.

[13] § 5º. Importa renúncia ao direito de revisão administrativa a propositura, pelo contribuinte, de qualquer ação ou exceção cujo objeto seja idêntico ao do pedido.

Autores

  • é especialista em Direito do Estado, Público, Processual Civil, Constitucional e Tributário, MBA BI & Data Science (Ibmec), mestrando em Direito Tributário (FGV-SP), procurador da Fazenda Nacional e professor de pós-graduação em Direito Tributário.

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