Opinião

Reforma tributária: a reafirmação da desigualdade federativa

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28 de novembro de 2024, 6h02

Introdução: reforma, federalismo e a tensão centro-periferia

O Brasil adota um federalismo peculiar, cujas bases foram delineadas pela Constituição de 1988, mas cujos fundamentos remontam a um histórico centralizador. Esse modelo de federalismo, descrito por Alfred Stepan como “centralizador por imposição”, é caracterizado por uma redistribuição assimétrica de recursos e competências, em que estados como São Paulo, altamente produtivos, financiam grande parte do sistema, mas recebem de volta uma fração desproporcional.

A reforma tributária, que propõe substituir tributos estaduais e municipais como ICMS e ISS por um imposto sobre valor agregado (IVA), simboliza a consolidação desse modelo. A criação do Conselho Federativo para gerir a arrecadação e redistribuição dos recursos do IVA se apresenta como uma tentativa de democratizar a governança fiscal. No entanto, a análise revela que sua estrutura, ao ignorar critérios populacionais e contributivos, reproduz as desigualdades históricas do sistema político brasileiro, como a desproporção na representação dos estados na Câmara dos Deputados.

Desproporcionalidade no Conselho Federativo: reflexo e intensificação do modelo político

O reflexo da Câmara dos Deputados

A lógica do Conselho Federativo está em continuidade com as distorções presentes na Câmara dos Deputados. De acordo com o artigo 45 da Constituição Federal, a distribuição de cadeiras na Câmara é baseada em um sistema que estabelece um número mínimo de oito deputados por estado, independentemente de sua população, e um máximo de 70 deputados. Isso cria um descompasso entre representatividade e realidade populacional.

Por exemplo:

  • Roraima, com menos de 700 mil habitantes, possui oito deputados, resultando em uma média de um deputado para cada 87 mil habitantes.
  • São Paulo, com mais de 46 milhões de habitantes, conta com 70 deputados, o que equivale a um deputado para cada 660 mil habitantes.

Essa distorção, que favorece estados de menor população, é transposta para o Conselho Federativo, onde cada estado terá peso igual, ignorando critérios como população ou contribuição econômica. O resultado é a institucionalização de um desequilíbrio que permite a estados menores formarem coalizões e tomarem decisões que desconsideram as demandas dos estados mais produtivos.

Desigualdade sistêmica e federalismo redistributivo

No federalismo brasileiro, a redistribuição de receitas está inserida em um contexto de solidariedade federativa, mas a falta de critérios objetivos torna essa redistribuição uma questão política, e não técnica. No Conselho Federativo, a ausência de parâmetros claros para a distribuição do IVA permite que estados menores, beneficiados pela desproporção representativa, influenciem a alocação de recursos em detrimento de estados maiores, como São Paulo.

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Essa desigualdade revela uma inversão no princípio de justiça federativa. O ideal seria uma redistribuição que equilibre solidariedade nacional e proporcionalidade contributiva, mas o modelo atual aprofunda as desigualdades ao ignorar a relação entre quem contribui mais e quem recebe mais.

Impactos no equilíbrio federativo e na autonomia de São Paulo

A perda de autonomia tributária

O ICMS, principal tributo estadual, representa cerca de 70% da receita própria de São Paulo. Esse imposto não apenas financia a maior parte dos serviços públicos estaduais, mas também permite ao estado exercer autonomia fiscal, adaptando a tributação às suas realidades econômicas. A substituição desse tributo pelo IVA, gerido nacionalmente, desarticula essa autonomia, reduzindo São Paulo a uma posição de dependência de transferências federais.

Essa dependência é particularmente problemática porque a União já concentra a maior parte dos recursos arrecadados no país. Em 2022, a União arrecadou mais de 60% das receitas tributárias totais, enquanto os estados ficaram com cerca de 25% e os municípios com 15%. A reforma consolida esse padrão, centralizando ainda mais a arrecadação e subordinando os estados a um modelo redistributivo incerto.

Redistribuição desproporcional e os dados de São Paulo

São Paulo é o maior arrecadador de tributos do país, responsável por cerca de 40% da arrecadação nacional. Contudo, o estado recebe de volta apenas 15% do que envia à União. Essa disparidade já é significativa no sistema atual e tende a se intensificar com o IVA, pois a redistribuição dos recursos será decidida por um Conselho em que São Paulo terá o mesmo peso que estados com arrecadação e população muito menores.

Esse modelo não apenas penaliza São Paulo, mas também compromete o princípio de eficiência fiscal. Estados mais produtivos perdem incentivos para investir em políticas que aumentem sua arrecadação, uma vez que os benefícios dessas políticas não retornam proporcionalmente.

O Conselho Federativo: estrutura e problemas

A representação igualitária como fator de injustiça

A proposta do Conselho Federativo ignora as diferenças estruturais entre os estados, tratando-os de maneira uniforme em um sistema que deveria, idealmente, refletir as complexidades do pacto federativo. Ao conceder o mesmo peso decisório a estados com populações e economias díspares, o Conselho transforma a igualdade formal em uma ferramenta de desigualdade material.

A justificativa oficial para essa estrutura é garantir que todos os estados tenham voz no processo decisório. No entanto, essa lógica não resiste à análise crítica: uma representação desproporcional favorece estados menores e prejudica estados que concentram a maior parte da arrecadação e da população.

Falta de critérios para redistribuição

Além da questão representativa, o Conselho Federativo sofre com a ausência de critérios objetivos para a redistribuição dos recursos do IVA. Sem uma fórmula clara, as decisões tornam-se suscetíveis a pressões políticas e barganhas, favorecendo interesses regionais de curto prazo em detrimento de uma política fiscal coerente.

Centralização e a função política da reforma

O papel da centralização no federalismo brasileiro

A centralização fiscal no Brasil tem raízes históricas, remontando ao período imperial, quando o poder tributário era amplamente concentrado no governo central. Esse padrão foi mantido, com algumas variações, ao longo das diversas constituições republicanas. A Constituição de 1988, embora tenha formalizado a descentralização política e administrativa, manteve a centralização financeira como um dos pilares do sistema.

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A reforma tributária é, assim, uma manifestação contemporânea desse histórico centralizador. A substituição do ICMS e do ISS pelo IVA não apenas transfere a arrecadação para a esfera nacional, mas também reforça o controle da União sobre os recursos dos estados. Esse controle é exercido por meio do Conselho Federativo, cuja estrutura favorece a União e os estados menores.

Desincentivo ao desenvolvimento regional

A centralização não apenas reduz a autonomia dos estados, mas também desincentiva o desenvolvimento regional. Estados como São Paulo, que investem em inovação e eficiência fiscal, perdem a motivação para continuar essas políticas, uma vez que os benefícios não retornam diretamente ao estado.

Lições internacionais e perspectivas comparativas

Estados Unidos: federalismo competitivo

Nos Estados Unidos, o federalismo é caracterizado por ampla autonomia dos estados, que possuem liberdade para criar e gerir tributos de acordo com suas necessidades locais. Essa autonomia incentiva a competição entre os estados, promovendo eficiência fiscal e inovação.

Alemanha: federalismo solidário

Na Alemanha, o modelo de IVA centralizado é acompanhado por fórmulas claras e transparentes para redistribuição, equilibrando solidariedade nacional e eficiência econômica. Além disso, o Bundesrat (Conselho Federal) representa os estados de maneira proporcional, mitigando os efeitos da centralização.

O Brasil na contramão

O Brasil, ao centralizar a arrecadação sem critérios claros de redistribuição e ao reproduzir a desproporção na representação estadual, segue na contramão dessas experiências. O resultado é um federalismo disfuncional, que aprofunda desigualdades regionais e compromete a coesão nacional.

Considerações finais: reforma ou regressão?

A reforma tributária em curso é apresentada como uma solução técnica para problemas estruturais do sistema fiscal brasileiro, mas seus desdobramentos revelam uma reafirmação das desigualdades históricas do federalismo nacional. A criação do Conselho Federativo, com sua representação desproporcional e falta de critérios redistributivos, consolida um modelo que penaliza estados maiores, como São Paulo, e favorece estados menores.

Para São Paulo, a reforma é uma perda líquida em termos financeiros e políticos. O estado perde sua autonomia tributária e passa a depender de um sistema redistributivo que não garante retorno proporcional às suas contribuições. Essa dependência não apenas enfraquece a capacidade de planejamento do estado, mas também aumenta as tensões federativas, já evidentes no sistema atual.

Uma verdadeira reforma tributária deve buscar um equilíbrio entre solidariedade nacional e proporcionalidade contributiva, adotando critérios claros e transparentes para redistribuição e garantindo uma representação justa no processo decisório. Sem esses elementos, a reforma não é uma solução, mas um novo capítulo na história das desigualdades do federalismo brasileiro.

 


Bibliografia

  1. STEPAN, Alfred. Federalismo e Democracia no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
  2. PRADO, Sérgio. Federalismo Fiscal no Brasil. Brasília: Ipea, 2015.
  3. ELAZAR, Daniel. Exploring Federalism. Tuscaloosa: University of Alabama Press, 1987.
  4. TANZI, Vito. Taxation in Federal States: Principles and Challenges. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
  5. WATTS, Ronald L. Comparing Federal Systems. Montreal: McGill-Queen’s University Press, 1999.

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