Desafios institucionais para a educação inclusiva
28 de novembro de 2024, 15h23
Por muito tempo, perdurou a percepção de que se fazia necessário uma cisão no atendimento educacional para pessoas portadoras de necessidades especiais, o que se fazia pela criação de unidades educacionais apartadas para a formação de seu público-alvo.
Outrora, pois, a convicção predominante era de que esses alunos não eram capazes de assimilar o conteúdo educacional ministrado para a generalidade do corpo discente e tampouco estabelecer relações sociais e culturais em tais ambientes de unidades escolares comuns.
Assim é que a escola especial foi criada para substituir a escola comum no atendimento a tais alunos, o que então demandava adaptações de relevo, como currículos e ensino adaptados, número menor de alunos por turma, professores especializados e outras condições particulares de organização pedagógica do processo educacional.
Sem embargo, a exclusão advinda do referido modelo de organização escolar revelou-se prejudicial no correr dos anos, na medida em que recortava a convivência social dos alunos com necessidades especiais dos demais alunos, impossibilitando os ganhos mútuos decorrentes de um ambiente escolar acolhedor e inclusivo.
Integração escolar
Nesse contexto, com o escopo de assegurar uma efetiva oferta educacional inclusiva, teve início o movimento de integração escolar, ainda que mantida em alguma medida a oferta de vagas em ambientes escolares especiais, tanto para o ensino exclusivo propriamente dito, como para o ensino complementar.
A partir daí, um grande desafio institucional ao Estado se colocou, já que ainda se revelavam e se revelam insuficientes os instrumentos disponibilizados para um regular e adequado atendimento educacional especializado, o que tem demandado a contínua atuação do Ministério Público para fazer valer o conjunto normativo que assegura a inclusão escolar.
E o fato é que a necessária atuação do Ministério Público, em geral provocada pelos pais de alunos insatisfeitos com a oferta regular aos portadores de necessidades educacionais especializadas, vem enfrentando óbices materiais, institucionais e jurídicos para se lograr o objetivo constitucionalmente assegurado.
Os óbices materiais e institucionais se apresentam pela falta de compreensão, interesse e preparo dos gestores públicos para o enfrentamento da questão e, também como não poderia deixar de ser, pela alardeada falta de recursos orçamentários para o endereçamento do tema, quer pelos problemas econômicos que atingem os municípios, quer pela disfuncional estruturação do Estado e ainda pela crônica corrupção que dilapida o já escasso erário público.
Para além disso, apresentada a demanda perante o Poder Judiciário com o escopo de ver dirimida a questão, são alardeadas inúmeras teses com o escopo de afastar a responsabilidade legal do poder público.
Judiciário envolvido em políticas públicas
Nessa senda, o primeiro questionamento jurídico que surge em tais demandas é aquele relacionado com suposta intromissão indevida do Poder Judiciário no controle de políticas públicas, o que implicaria em violação ao dogma da separação tripartite entre os Poderes, estabelecida no artigo 2º da Constituição.
Há de se observar, no entanto, que essa mesma Constituição alberga normas garantidoras do atendimento educacional inclusivo e especializado, na qual resulta que não há aí eventual conflito político-jurídico para a implementação de tal linha de ação, já que essa foi assegurada e tida como prioritária pelo Poder Constituinte originário, além de ter sido posteriormente desdobrada em uma miríade de disposições infraconstitucionais.
Nessa linha, o Texto Magno estabelece que é dever do Estado, em todas as suas esferas de atuação, a garantia de “… educação básica obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos de idade, assegurada, inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiverem acesso na idade própria” (artigo 208,inciso I), e ainda, o “atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência (artigo 208, inciso III)”.
Apoio infraconstitucional
No âmbito infraconstitucional, a norma do inciso V, do artigo 53, e 54, ambos do Estatuto da Criança e do Adolescente, e dos artigos 29 e seguintes da Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), prestigiam o atendimento especializado, pois reconhecida a educação como vetor de relevo para o pleno desenvolvimento da pessoa.
Em reforço, notem-se os artigos 27 e 28 do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/15), que dispõem expressamente sobre o direito da pessoa com deficiência à educação, assegurando sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, bem como acerca dos deveres do poder público em assegurar, criar, desenvolver, implementar, incentivar, acompanhar e avaliar medidas para que esse direito seja integralmente respeitado.
E, ainda de forma mais específica neste caso concreto, também a Lei nº 12.764/12, que prevê, em seu inciso IV e parágrafo único do artigo 3º, o acesso à educação inclusiva como direito da pessoa com transtorno do espectro autista, com disponibilização de acompanhante especializado quando comprovada a necessidade.
Observa-se também que esse direito à educação se destina aos portadores de necessidades especiais, no direito à educação especializada (inciso I, do artigo 206 da Constituição; inciso II, do artigo 54, do ECA), e a obrigação do Estado não se esgota com a simples oferta da vaga, em condições iguais àquelas oferecidas aos demais alunos, indo muito além, pois requer atendimento adequado a essas necessidades ditas especiais, a fim de assegurar a aprendizagem e o desenvolvimento, não somente dos alunos com deficiência, mas de todo o grupo (inciso III, do artigo 208 da Constituição).
Direitos da criança e do adolescente
Demais disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente visa à proteção integral à criança e ao adolescente, e preceitua, em seu artigo 4º, ser dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Dispõe-se, ainda, que as medidas de proteção devam ser acionadas sempre que direitos reconhecidos forem ameaçados ou violados por ação ou omissão estatal (inciso I, do artigo 98).
Assim, ao admitir alunos com necessidades especiais em suas escolas regulares, deve o Estado providenciar estrutura física e de pessoal adequada para que o direito à educação seja realmente efetivo a todos os alunos.
De outra linha, não há discricionariedade admissível da administração pública que se compagine com possível abdicação do dever de suprir o necessário para propiciar o ensino, direito fundamental, já que a educação é um instrumento decisivo para o pleno desenvolvimento da personalidade do jovem.
Cabe, pois, ao poder público se desincumbir desse relevante mister para assegurar um adequado e eficiente atendimento educacional especializado, quer disponibilizando professores auxiliares, de apoio, ou salas de recursos especiais.
Somente assim se assegurará com exatidão o respeito ao vetor axiológico fundante de nossa organização político-jurídica, qual seja, o de tutela da dignidade da pessoa humana.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!