Desqualificar e ironizar a tentativa de golpe é fruto de muito esforço
28 de novembro de 2024, 8h00
1. E o jovem professor de Direito Penal brilhou na Jovem TV ou “Campeonato de várzea: os pensadores de crimes”
Abro o WhatsApp e vejo que alguém me remeteu um vídeo de um causídico sedizente professor de Direito Penal (provavelmente da Faculdade Balão Magico) e, tentando ser dramático e, quiçá, irônico, disse “sentir-se surpreso que alguém possa ser indiciado ou processado” pelo “simples fato de pensar em matar alguém”. Já começou mentindo.
E então o jovem jus Einstein “desfilou” conhecimento, falando do iter criminis… “Explicou” como é. Defendia, clara e explicitamente – a emissora é claramente engajada no meme “pensar em matar não é crime” – a tese de que planejar e coisas do gênero não têm nada a ver com possiblidade de estarmos em face do crime de tentativa de golpe de Estado (atenção: nesses crimes, tentativa já é a consumação!).
Não vou me alongar aqui sobre isso. Dezenas de juristas já escreveram – e bem – sobre isso. Em especial, sugiro os seguintes textos:
- Jayme Weingartner Neto e Ramiro Gomes von Saltiele, sob o título “Atos preparatórios são puníveis em direito penal? Sobre tramar assassinatos e golpes”.
- Golpe de 2022: elementos para a concretização do crime pela tentativa, de Fernando Fernandes e Guilherme Marchioni,
- Leonando Yarochewsky, com Breves considerações sobre o crime de abolição violenta do EDD e
- Direito de contragolpe: o que são condutas atentatórias à democracia (partes I e II), de Emerson Ramos, Lenio Streck e Marcelo Cattoni.
O jovem “professor de direito penal proto irônico” da Jovem TV deveria ler (não só ele). Como disse um grande jornal em editorial: planejar golpe de Estado é um ato de traição à pátria. O Estado foi usado contra o próprio Estado. Correto.
Há também professores bem tradicionais reclamando de que a democracia brasileira está iliberal (sic). Escondido no discurso, a justificação do golpe. Aliás, a tentativa de golpe tinha até um núcleo jurídico de apoio. Demais, não? E a operação golpista tinha o sugestivo nome de Artigo 142 – esse que gerou hermenêuticas delinquenciais.
Aliás, nunca vi tantos “especialistas em Direito” (o negacionismo jurídico veio para ficar) dando palpites sobre o novo paradigma “pensar em matar não é crime” (atenção: pensar em matar não é crime, tranquilizem-se; isso é óbvio; e nem se discute tentativa de homicídio – porque não é disso que se trata; a pretensão de matar era meio para o fim, o golpe). E acho que mais não precisa ser dito.
Se há algo de ridículo nisso tudo é a tentativa de desqualificar a tentativa de golpe com argumentos pequeno-gnosiológicos como “pensar em matar não tem nada de mal”. Isso dá Prêmio IgNobel, já que o Nobel está muito longe.
Apareceu também um membro do MP, quem, acostumado a denunciar pobres no atacado, transformou-se em garantista ad hoc, ao inventar a tese de que, como Lula não tinha sido empossado, não caberia golpe de Estado, porque ainda não era… deixa prá lá.
E assim a nave vai.
2. O Mito da Caverna na caverna e porque eles são muitos…!
O Brasil é terrível. Quem mais está ironizando e desfazendo da tentativa de golpe no qual se pretendia matar o presidente da República, o vice e dois ministros do Supremo Tribunal (no mínimo um) é a classe jurídica. As redes estão lotadas – e não só as redes – de professores (sic) e bacharéis sufragando a tese “pensar em matar não é crime” e coisas parecidas.
Tudo é fruto de muito esforço. Construímos uma imensa comunidade jurídica reacionária, que odeia a Constituição e que prega o fechamento das instituições, mormente o STF.
Há tempos, o programa Fantástico, da Globo, quis ensinar filosofia nos domingos à noite. Queria, é claro, facilitar. Genial, não? No primeiro programa a repórter-filósofa entrou em uma caverna em Tubarão (SC) e de lá buscou explicar… o Mito da Caverna. Entenderam? Caverna-que-é-igual-a-uma… caverna! Bingo. O Nobel e o IgNobel são nossos. Na sequência, para explicar Heráclito, ela subiu em um caminhão, para falar do… movimento. Céus. O que mais inventarão?
O que falei acima é alegórico. Retrata os tempos de redes sociais e “o império do simples”. Mais de 70% dizem que já não leem livros. “Alimentam-se” de memes e insta. E tik tok. E estamos indo bem na simplificação da linguagem.
Vamos criar inclusive verbetes explicando o que é um golpe de Estado. Vamos desenhar? Sim, porque, com todas as simplificações do ensino jurídico, conseguimos isso que está aí. Uma Operação 142. E Punhal Verde e Amarelo.
Eis o caldo de cultura em que pode ser encontrado o atual homo juridicus, o homo concurseirus, homo senso comunis, o homo instraganulus…
Portanto, tudo que está aí – tentativa de golpes, justificativas das tentativas de golpes, desqualificações das tentativas de golpes, desdém pela democracia – é “fruto de muito esforço”. Coisa de décadas de dedicação. Professores (principalmente da área jurídica) se esforçaram muito para formar alunos que hoje desdenham da democracia.
Professores e alunos e ex-alunos que fazem troça da tentativa de golpe. Ah, como essa gente se esforçou. E deu resultado. Como no diálogo de Zorro e Tonto, em que o primeiro perguntava: esses índios todos que se aproximam, o que me diz? E Tonto respondeu: “são muitos”.
É isso que dá investir em resuminhos e sinopses pelas quais não se faz sinapses. É nisso que dá descomplicar, facilitar, mastigar, plastificar…
Deu nisso. O jovem causídico fazendo ironia com golpe de Estado. Irônico isso, não?
3. Não riamos. Porque corremos o risco de rirmos de nós mesmos. O golpe, paradoxalmente, deu certo. Sim, lendo o que se lê por aí, o golpe deu certo
Numa palavra final: que não venhamos a rir. Se hoje no Direito há gente que relativiza golpe de Estado, é porque, paradoxalmente, o golpe deu certo. Não aponte o dedo para Reco-Reco e Azeitona. Você corre o risco de ser o Bolão.
Nós, juristas, temos culpa nisso. Imprensa e classe política, idem. Todos temos parcela de culpa. E devemos olhar para o espelho. Um ensino jurídico patético, irresponsável, que se perdeu entre estupidificações ou teorias políticas do poder. Formamos reacionários e néscios. Formamos gente que odeia a Constituição. Formamos negacionistas.
O resultado está aí. Jabuti não dá em árvore.
O golpe, paradoxalmente, já deu certo.
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