Europa e EUA: modelos distintos e eficazes para controlar as big techs
28 de novembro de 2024, 8h25
*Reportagem publicada no Anuário da Justiça Direito Empresarial 2024, lançado nesta segunda-feira, na Fiesp. A versão impressa está à venda na Livraria ConJur (clique aqui). Acesse a versão digital pelo site do Anuário da Justiça (anuario.conjur.com.br).
Atento à crescente discussão sobre a regulação das plataformas digitais, o governo brasileiro tem promovido o debate para avaliar os impactos econômicos e concorrenciais da atuação das plataformas digitais, além de verificar se a legislação atual é suficiente ou se precisará de um novo marco para dar conta dos desafios do mercado digital.
O secretário de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda, Marcos Barbosa Pinto, defendeu a necessidade de se aprofundar o diagnóstico dos impactos econômicos e concorrenciais das plataformas digitais no país destacando que “os serviços digitais representam mais de 9% do PIB brasileiro, com uma produtividade três vezes superior à das demais ocupações no país”.
O secretário afirmou, ainda, que os modelos de regulação de outros países podem servir de inspiração. “Os diversos países do mundo estão lidando com esse tema de formas diferentes. Surgem dois grandes modelos: os Estados Unidos apostaram no Direito antitruste tradicional, e a União Europeia promulgou uma legislação extremamente inovadora, que está em fase de implementação.”
A escolha de um modelo de regulação é um dos dilemas no Brasil e divide opiniões. A única unanimidade no caso corre por conta da oposição cerrada dos grandes operadores da economia digital a qualquer tipo de regulação das redes.
A União Europeia é pioneira na implementação de legislação para regular o ambiente digital. Em março de 2024, entrou em vigor a Lei de Serviços Digitais (DSA, em inglês, para Digital Services Act), que visa a atingir dois objetivos: 1) criar um espaço digital mais seguro em que sejam protegidos os direitos fundamentais de todos os usuários de serviços digitais; e 2) criar condições equitativas de concorrência para promover a inovação, o crescimento e a competitividade, tanto no Mercado Único Europeu como em nível mundial.
Desde que a lei entrou em vigor, Google, Meta e Apple viraram alvos de investigações na União Europeia, sob a suspeita de violação à nova norma. Violações que podem resultar em multas de até 10% do faturamento anual global das empresas.
Em março de 2024, a Apple recebeu multa de € 1,8 bilhão da União Europeia sob a alegação de que teria excluído alguns rivais no streaming musical, como o Spotify, de suas plataformas. Também houve a determinação, pela Comissão Europeia, para que a empresa não impedisse que aplicativos de streaming de música informassem sobre ofertas mais baratas fora da Apple Store.
O órgão antitruste da União Europeia também aplicou duas das maiores multas do órgão ao Google, da Alphabet. A primeira, de € 4,3 bilhões, por causa da dominação do aplicativo Android no mercado de dispositivos móveis em 2018, e a segunda, de € 2,4 bilhões por, supostamente, impulsionar seu próprio serviço de compras perante os rivais.
Nos Estados Unidos, que ainda não tem – e possivelmente nunca venha a ter – uma regulação de plataformas digitais, o Google foi derrotado judicialmente, em agosto de 2024, por violar a lei antitruste americana. A decisão, do juiz Amit Mehta, do Tribunal Distrital de Columbia, diz que o Google se utilizou do poder que tem no mercado para sufocar concorrentes e favorecer os próprios serviços em plataformas “ao manter um monopólio em dois mercados de produtos nos Estados Unidos (serviços de busca e publicidade de texto) por meio de acordos de distribuição exclusiva”.
O processo, iniciado em 2020, ainda não acabou. Um comunicado do Google informou que a empresa irá recorrer. “Agradecemos à corte por reconhecer que o Google é ‘o mecanismo de busca de maior qualidade da indústria, que conquistou a confiança de centenas de milhões de usuários diários’, que o Google ‘tem sido há muito tempo o melhor mecanismo de busca, especialmente em dispositivos móveis’, ‘continuou a inovar na busca’ e que ‘Apple e Mozilla ocasionalmente avaliam a qualidade da busca do Google em relação aos seus concorrentes e consideram a do Google superior.’ Dado isso, e considerando que as pessoas estão cada vez mais buscando informações de maneiras variadas, planejamos recorrer”, disse o presidente de assuntos globais do Google, Kent Walker.
O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), órgão antitruste brasileiro, afirma estar preparado para ser a autoridade reguladora da economia digital e das big techs. A autarquia defende a necessidade de regulação e sugeriu a adoção do modelo ex-ante – regras específicas de caráter preventivo –, como complementação da Lei 12.529/2011 – Lei de Defesa da Concorrência.
“A complementação da legislação concorrencial brasileira a partir de um modelo regulatório ex-ante possibilita a estruturação de intervenções mais proativas e reformadoras, superando os desafios de desenho e implementação observados em relação à adoção de remédios antitruste tradicionais no contexto digital. Deste modo, o marco regulatório deve promover proteção ao consumidor, inovação e empreendedorismo, garantindo simultaneamente a preservação da dinamicidade do mercado e ampliando a contestabilidade no âmbito da economia digital”, destaca a nota técnica do Cade em tomada de subsídio feita pelo Ministério da Fazenda.
Entidades ligadas ao governo, à defesa do consumidor, ao mercado de telecomunicações e de comunicação social também se posicionaram neste sentido, contrariando a posição das entidades e empresas do setor.
Para o Instituto de Defesa dos Consumidores (Idec), com o modelo ex-ante, os consumidores terão sua autonomia e controle beneficiados em mercados digitais competitivos, livres, justos e equitativos. “O Digital Markets Act (DMA, o marco regulatório dos mercados digitais da União Europeia), por exemplo, possibilita que os consumidores escolham os serviços e aplicativos que desejam usar e se as empresas de tecnologia coletam e combinam seus dados de diferentes serviços”, destacou na nota. “A regulação ex-ante, portanto, viria não de maneira excludente, mas em complemento ao antitruste, sem prejuízo de sua eventual atualização para abarcar deficiências na análise desses mercados tão dinâmicos”, pontuou.
Janaína Camilo Vendramini, analista técnica de Mercados e Transformação Digital do Sebrae, entende que a regulamentação dos mercados digitais no Brasil poderá beneficiar as micro e pequenas empresas e especialmente os microempreendedores individuais. “A regulamentação é muito favorável na medida em que coíbe práticas abusivas, trazendo maior segurança jurídica a quem atua nas plataformas”, disse. Ela pontuou que há cerca de 1,7 milhão de pequenos lojistas digitais atualmente, o que equivale a 7% do varejo convencional desse porte.
O Conexis Brasil Digital, o sindicato de empresas de telefonia, destacou que a discussão sobre a necessidade de regras específicas de caráter preventivo para lidar com plataformas digitais no Brasil é complexa e envolve considerações sobre a natureza dinâmica desses mercados e do ecossistema como um todo e os desequilíbrios na aplicação de dispositivos legais e regulatórios para a defesa da concorrência. “A liberdade na internet se mostra fundamental para incentivar e promover a transformação digital no Brasil, e deve não apenas ser mantida, como estendida aos setores e agentes que encontram na regulação barreiras ao seu desenvolvimento”, afirmou a entidade em nota. “Contudo, por já ter sido constatado um problema regulatório envolvendo a relação entre as plataformas digitais e as prestadoras de serviços de telecomunicações, partindo-se do conceito de uso sustentável da rede como alternativa para equilibrar a contribuição das plataformas digitais, grandes usuários, para a sustentabilidade das redes, mostra-se cada vez mais necessária a regulação ex-ante.”
As entidades que se opõem à regulação defendem que o modelo ex-ante pode inibir o crescimento econômico e a inovação, criando barreiras à entrada de novos atores, o que pode aumentar a concentração de mercado e prejudicar os consumidores. A ideia é defendida pelo Conselho Digital; Câmara-e.net (Câmara Brasileira da Economia Digital): Center for Cybersecurity Policy and Law; Câmara Americana de Comércio, CCIA (Associação da Indústria de Computação e Comunicação); Alai (Associação Latino-Americana de Internet); e TMG (Telecommunications Management Group).
A Camara-e.net, que reúne e assessora operadores de comércio digital no Brasil, explica que a regulação faz sentido quando há uma presunção de que todas as condutas abordadas por ela devem ser proibidas, como resultado de uma falha de mercado. “Quando se fala em regulação ex-ante, aproximamo-nos de uma situação em que a compreensão basal é que, em qualquer contexto, o dano ao consumidor superaria possíveis eficiências. Por isso, a ilegalidade per se é uma ferramenta extrema que deve ser usada criteriosamente, sob pena de prejudicar eficiências que são benéficas tanto para consumidores quanto para empresas. Por esse motivo, a experiência geral do direito antitruste na maioria das jurisdições limita esse tratamento apenas a cartéis verdadeiros.”
No mesmo sentido, a Associação Latino-Americana de Internet (Alai) entende que a regulação de plataformas digitais seria justificada caso houvesse indicação de falha de mercado a ser remediada. “Em relação à regulação de plataformas digitais no Brasil, na ausência de uma falha específica do mercado, a regulamentação ex-ante não parece apropriada. Tentar encontrar uma única ‘falha de mercado’ em todos os ‘ecossistemas digitais’ também pode ser enganoso, pois isso apagaria as características individuais de cada empresa que se enquadra na categoria ‘digital’ mais ampla”, afirmou em nota.
O Conselho Digital, entidade que representa as plataformas de aplicativos no Brasil, destaca que “a legislação atual é um ponto de partida eficaz e não vemos necessidade de alteração legislativa”. Para a entidade, a legislação brasileira de defesa do consumidor é suficiente para disciplinar o mercado digital e que uma regulação seria necessária apenas “para os mercados relevantes com falhas de mercado comprovadas por evidências”. “Regulações mal projetadas podem criar barreiras à entrada, protegendo incumbentes em vez de desafiar seu status quo, e impor custos de conformidade que são desproporcionalmente onerosos. Isso pode, paradoxalmente, aumentar a concentração de mercado, reduzir a competição e prejudicar o consumidor”, sustenta.
Para a TMG (Telecommunications Management Group), empresa internacional de consultoria em tecnologia da informação, a regulamentação ex-ante de plataformas digitais imporia um conjunto de obrigações e restrições assimétricas a certas plataformas digitais, afastando-se da abordagem atual de uso de regulação ex-post caso a caso, “que se baseia em soluções antitruste e na responsabilidade para resolver potenciais preocupações concorrenciais nestes mercados”.
No âmbito do Poder Legislativo, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 2.768/2022, de relatoria da deputada Any Ortiz (Cidadania-RS), que dispõe sobre a organização, o funcionamento e a operação das plataformas digitais que oferecem serviços ao público brasileiro. Para ela, que defende o aprimoramento da legislação, o Brasil não deve “copiar e colar outras legislações”, pois os desafios enfrentados não são necessariamente os mesmos de outros países.
Paula Farani, diretora de Política de Concorrência para a América Latina da Meta, dona do Facebook, Whatsapp e Instagram, questionou o projeto de lei, por atribuir à Anatel a regulamentação das plataformas digitais. Para ela, o Cade é o órgão regulador mais adequado, pois já atua na defesa da concorrência. “No Brasil há um sistema de defesa da concorrência que soluciona os problemas, mas talvez existam alguns específicos dos mercados digitais que precisariam ser avaliados.”
O marco regulatório da internet no Brasil, atualmente, está contido na Lei Geral de Proteção de Dados, a LGPD ou Lei 13.709/2018. A seu respeito, tramitam no Supremo Tribunal Federal três ações (RE 1.037.396, RE 1.057.258 e ADPF 403). As duas primeiras questionam a constitucionalidade do artigo 19 que dispõe sobre a responsabilidade das plataformas sobre o conteúdo das postagens dos usuários. A terceira discute se o bloqueio de aplicativos de mensagem, como o Whatsapp, fere o direito à liberdade de expressão. O julgamento conjunto das três ações só deve ocorrer em novembro, mas poderá dar ao Supremo a chance de dizer a primeira palavra sobre o assunto.
Anuário da Justiça Direito Empresarial 2024
2ª edição
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