Opinião

O miado do leão: golpe tentado, crime consumado e argumento de algibeira

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29 de novembro de 2024, 6h03

Dez entre dez brasileiros começaram a discutir as ações descritas no Relatório do Inquérito Policial Federal nº 2021.0044972 — sim, aquele mesmo com quase 900 páginas e que redundou no indiciamento de generais, oficiais do Exército, políticos e do ex-presidente Bolsonaro. Quem não tem formação jurídica se tornou “expert”, cada um tem sua opinião, mas o pior é que agentes políticos passaram a incorporar discursos cada qual favorável aos seus interesses. Ocorre que o conteúdo jurídico não tem essa instabilidade que se pretende reconhecer. Os tipos penais são muito claros, descritos na Lei 14.197/2021 a saber:

“Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.”

Ou ainda:

“Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência.”

Estamos tratando dos crimes chamados “lesa pátria” (tal como o revogado artigo 17 da Lei de Segurança Nacional (Tentar mudar, com o emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito).

Os artigos 359 “L” e “M” sucedem justamente o artigo 17 da Lei de Segurança Nacional, de modo que possuem essa natureza e são punidos justamente quando apenas tentados. Os crimes “lesa pátria” são aqueles praticados contra a segurança jurídica das instituições democráticas. Como não existe “tentativa da tentativa”, ou o crime está configurado ou não.

Há uma peculiaridade nesses dois tipos penais, que é a referência ao uso de violência ou grave ameaça para “tentar depor” ou “tentar abolir”. É que não existe tentativa de deposição ou de abolição do governo ou do Estado democrático de Direito sem violência ou grave ameaça, a abolição ou deposição estão implicitamente contidas nestes dois verbos.

A razão é simples: se o governo é eleito e empossado de acordo com o regime eleitoral, não poderá ser deposto senão com o uso de violência ou grave ameaça, já que não existe previsão constitucional de deposição. Qualquer deposição necessariamente só poderia ser executada com recursos contra-legem, ou seja, com violência ou grave ameaça. Da mesma forma, não existe abolição sem o uso da coação moral ou da força, de forma que a própria ação do verbete indica a necessidade do exercício da força. A única exceção possível seria a apresentação de modificação constitucional ao Congresso, a qual todavia, não poderia ser apreciada por confrontar cláusulas pétreas.

Resumindo, a salvaguarda se dá unicamente para aqueles que, pretendendo uma ruptura do Estado Democrático, apresentem projetos para apreciação legislativa, mesmo que esta seja de evidente rejeição. É a hipótese dos grupos monarquistas, por exemplo, cujo objetivo seria a restauração do regime monárquico brasileiro. Proposta pode ser apresentada nesse sentido, sem que haja risco ou possibilidade de criminalização. Ou a proposta da criação do cargo de presidente da República vitalício — tal projeto pode ser apresentado, sem que configure a prática de crime, mas, se sua aprovação é possível ou não, são outros quinhentos.

Outra questão é o rompimento da barreira da cogitação para a inserção no ambiente da tentativa. Os crimes “lesa pátria”, por serem previstos apenas na modalidade tentada, são de simples atividade, ou mera conduta, e não exigem qualquer resultado naturalístico, nenhuma modificação no mundo físico. Obviamente, há resultado jurídico, o que é outra questão, mas resultado físico não há.

Desta forma, não há necessidade de que bombas tenham sido explodidas, carros incendiados, tiros desfechados ou manobras militares executadas. Basta, tão somente, que havendo decisão neste sentido haja manifestação da vontade criminosa. A pergunta fundamental a ser feita é, portanto, verificar se os agentes criminosos manifestaram sua vontade nesse sentido, através do que se chama “atos exteriores de vontade”, e se o vínculo para a obtenção do “tentar depor” ou “tentar abolir” foi externalizado, caracterizando o comportamento criminoso.

À semelhança do crime de formação de bando ou quadrilha, por exemplo, há necessidade de que exista a finalidade específica de agir nos termos criminais e estabilidade ou permanência desta intenção, independentemente de ter sido executada ou não.

Mesmas colocações que se faz em relação ao delito de associação criminosa, em que se exige também um número maior de participantes, além de hierarquia e divisão de tarefas. E no apontado relatório da Polícia Federal pululam atos exteriores de vontade gerando ações de caráter naturalístico (físico) tanto quanto grãos de milho em óleo quente.

Muito mais que uma simples cogitação

As comunicação apreendidas contêm diálogos claríssimos entre os membros da associação criminosa apontando-se a execução de atos de cooptação de outros militares, planejamento de pelo menos um homicídio, disposição de material de guerra para a execução da guerra (caso da Marinha que colocou tanques à disposição do golpe), ações políticas e midiáticas para deslegitimar o processo democrático e assim justificar o golpe, manipulação de atos públicos de apoio ao golpe de Estado, aqui falando da manifestações defronte aos quartéis, hostilização pública de militares contrários ao golpe, elaboração de minutas do golpe com a previsão das formalidades legais necessárias para a substituição dos Poderes Republicanos, reuniões de planejamento, tudo feito por oficiais generais e de alto escalão.

Nestas comunicações se fala claramente em contagem de adesões ao golpe, menções expressas a “op psico” (operações psicológicas), inclusive com a menção expressa à crítica ao uso das urnas eletrônicas como foco de manutenção da mobilização da massa.

Foram apreendidos, ainda, dados do planejamento subdivididos em ideias força, estado final desejado e centro de gravidade, incluindo-se aí a criação de um Gabinete de Crise (criada por eles mesmos), ações estratégicas no campo informacional. Um elemento a ser destacado neste item é a identificação do centro de gravidade, o principal obstáculo ao êxito do golpe. Tal centro de gravidade seria, justamente, o ministro Alexandre Moraes, do STF, reconhecido como polo de “força, poder e resistência físico-moral”.

A neutralização do ministro pela execução ou prisão se daria no dia 15 de dezembro de 2024, sendo executada por militares das Forças Especiais. O plano tinha até nome e codinomes para os integrantes que usavam telefones específicos entre si. A enumeração ainda iria longe, mas por ora basta para tornar patente que as ações foram muito mais longe do que uma simples cogitação, estão além do simples estado mental ou da predisposição para a prática de uma ato. O que se em vê no relatório da Polícia Federal é a concretização de atos físicos específicos com o intento de criar a progressão que resultaria no golpe de Estado.

Obviamente, ainda, que dentro dessa perspectiva estão fatos mais longínquos no tempo, dentre estes os acampamentos, incentivados pelo golpismo, os tumultos e a tentativa de invasão da sede da Política Federal e os atos de 8 de janeiro de 2023. Fatores que são somados e não excluídos.

A tropa não desfechou o ataque, não atingiu o clímax da empreitada, o ato final não se realizou. A causa foi a resistência de outros oficiais que se negaram a participar e até mesmo registraram que se oporiam a tal desiderato. Mas se o zênite não ocorreu, isto não significa que o crime não tenha ocorrido, tudo porque, conforme o exposto, se trata de crime “lesa pátria”, que prevê em si apenas a tentativa como ato criminoso. O zênite não se torna nadir.

Todo o processo concatenado de atos noticiado no relatório do inquérito policial tipifica a conduta, pouco importando se a ação teve sucesso ou insucesso, se no último momento faltou coragem para o enfrentamento ou não. É fato que houve o conluio, conforme se mostra no relatório, e isso basta para a configuração do delito em sua especialidade e natureza jurídica.

Também não se pode admitir que as ações sejam ditas como fancaria, obra de galhofeiros e muito longe de uma real combinação. Isso porque estamos falando de generais estrelados, oficiais graduados, militares elitizados. Se tais indivíduos podem ser reduzidos a galhofa, então há algo de errado nas Forças Armadas.

Argumento de algibeira

Existem ainda outras ponderações a serem feitas, embora de natureza tangencial. De primeiro, a questão da presidência dos autos pelo ministro Alexandre de Moraes pelo fato de ter sido vítima da ação. É um equívoco, o crime é praticado contra o Estado Democrático de Direito e, sendo este a vítima, não há correspondência entre o bem jurídico tutelado (Estado Democrático) e nenhuma pessoa física. Caso for levada em consideração a mal-sucedida tentativa de morte ou prisão, lembramos que, neste caso, se trata de desistência voluntária, ou seja, os próprios criminosos desistiram de praticar o crime, de forma que responderiam apenas pelos atos já praticados (no caso os delitos dos artigos 352 “L” e “M” do Código Penal.

Spacca

Resumidamente, o ministro Alexandre de Moraes per si não é vítima de nada. Por outro lado, ainda, a abolição do Estado Democrático levaria à extinção dos poderes constitucionais, dentre estes o Judiciário, especialmente o Supremo Tribunal Federal, de modo que os demais ministros também seriam vítimas da ação criminosa.

Não é incomum que acusados em crimes usuais tentem afastar magistrados com o argumento da inimizade pessoal, um argumento dito “de algibeira”, exceto nas expressas previsões legais, não sendo, agora, o caso.

Por fim, a questionada duração de procedimentos policiais em casos complexos. Nesse caso, em específico, convém lembrar que há sucessão de ações no tempo durante a própria tramitação, resumindo, mesmo diante da instauração, outras ações criminosas foram práticas em acréscimo às anteriores, de forma que tecnicamente nenhuma irregularidade há.

Aliás, após a apresentação do relatório, é de se espantar que os membros da turba que tanto se jactavam de sua condição, “caveiras”, “kids pretos”, “Punhal Verde-Amarelo”, “patriotas” e todos os termos desse naipe, exalando coragem e o sacrifício das própria vidas, agora usem dos recursos de defesa mais tradicionais, que vão do “não me lembro de ter escrito isso” ao “não sabia” ou “saí antes” — usando e abusando, assim, da chamada “Teoria do Avestruz”, ou “Ostrich Instructions”, defesa clássica, principalmente no Direito norte-americano, em que o agente se coloca deliberadamente em posição de ignorância.

Parece que a coragem bateu asas, a convicção se escondeu, a jactância emudeceu. Seria assim em batalha? Por aqui, o leão miou.

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