Interesse Público

Política pública institucional no Judiciário exige avaliação

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  • é professora da Universidade Federal de Goiás visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School pós-doutora em administração pela Ebape-FGV doutora em Direito pela Universidade Gama Filho procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

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28 de novembro de 2024, 9h17

Semana passada, nesta mesma coluna, provoquei o ilustre leitor a uma reflexão quanto ao real desejo/interesse de agentes públicos e políticos, em empreenderam a avaliação ex post de políticas públicas, no seguinte texto: Queremos mesmo avaliação em políticas públicas?

Essa mesma reflexão merece, todavia, um destaque especial quando se tem em conta o fenômeno relativamente recente — mas não menos importante — do desenho e implementação de políticas institucionais de grande efeito no âmbito do Poder Judiciário, em especial pela atuação do Conselho Nacional de Justiça.

Espaço político ocupado pelo CNJ

Em que pese a polêmica inicial provocada pela proposição de uma estrutura institucional como o CNJ, vocacionada ao exercício de algum nível de governo da justiça e supervisão do exercício da jurisdição; fato é que a iniciativa prosperou, materializada que foi com a edição da Emenda 45/2004.

Seus primeiros momentos de funcionamento envolveram a delimitação real da esfera de competência, fixada originalmente no artigo 103-B, § 4º CF. Afinal, a redação do preceito, aludindo a “controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário” deixava claro que o exercício em si da jurisdição em sentido estrito escapava às suas atribuições, mas não se tinha por firmemente estabelecidos os contornos do que se contivesse em especial, na primeira expressão: “controle da atuação administrativa”.

A consolidação da estrutura institucional foi se dando com o tempo, tendo o CNJ investido numa dimensão que se pretendia identificar como de accountability, sendo seu produto mais “vistoso” nos primeiros dias, o relatório Justiça em Números, que tem já no mesmo ano de 2004 a sua primeira edição.

Spacca

Vencida a etapa mais simples de visibilidade da atuação do Poder Judiciário, na tarefa mais intuitiva ao cidadão mais simples (decidir processos); preocupa-se o CNJ com um direcionamento mais abrangente da atuação desta estrutura institucional, vindo à luz o instrumento de desenho de política institucional identificado como Estratégia Nacional do Poder Judiciário. Não se equivoque o leitor — a expressão política institucional se usa, não em oposição à políticas públicas, mas simplesmente reconhecendo se tenha nela a orientação ao agir especificamente daquela instituição.

A primeira versão da referida Estratégia, compreendendo o período de 2009/2014, voltava-se predominantemente para questões internas ao Judiciário, como a onipresente taxa de congestionamento, mas também elementos comezinhos como os insumos necessários ao funcionamento.

O segundo ciclo, abrangendo o interstício de 2015-2020, já compreende macro objetivos relacionados à garantia de direitos da cidadania, além de outros componentes afetos aos efeitos concretos da atuação jurisdicional no mundo da vida. O percurso se completa com o ciclo 2021-2026, onde se tem por claramente expresso como macro desafio, o fortalecimento da relação institucional do Judiciário com a sociedade.

A enunciação dos desafios propostos enfrentar sugere uma inclinação à transcendência em relação a aferições exclusivamente numéricas, abarcando objetivos mais sofisticados, que possam consolidar uma posição de apreciação e confiança da sociedade no Poder Judiciário. Afinal, a história evidencia que em tempos em que se verifica o tensionamento entre Judiciário e Legislativo — como se tem percebido mais recentemente — o apoio popular pode ser fato relevante para a proteção de garantias institucionais que assegurem independência e autonomia conquistada com a edição da Carta de 1988.

Ocupado o espaço político pelo CNJ, com a enunciação de estratégias institucionais progressivamente mais ambiciosas, a questão que se põe é – esta opção nominal de política pública institucional está instrumentalizada de indicadores que favoreçam uma avaliação efetiva, apta a informar quanto a seus resultados tendo em conta os problemas identificados no desenho da estratégia?

Falácia do predomínio dos indicadores numéricos

A análise das sucessivas edições da Estratégia Nacional do Poder Judiciário evidencia que, não obstante os objetivos ambiciosos, o instrumento básico de avaliação de políticas públicas — a saber, as metas e correspondentes indicadores de desempenho — seguem fixados na alternativa simplificadora dos resultados numéricos; tudo firmado na premissa de que mais processos, julgados de forma mais rápida expressam uma melhor atuação.

A simples leitura do Anexo II da Resolução CNJ no. 325, de 29 de junho de 2020, evidencia que o indicador eleito para aferição da garantia dos direitos fundamentais é o Índice de Acesso à Justiça, cuja preocupação principal, em que pese a sofisticação dos componentes estatísticos considerados na sua fórmula de cálculo, é medir em que proporções a cidadania busca ao Judiciário em todo o território nacional.

A falácia numa aproximação como essa está em que a rigor, o indicador maior de sucesso do Judiciário, especialmente na garantia de direitos fundamentais, seria a diminuição do número de demandas, por recondução da ação das demais instituições ao alinhamento para com os deveres a elas assinalados pela Constituição. Mais demandas, a rigor, expressam uma potencial patologia do Poder, e nestes termos, um decréscimo na distribuição da justiça.

A mesma visão de túnel contamina a sempre celebração da diminuição da taxa de congestionamento, indicador valorizadíssimo quando se tem em conta o macrodesafio nomeado como “agilidade e produtividade na prestação jurisdicional”. Afinal, o efeito que o ideal de redução de taxa de congestionamento determina é o predomínio do esforço institucional de solução nominal de demandas — sem que nisso se tenha efetivamente uma aferição qualitativa do resultado entregue. Descongestionar, na prática institucional atual do CNJ, é um valor em si, ainda que isso não signifique necessariamente uma boa entrega da jurisdição.

A hipervalorização dos indicadores numéricos conduz a esse fechamento cognitivo em relação ao fenômeno judicialização da vida. Afinal, se é preciso os números para o cálculo dos indicadores fixados pelo CNJ, elegem-se números disponíveis no âmbito do próprio Judiciário — e com isso, o quadro de conflito social que antecedeu a demanda fica negligenciado na sua identificação e compreensão.

Tem-se aí uma perda de oportunidade de aprendizado institucional. Afinal, jurisdição é dizer o direito, mas o direito que se aplica aos fatos, donde a relevância do olhar em relação à realidade social que determina ou emoldura o conflito.

Outro plano em que política institucional em execução pelo Poder Judiciário revela, na melhor das hipóteses, visão de túnel, é a pouca preocupação com o pós-demanda; o efeito real da prestação jurisdicional. Tem-se aí mais um desdobramento de um vício antigo da visão do processo, segundo o qual o que importa é a fase de conhecimento, sendo a execução (supostamente) um mero desdobramento da decisão de procedência.

Essa visão, primeiro, não condiz com a realidade — são incontáveis os casos em que a sentença de procedência não se reveste de elementos suficientes para viabilizar a execução. Em casos que tais, embora se tenha atendido aos indicadores do CNJ, não se verifica, na realidade, a oferta da jurisdição — o que se tem é um discurso.

A par disso, a percepção de que a prestação jurisdicional tenha efetivamente posto fim ao conflito, é algo que só se consegue com a consideração e valorização da execução da ordem. Para isso, é preciso mais do que a aferição numérica.

Avaliar para aperfeiçoar

Retomando o título das presentes considerações, o que se está indicando aqui é o imperativo de uma discussão mais ampla sobre o (des)acerto da política institucional que vem sendo levada a cabo pelo CNJ, que retroalimenta o fenômeno da judicialização da vida e secundariza a dimensão substantiva da prestação jurisdicional.

Fato é que as opções formuladas pelo CNJ em nome de celeridade e eficiência da justiça tem sido recebidas pela sociedade como verdadeira ordem — em relação à qual só o que se põe é o cumprimento. Retomando a dualidade do emprego do termo avaliação, a que me referi no texto anterior, não se conhece nem a que se deu ex ante, e menos ainda a ex post.

Tomemos como exemplo, a recente Resolução CNJ 547/2024, que dispõe sobre a extinção de processos de execução fiscal em valores abaixo de R$ 10 mil nas condições que menciona. A busca dos elementos considerados para a determinação deste valor no portal do CNJ se revelou — possivelmente por inabilidade desta escriba — infrutífera.

Mais ainda, o que se vê são as estatísticas de impacto potencial da extinção das referidas demandas no Judiciário — mas nada se vê, ao menos no referido sítio, quanto ao impacto desta mesma estratégia de ação em municípios credores.

No terreno das políticas públicas ordinárias, a etapa de avaliação ex post é considerada o pico de aprendizado institucional — mas esse ganho cognitivo só se pode verificar quanto se tenha amplo conhecimento da estratégia executada, e a formulação de juízo crítico por outros agentes, que não o próprio executor da iniciativa.

Quando se diz que a política institucional do Judiciário exige avaliação, o que se está a sustentar é que indicadores de desempenho não podem se travestir em mecanismos de autoelogio.

A missão do Judiciário, indicada na Estratégia Nacional do Poder Judiciário para o período 2021-2026 — “realizar justiça” — é muito mais substantiva do que o simples alcance de números, que como o tempo nos ensinam, são muito menos objetivos e auto evidentes do que aprendemos nos primeiros anos na escola. Sustentar que a avaliação de sua política institucional deva ser atividade aberta, com o convite à ampla discussão quanto aos resultados alcançados, é postular do Judiciário tão-somente aquilo que ele frequentemente determina seja feito pelo Executivo.

Autores

  • é professora da Universidade Federal de Goiás, visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School, pós-doutora em Administração pela Ebape-FGV, doutora em Direito pela Universidade Gama Filho, procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

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