Tutela coletiva x tutela individual nos litígios de massa
28 de novembro de 2024, 13h18
Um dos temas que vêm repercutindo significativamente na imprensa e junto à comunidade jurídica é o potencial conflito transnacional entre as jurisdições do Brasil e do Reino Unido no caso de Mariana, em Minas Gerais. Qual o foro competente para processar e julgar as ações propostas contra as mineradoras responsáveis pelo rompimento da barragem do Fundão? Ao tempo em que tramitam no Brasil diversas ações, individuais e coletivas, que buscam a reparação pelos prejuízos sofridos, foi ajuizada no Reino Unido a maior ação coletiva do mundo, com semelhante pretensão. [1]
A ação em território inglês foi proposta em 27 de julho de 2021 por mais de 600 mil vítimas, [2] dentre as quais pessoas físicas, pessoas jurídicas privadas (cerca de 2.000 empresas), estados e municípios brasileiros (46 governos locais). Uma das alegações para justificar a jurisdição inglesa foi o caráter multinacional da mineradora responsável e, frise-se, a “insuficiência da justiça brasileira” para conferir uma resposta adequada às vítimas da tragédia.
O pedido da demanda é de uma indenização de U$ 47 bilhões, o que atualmente corresponde a cerca de R$ 271 bilhões. [3] A ideia de levar o caso ao exterior surgiu, segundo Ana Carolina, pela frustração com a lentidão das ações no Brasil e a ineficácia da Fundação Renova, criada para indenizar as vítimas. [4]
Além desse conflito entre as jurisdições brasileira e inglesa para tutelar o interesse das vítimas da tragédia, há ainda um ingrediente adicional: o financiamento do litígio por um fundo de investimento norte-americano. De acordo com a matéria do Migalhas, o fundo Gramercy teria investido U$ 552,5 milhões de dólares no escritório de advocacia inglês Pogust Goodhead, a fim de custear o litígio e receber, ao final, retorno econômico com tal investimento. [5]
A ação na Justiça inglesa já foi aceita (julho de 2022), tendo sido negada pela Suprema Corte do Reino Unido, em 1º de julho de 2023, a permissão para a mineradora recorrer ao tribunal, alegando justamente a incompetência do Reino Unido para processar e julgar a demanda. [6] O julgamento teve início em 21.10.24 e tem previsão de se estender até o início do próximo ano.
Acordo celebrado junto ao STF
Paralelamente ao trâmite do processo na Justiça inglesa, as ações no Brasil caminham a passos largos. A última notícia que foi amplamente divulgada pela imprensa foi o acordo celebrado entre as mineradoras, a União, os estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, o Ministério Público e a Defensoria Pública, na PET 13.157, proposta perante o Supremo Tribunal Federal.
Tal acordo foi alcançado após diversas iniciativas frustradas de solução, inicialmente perante a Justiça Federal de Minas Gerais (TTAC de 2/3/2016), quando foi instituída a Fundação Renova; [7] depois, em uma nova rodada de deliberação, envolvendo Ministério Público e Defensorias Públicas (TAC-GOV, em 25/06/2018); judicialização perante Estados estrangeiros (na Inglaterra, buscando a indenização de 620 mil vítimas, e na Holanda, postulando a indenização de 77 mil atingidos); tentativa do CNJ e CNMP de solução consensual (2021/2022); nova tentativa de renegociação perante o recém criado Tribunal Regional Federal da 6ª Região (17.03.2023).
Sobre a solução alcançada perante o STF, vale a pena, inicialmente, contextualizar os contornos processuais da medida postulada.
Recentemente, foi criado na Suprema Corte brasileira um núcleo de soluções consensuais de litígios (Nusol), que foi disciplinado pela Resolução 697/2020. Segundo o artigo 2º, I, da Resolução, é possível a propositura de soluções de conflitos pré-processuais, sendo complementado pelo artigo 3º, parágrafo único, que informa que “os interessados poderão peticionar à Presidência do STF para solicitar a atuação do CMC [atual Nusol] em situações que poderiam deflagrar conflitos de competência originária do STF, de modo a viabilizar a solução pacífica da controvérsia antes da judicialização”.
No presente caso, alegou-se que a controvérsia envolvia divergências capazes de gerar conflitos interfederativos entre a União e os estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, que provavelmente dariam ensejo a ações a serem propostas perante o STF. Diante de tal circunstância, o STF recebeu a PET 13.157 e a processou regularmente, homologando o acordo proposto. [8]
Na fundamentação da decisão que recebeu a PET no STF, o ministro Barroso expôs argumentos relativos à gravidade da situação enfrentada com o rompimento da barragem e as suas repercussões na vida das pessoas atingidas, o potencial conflito capaz de abalar o pacto federativo e a necessidade de preservação da jurisdição do Poder Judiciário brasileiro. Vejamos:
7. De fato, o rompimento da barragem de Mariana/MG afetou diversos entes da federação (União, Estados e Municípios) em um caso de reparação de danos ambientais e sociais de larga escala, impactando diretamente comunidades e pessoas em situação de vulnerabilidade. Há, assim, potencial conflito com aptidão para desestabilizar o pacto federativo. 8. Além disso, a celebração do acordo com homologação pelo STF será capaz de evitar a contínua judicialização de vários aspectos do conflito e o prolongamento da situação de insegurança jurídica, decorridos nove anos desde o desastre. Não há outro meio igualmente idôneo para assegurar a proteção adequada da dignidade das pessoas atingidas (CF/1988, art. 1º, III) e do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (CF/1988, art. 225, caput), com a pacificação da controvérsia. 9. Por fim, a preservação da jurisdição do Poder Judiciário brasileiro é outro fator que justifica a atuação da Suprema Corte. O litígio envolve gravíssimos danos ambientais e impacto sobre os direitos de cidadãos brasileiros em território nacional, devendo, assim, ser resolvido pelo sistema judicial brasileiro. Esse aspecto reforça, portanto, a necessidade de uma solução definitiva do conflito, devidamente chancelada pelo Supremo Tribunal Federal.
O acordo previu o pagamento de R$ 170 bilhões a título de reparação e compensação. Segundo o ministro Luís Roberto Barroso, “o valor pactuado é significativo e faz deste um dos maiores acordos ambientais da história, possivelmente o maior”. Desse valor, R$ 100 bilhões serão pagos aos entes públicos (União, Minas Gerais, Espírito Santo e Municípios que aderirem ao acordo), R$ 32 bilhões destinados à recuperação de áreas degradadas, reassentamento de comunidades e indenização a pessoas atingidas e R$ 38 bilhões já foram gastos anteriormente à celebração do acordo. Foram, ainda, previstas indenizações individuais no montante de R$ 35 mil para pessoas em geral, R$ 95 mil para pescadores e agricultores e R$ 8 bilhões para povos indígenas, comunidades quilombolas e outras comunidades tradicionais. [9]
Ao final, delegou-se “o monitoramento da execução do acordo à Coordenadoria Regional de Demandas Estruturais e Cooperação Judiciária, vinculada ao Tribunal Regional Federal da 6ª Região, que deverá assegurar ao órgão a estrutura administrativa necessária para o desempenho da tarefa. A Coordenadoria decidirá sobre questões ordinárias relativas à execução do acordo, sob a supervisão do STF, devendo encaminhar a esta Corte semestralmente relatórios de monitoramento. Por outro lado, controvérsias que envolvam conflitos interfederativos ou de maior complexidade e que não sejam solucionadas por meio da autocomposição deverão ser submetidas ao Supremo Tribunal Federal, que mantém a jurisdição para supervisão do acordo” (PET 13.157, relator ministro Barroso, decisão referendada em 6/11/24).
Repercussões nas ações individuais e coletivas
Um dos principais questionamentos diante do acordo celebrado é sobre a sua potencial repercussão nas demais ações que tramitam no Brasil e no exterior a respeito do assunto. Como exposto, há inúmeras ações ajuizadas que buscam indenizações em razão do rompimento da barragem do Fundão ocorrido em 5 de novembro de 2015, um dos maiores desastres ambientais da história do planeta, com aproximadamente 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos despejados na bacia do Rio Doce e no Oceano Atlântico, afetando milhares de famílias, além de comunidades indígenas e quilombolas.
A própria decisão de homologação do acordo já traz algumas dessas respostas, nos itens 36 a 40. Segundo o julgado, 161 processos judiciais e administrativos propostos pelos entes públicos e por instituições do sistema de justiça (Ministério Público e Defensoria Pública, por exemplo) serão extintos, outras 95 ações ajuizadas por comissões de atingidos e associações poderão ser extintas se o juízo respectivo entender que perderam objeto em razão do acordo celebrado e, por fim, processos que tratam de sanções serão extintos com o pagamento das multas. Em relação às ações individuais ajuizadas por pessoas físicas e jurídicas (municípios, inclusive), poderão ser extintas se os autores aderirem ao acordo, que possui como cláusula expressa a necessidade de renúncia das suas demandas como condição de recebimento dos recursos previstos no acordo.
Como se percebe dos termos do próprio acordo celebrado, não haverá a extinção automática das ações individuais e coletivas que buscam indenizações em razão do referido desastre. Isso se dá em virtude da regulamentação do processo coletivo no Brasil e da interpretação que atualmente se confere ao princípio fundamental do acesso à justiça. Não seria possível impor aos jurisdicionados a solução do processo coletivo, impedindo-os de buscar a tutela individual dos seus direitos. O tema foi exaustivamente tratado no CC nº 47.731/DF instaurado no STJ, de relatoria do ministro Teori Zavascki.
Dois dispositivos legais podem ser lembrados no particular. De acordo com o artigo 104 do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), diante da notícia no processo individual da existência do processo coletivo, pode o autor, no prazo de 30 dias, optar por suspender seu processo, a fim de se beneficiar da solução a ser alcançada no processo coletivo. Caso não exerça esse direito, o processo individual prossegue normalmente o seu trâmite, sem sofrer qualquer influência do processo coletivo.[10]
Já o artigo 22, §1º, da Lei do Mandado de Segurança (Lei 12.016/09) apresenta solução diversa. Segundo tal dispositivo, o autor do processo individual pode pedir a desistência da sua demanda, diante da notícia do processo coletivo, a fim de se beneficiar da sua conclusão. [11] Trata-se de situações chamadas nos Estados Unidos de right to opt out, ou seja, a possibilidade de os autores das demandas individuais podem optar, se quiserem, por se autoexcluírem da demanda coletiva, prosseguindo com suas ações individuais.
Sobre essa relação entre ações individuais e coletivas, vale lembrar da solução já adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, no sentido de determinar a suspensão obrigatória de todos os processos individuais, em razão do trâmite de processo coletivo. Tal se deu no bojo do Recurso Especial nº 1.110.549/RS (Tema 60 dos recursos repetitivos), julgado em 28 de outubro de 2009, em que se discutia a possibilidade de suspensão de ações individuais que tratavam da incidência de correção monetária nos depósitos em caderneta de poupança decorrente dos planos econômicos do governo federal.
Nesse julgamento, ficou assentado que, considerando a legitimidade do Ministério Público para propositura da ação civil pública, que era imperioso que o Tribunal julgasse de vez, “com celeridade e consistência, a macro-lide, que se espraia em milhares de processos, cujo andamento individual, repetindo o julgamento da mesma questão milhares de vezes, leva ao verdadeiro estrangulamento dos órgãos jurisdicionais, em prejuízo da totalidade dos jurisdicionados, entre os quais os próprios litigantes do caso”. Ao final, concluiu-se pela possibilidade de suspensão dos processos individuais, evitando-se assim a “inundação dos órgãos judiciários pela massa de processos individuais, que, por vezes às centenas de milhares, inviabilizam a atuação judiciária”.
Não obstante a conclusão a que chegou o Superior Tribunal de Justiça no referido Tema 60 de recursos repetitivos, não houve qualquer vinculação da decisão do processo coletivo à solução dos casos individuais. A decisão do processo coletivo poderia apenas persuadir os juízes dos processos individuais a julgar improcedentes as demandas ou mesmo convertê-las em cumprimento de sentença da tutela coletiva, a depender do resultado que fosse alcançado.
Vejamos o teor da conclusão: “diante do julgamento da tese central na Ação Civil Pública, o processo individual poderá ser julgado de plano, por sentença liminar de mérito (CPC, art. 285-A) [CPC de 1973], para a extinção do processo, no caso de insucesso da tese na Ação Civil Pública, ou, no caso de sucesso da tese em aludida ação, poderá ocorrer a conversão da ação individual em cumprimento de sentença da ação coletiva”.
Vale lembrar que, no Brasil, adotou-se o modelo do transporte in utilibus da coisa julgada coletiva para as situações jurídicas individuais, ou seja, os titulares de direitos que podem ser afetados pela demanda coletiva só podem ser beneficiados pela solução coletiva, jamais prejudicados.
Conclusões
Diante da dimensão da tragédia ambiental da barragem do Fundão e das inúmeras repercussões jurídicas que proporcionou e ainda vem proporcionando, está-se diante de mais uma oportunidade para voltar a discutir seriamente a disciplina do processo coletivo no Brasil. Muitas iniciativas já foram levadas a efeito perante o Congresso Nacional, sem, contudo, chegarem a um resultado exitoso quanto à regulamentação unificada da tutela coletiva de direitos e da tutela de direitos coletivos.
No caso de Mariana, punições e indenizações são buscadas em ações individuais e coletivas, no Brasil e no exterior, levantando a diversos questionamentos, a exemplo do alcance da tutela coletiva, da legitimidade e da representatividade adequada daqueles que tentam soluções consensuais, do uso abusivo do forum shopping, do eventual conflito de competência entre jurisdições internacionais, do financiamento de litígios etc.
O Fórum de Integração Brasil Europa (Fibe) dedicou um painel para discutir a Legitimidade e Representividade nos Litígios de Massa, no Fórum Impactos Econômicos e Sociais dos Litígios de Massa, hoje (28) e amanhã (29), em Lisboa. Durante o debate, juristas nacionais e estrangeiros discutem também o passado e o futuro do processo coletivo. Tal importante iniciativa pode ser uma verdadeira alavanca para destravar a discussão sobre o tão necessário quanto urgente Código de Processo Coletivo brasileiro.
[1] Vide: https://www.migalhas.com.br/quentes/415553/julgamento-em-londres-do-desastre-de-mariana-provoca-questionamentos, acessado em 19.11.24.
[2] Vide: https://casoinglesmariana.com.br/, acessado em 19.11.24.
[3] Vide: https://contraponto.jor.br/o-imbroglio-em-torno-do-julgamento-da-tragedia-de-mariana/, acessado em 19.11.24.
[4] Vide: https://www.migalhas.com.br/quentes/415553/julgamento-em-londres-do-desastre-de-mariana-provoca-questionamentos, acessado em 19.11.24.
[5] Vide: https://www.migalhas.com.br/quentes/415553/julgamento-em-londres-do-desastre-de-mariana-provoca-questionamentos, acessado em 19.11.24.
[6] Vide: https://casoinglesmariana.com.br/, acessado em 19.11.24.
[7] Vide: https://www.fundacaorenova.org/, acessado em 25.11.24.
[8] https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15371469841&ext=.pdf, acessado em 19.11.24.
[9] Vide: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/presidente-do-stf-homologa-acordo-para-reparacao-de-danos-causados-pela-tragedia-em-mariana-mg/, acessado em 25.11.24.
[10] Art. 104. As ações coletivas, previstas nos incisos I e II e do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva.
[11] Art. 22, §1º. O mandado de segurança coletivo não induz litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada não beneficiarão o impetrante a título individual se não requerer a desistência de seu mandado de segurança no prazo de 30 (trinta) dias a contar da ciência comprovada da impetração da segurança coletiva.
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