Decisão do TST contradiz propósito da reforma trabalhista e fragiliza segurança jurídica
28 de novembro de 2024, 7h14
O Tribunal Superior do Trabalho (TST), ao decidir no dia 25 de novembro de 2024 pela aplicação imediata da reforma trabalhista (Lei 13.467/2017) aos contratos em curso, mesmo que limitada a fatos geradores ocorridos após sua vigência, abriu caminho para um intenso debate jurídico. A decisão, proferida no contexto de um incidente de recursos repetitivos (IRR), parece ter ignorado o objetivo fundamental da reforma, claramente estabelecido na ementa da lei, que limita sua aplicação às “novas relações de trabalho”, ou seja, aquelas iniciadas após sua promulgação.
A decisão foi tomada no caso de uma trabalhadora da JBS S.A., em Porto Velho (RO), que reivindicava o pagamento do período de deslocamento (horas in itinere) em transporte fornecido pela empresa. Esse tempo, antes da reforma, era considerado como tempo à disposição do empregador e, portanto, remunerado. A reforma trabalhista, contudo, eliminou essa obrigação a partir de sua entrada em vigor, em novembro de 2017. A controvérsia estava em determinar se essa nova regra afetaria contratos vigentes antes da reforma ou apenas aqueles firmados posteriormente.
A 3ª Turma do TST, ao analisar inicialmente o caso, havia decidido que o direito às horas in itinere fazia parte do patrimônio jurídico da trabalhadora e não poderia ser suprimido. Em razão disso, condenou a JBS a pagar o benefício por todo o período contratual, de dezembro de 2013 a janeiro de 2018. No entanto, a Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SDI-1) do TST, ao receber o recurso da empresa, encaminhou o caso ao Tribunal Pleno, dada sua relevância e o objetivo de estabelecer um precedente vinculante para casos semelhantes.
Aplicação até a véspera da entrada em vigor da reforma
Durante o julgamento no Pleno, foi decidido, por maioria, que a reforma trabalhista deve ser aplicada imediatamente aos contratos em curso, mas apenas em relação aos fatos ocorridos após sua vigência. O relator, ministro Aloysio Corrêa da Veiga, destacou que as mudanças legais, ao atingirem normas de caráter imperativo, podem ser aplicadas prospectivamente mesmo nos contratos em curso, sem que isso configure alteração retroativa. Com base nesse entendimento, a condenação da JBS foi limitada ao pagamento de horas de deslocamento até 10 de novembro de 2017, véspera da entrada em vigor da reforma.
Um ponto crucial foi levantado durante o julgamento na sustentação oral pelo advogado Nilton Correa, defensor dos interesses da trabalhadora. Ele destacou que a reforma trabalhista promoveu alterações em 363 dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), abrangendo artigos, incisos, parágrafos e alíneas. O advogado sublinhou que o legislador não incluiu disposições transitórias na nova lei, um indicativo inequívoco de que as mudanças foram desenhadas exclusivamente para as relações de trabalho iniciadas após a vigência da reforma. Essa ausência de transição normativa reforça a intenção de proteger os contratos existentes contra alterações retroativas, mesmo que estas sejam aplicadas prospectivamente a eventos futuros.
A sustentação oral do advogado Nilton Correa também evidenciou que o legislador, no exercício de sua função constitucional, foi cuidadoso em limitar os impactos da reforma às novas relações de trabalho, exatamente para evitar conflitos dessa natureza. A ausência de normas transitórias não foi acidental, mas intencional, refletindo o respeito ao princípio da estabilidade das condições contratuais e à preservação de direitos previamente garantidos. Ao ignorar essa limitação, a decisão do TST cria um precedente que compromete a confiança dos trabalhadores na justiça do trabalho como guardiã de seus direitos.
Tempo gasto de trabalhadores em deslocamentos
Entre os direitos que foram objeto de controvérsia no julgamento está o das horas in itinere, que representava um importante benefício aos trabalhadores. Este direito previa que o tempo gasto em deslocamentos, realizados em transporte fornecido pelo empregador, até locais de trabalho de difícil acesso ou sem transporte público regular, seria considerado como tempo à disposição do empregador e, portanto, deveria ser remunerado. Antes da reforma trabalhista, as horas in itinere eram garantidas como uma forma de compensar o trabalhador pelo esforço adicional despendido, muitas vezes em áreas remotas. Contudo, a reforma revogou expressamente essa obrigação, eliminando o direito para fatos ocorridos a partir de 11 de novembro de 2017.
Outro aspecto preocupante da decisão é que ela relativiza a aplicação de princípios fundamentais do direito do trabalho, como a proteção ao trabalhador e a segurança jurídica. Ao justificar a aplicação imediata da reforma com base na dinâmica das relações laborais e na incidência de normas sobre fatos futuros, o Tribunal Superior do Trabalho flexibilizou um pilar essencial do sistema trabalhista brasileiro: o respeito às condições pactuadas sob o regime jurídico vigente no momento da contratação. Isso, na prática, enfraquece o papel protetivo do direito do trabalho e pode abrir brechas para que alterações legislativas futuras sejam aplicadas de forma ainda mais abrangente e desfavorável aos trabalhadores.
Além disso, a decisão afeta a percepção pública sobre a estabilidade das relações laborais. Trabalhadores que firmaram contratos sob um conjunto de regras confiavam que essas normas seriam respeitadas ao longo de suas relações de trabalho. Ao admitir mudanças no curso desses contratos, ainda que para situações futuras, o Tribunal Superior do Trabalho introduz um grau de insegurança que pode impactar negativamente tanto trabalhadores quanto empregadores. Para os trabalhadores, significa o risco de verem direitos suprimidos; para os empregadores, a incerteza jurídica pode dificultar o planejamento e a gestão de pessoal.
Faltou cuidado com as novas relações de trabalho
O julgamento do Tribunal Superior do Trabalho, embora tenha buscado uniformizar a aplicação da reforma trabalhista, deixou de observar o propósito claro da lei e o cuidado legislativo de limitar suas disposições às novas relações de trabalho. Ao reinterpretar o alcance da reforma, a decisão compromete não apenas os direitos dos trabalhadores, mas também a integridade e a previsibilidade do sistema jurídico trabalhista. A legislação foi concebida a pretexto de modernizar as novas relações laborais, e não para intervir em contratos firmados sob a égide de um ordenamento anterior. Ignorar essa distinção é desvirtuar o objetivo da lei e abrir espaço para que princípios basilares do direito do trabalho sejam relativizados.
Essa decisão demonstra a importância de um debate contínuo sobre os limites da adaptação legislativa e o respeito às condições pactuadas, elementos que são cruciais para a preservação da confiança e da estabilidade nas relações laborais. O papel do Tribunal Superior do Trabalho, como instância máxima da Justiça do Trabalho, deveria ser o de assegurar que mudanças legislativas respeitem a essência do direito do trabalho: a busca pela justiça social e pela proteção do trabalhador em um cenário de desigualdade de forças. Ao desconsiderar esses valores, a decisão cria uma tensão que desafia os fundamentos do sistema trabalhista brasileiro.
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