Dilemas da Lei da Tarifa Social do Saneamento Básico
28 de novembro de 2024, 11h13
O serviço público tem um custo, e alguém pagará essa conta. São várias as formas de suportar essa despesa: por recursos do Tesouro (como ocorre no Sistema Único de Saúde); ou por tarifa — quando todos pagam o mesmo pelo serviço prestado (v.g. transporte aéreo de passageiros); ou quando a contraprestação é escalonada, a depender do volume de demanda, da espécie de consumidor, da capacidade contributiva etc. (v.g. saneamento básico); ou por uma mescla de diferentes soluções.
Quando a solução é o custeio por tarifa, logo vem a constatação de que nem todo mundo pode “pagar essa conta”, ou seja, existem pessoas vulneráveis economicamente que merecem se beneficiar de isenções ou de tarifas reduzidas, as chamadas “tarifas sociais”. Neste caso, acontece normalmente de os outros pagantes suportarem um custo maior, subsidiando os beneficiados com a tarifa reduzida — com fundamento na igualdade material ou na justiça social.
Essa foi a lógica da Lei nº 14.898/2024, ao estabelecer regras nacionais para a Tarifa Social do Serviço Público de Saneamento Básico, definindo critérios e parâmetros para o benefício.
A legislação foi publicada e com ela vieram muitas dúvidas. Fiquemos com a principal: se um contrato de concessão define a Tarifa Social diversamente da lei, seja (1) quanto aos critérios de eleição de quem é beneficiário da Tarifa Social de Água e Esgoto; (2) seja em relação ao valor da tarifa, como se deve proceder? Vale a Lei nº 14.898/2024, vale o contrato ou vale uma combinação de ambos?
Eis o grande desafio posto, porque a legislação não foi clara a respeito.
Para melhor responder à questão formulada, propomos dividir a exposição em duas partes: (a) quando e como um indivíduo pode ser eleito à Tarifa Social — quais seriam as condições; (b) caso eleito, qual seria o benefício — quanto ele pagaria.
Passemos ao primeiro item. A partir de critérios pessoais, a Lei nº 14.898/2024 elegeu à Tarifa Social quem possui renda per capita de até meio salário-mínimo, desde que, adicionalmente: ou (a) seja cadastrado no CadÚnico; ou (b) receba Benefício de Prestação Continuada (BPC) e tenha, neste específico caso, (b1) mais de 65 anos, ou (b2) seja deficiente (artigo 2º).
Aqui vai mais um problema: a lei é lacunosa porque não deixa claro se poderia ser concedida tarifa reduzida a economias com mais de um membro recebendo meio salário-mínimo (tema visto por residência), ou se seria apenas quando a residência, na totalidade, tem renda per capita no patamar citado. Entendemos que, se alguém do domicílio recebe meio salário-mínimo e está inserido no CadÚnico ou usufrui do BPC, o imóvel pode ser contemplado pela Tarifa Social, ainda que o cadastrado não seja aquele que conste na fatura de água e esgoto.
Indo adiante: nem todos os contratos de saneamento básico estabelecem a Tarifa Social a partir de critérios subjetivos, mas, antes, adotam critérios objetivos, como o geográfico – é o caso do Rio de Janeiro, onde a Tarifa Social é deferida a determinadas regiões e cotejada com outros critérios.
Quanto pagar
Agora o segundo item, relativo ao quantum a ser pago a título de Tarifa Social de Água e Esgoto: o artigo 6º dispõe que o beneficiário pagará sobre os primeiros 15m³ consumidos por residência o valor de cinquenta por cento da tarifa aplicada à primeira faixa de consumo.
Com essa estipulação, outros problemas surgem: quase todos os modelos tarifários do setor de saneamento básico relacionam uma tarifa fixa a um consumo mínimo. Então, se porventura a primeira faixa contemplar o pagamento mínimo de 10m³, pode-se ter três cenários:
(1) aplicar o desconto só na primeira faixa, ou seja, só aos 10m³;
(2) aplicar o desconto de 50% por metro cúbico, até o consumo de 15m³ em uma mesma faixa;
(3) aplicar o desconto de 50% por metro cúbico até os primeiros 15m3, mas respeitando o preço de cada faixa — caso em que, a partir dos 10m³, os 50% passariam a incidir sobre a segunda faixa. Vamos a um exemplo de aplicação dos três cenários, tomando por base um hipotético valor de R$ 1 por m³ na primeira faixa, até 10m³, e de R$ 2 por m³ na segunda faixa, que iria até 20m³.
Cenário (1): pagar-se-ia o total de R$ 5 (metade dos 10m³ que custam R$ 10); cenário (2): o consumidor pagaria R$ 7,50, ou seja, R$ 0,50 por m³, no total de 15; cenário (3): o consumidor pagaria R$ 5 pelos primeiros 10m³ (R$ 0,50 por m³), e mais 5 pelos próximos 5m³ (R$ 1 por m³), totalizando aqui R$ 10.
Estando assim as coisas, cabe perguntar: como proceder no caso em que um contrato dispõe, por exemplo, que a Tarifa Social se aplica às residências de determinada região, no valor “x” até os primeiros 20m³ de água? Uma primeira resposta pode ser buscada no § 2º do artigo 6º da Lei nº 14.898/2024: o benefício fixado na lei deverá ser considerado “padrão mínimo” a ser observado (item “(b)” antes exposto — 50% sobre os 15m³ em relação à primeira faixa).
Apesar disso, a parte final da regra citada parece trazer uma contradição, porque dispõe que esta providência não implica “revogação ou invalidação de regras, critérios ou descontos tarifários já instituídos em seus territórios”. Significa que, se as normas da agência local (ou regional) ou o contrato contemplarem condições diferentes, de um lado deveria ser garantido o padrão mínimo da lei, mas de outro não se poderia invalidar ou revogar o que já foi posto.
Ao que parece, apesar do aparente “tropeço” do texto, o legislador quis garantir um direito mínimo ao consumidor. Significa dizer que os concessionários devem se perguntar: “o contrato ou a lei garante ao usuário um maior benefício?”. Se for o contrato, deve-se dar ao consumidor este benefício. Caso a lei forneça uma Tarifa Social mais benéfica em relação ao que atualmente é praticado, deverá se alterar o contrato para cotejar a benesse, com o necessário e prévio reequilíbrio econômico-financeiro. Esta foi a finalidade da regra. Voltemos ao exemplo hipotético: vamos imaginar que o benefício do artigo 6º da Lei nº 14.898/2024 estabelece uma Tarifa Social mais benéfica ao usuário. Entendemos que, até os 15m³ aplicar-se-iam as regras legais, e na faixa de 16m³ a 20m³ incidiriam os benefícios do contrato.
Quem pode ser beneficiário
Mas, quanto à eleição dos beneficiários da Tarifa Social (item “(a)”), como proceder se a lei dispôs de critérios diversos da regulação discricionária ou contratual já praticada? Dito de outro modo, caso o contrato escolha critérios diferentes para definir quem pode receber o benefício, ele deverá ser alterado? Respondemos: a lei não foi clara neste aspecto. Apesar disso, compreendemos que os contratos deverão ser adaptados para incorporar as regras legais também quando isto for mais benéfico ao usuário, mas desde que prévia e proporcionalmente se faça o pertinente reequilíbrio da concessão.
Esta interpretação deve prevalecer por vários motivos.
Primeiro: a própria Lei nº 14.898/2024 determina que a classificação dos beneficiários deve ser feita “automaticamente” (artigo 4º, “caput”), e “independentemente de notificação do usuário” (artigo 4º, § 4º), de homologação prévia do poder concedente ou de agência reguladora. Essa conformação normativa leva à conclusão de que a lei prevalece em relação às cláusulas contratuais, ou seja, estamos diante de verdadeiro “fato do príncipe”. Prova disto é que, se porventura o contrato de concessão não preveja nenhuma regra sobre Tarifa Social, deverá ser alterado para fazer assim constar – artigo 7º, § 2º.
‘Automaticidade’ capenga
Em síntese, os contratos deverão ser alterados para incorporar as regras da tarifa social estabelecida por lei, com a necessária e prévia concreção do direito ao reequilíbrio econômico-financeiro. O § 3º do artigo 6º é claro neste sentido, ao afirmar que se deve “preservar o direito adquirido” do concessionário, e a Tarifa Social somente surtirá efeitos em relação ao prestador do serviço quando a recomposição for implementada. Por isto, não resta dúvida que o benefício tem uma condição suspensiva: a prévia e completa compensação do prestador. Ou seja: a “automaticidade” da lei é capenga, porque depende do prévio reequilíbrio – veja-se, aqui, mais um dilema legal.
De qualquer sorte, a Lei nº 14.898/2024 não parou por aí: foi além a dizer como este reequilíbrio deve ser feito. O artigo 8º garante a compensação do prestador prioritariamente por subsídio cruzado, sendo o rateio de custo de suportar a Tarifa Social feito entre as demais categorias de consumidores finais. A lógica é: os outros pagantes suportarão o ônus do benefício de uma tarifa reduzida em favor de determinadas pessoas, condensando, então, a capacidade contributiva de cada qual e estabelecendo uma justiça distributiva. A entidade reguladora deverá definir se esta compensação se dará linearmente em relação aos demais consumidores, ou por faixas (v.g. quem paga mais, suportará o maior custo) – um estudo sobre a capacidade contributiva será fundamental.
Sequer o prestador ou o poder concedente ou a agência podem colocar limites à abrangência da Tarifa Social, sendo vedada regulação que estabeleça qualquer restrição ao alcance da lei (art. 8º, §2º). Portanto, a vinculatividade da Tarifa Social legal é clara e se impõe aos contratos, confiando-se existir verdadeiro “fato do príncipe”.
Afinal, se estamos diante de um contrato de concessão, o que se deve fazer? Primeiro pergunte: “O contrato estipula regras de Tarifa Social?”
Resposta: (1) “Não estipula”, então deverão ser aplicadas automaticamente as disposições da lei e da norma de referência da ANA que vier a concretizar a Tarifa Social, com uma única condição suspensiva: somente quando previamente garantida a pertinente compensação da concessionária;
(2) “O contrato ou a regulação do serviço já garantem uma Tarifa Social”. Diante deste cenário, será necessário determinar: (2.1) se as regras legais são mais benéficas, seja ampliando a quantidade de beneficiados seja concedendo aos cidadãos elegíveis uma tarifa mais benéfica. Neste caso, deve-se aplicar automaticamente o benefício da Lei nº 14.898/2024, mas desde que seja previamente reequilibrado o contrato – a alteração do contrato é desejável; (2.2) se as regras contratuais são mais benéficas ao usuário, estas prevalecerão em relação à Lei nº 14.898/2024. Nada impede que se revogue a Tarifa Social atualmente praticada e se a substitua por outra mais adaptável aos parâmetros legais.
Em suma, agora se pode ter uma ideia de como será paga esta conta.
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