Opinião

Adicional de periculosidade dos agentes de trânsito: interpretação do inc. III do art. 193 da CLT

Autores

  • é juiz do Trabalho Titular da 2ª Vara do Trabalho de Presidente Prudente; professor de Direito do Trabalho Processo do Trabalho e Prática Trabalhista da Faculdade Nove de Julho de Bauru (Uninove); professor tutor e conteudista em cursos da Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região da Escola Superior dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 15ª Região da Escola Superior da Advocacia; especialista em Direito Civil e Processual Civil e mestrando em Direito Constitucional.

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  • é mestre em Estudos de Linguagens pela UFMS desde 2016 e graduando em Direito pela Uninove de Bauru.

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28 de novembro de 2024, 18h23

A Organização Internacional do Trabalho (OIT), ao elaborar a Convenção Internacional 155 [1], orientou esforços globais para a prevenção de acidentes e a promoção da saúde no ambiente de trabalho.

Alinhada à ordem jurídica internacional, a Constituição de 1988, desde o artigo 1º até o artigo 7º, estabeleceu preceitos destinados à segurança e saúde de todos os cidadãos e em especial do cidadão trabalhador, contemplando a a percepção de adicional de remuneração para as atividades perigosas, entre outros.

Além disso, em seu artigo 225, a CF assegurou a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, definindo-o como um bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo tanto ao poder público como à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

E, nesse meio ambiente, também está inserido o meio ambiente laboral, dado que o objeto mediato da previsão constitucional citada é a garantia à saúde, à segurança e ao bem-estar para qualquer pessoa de forma ampla e irrestrita, inclusive ao trabalhador no seu ambiente de trabalho.

Para concretizar tal direito, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) traz regras sobre saúde e segurança no trabalho e, além disso, preconiza a compensação financeira do trabalhador pela exposição ao perigo, até que essa condição seja extinta pelo empregador.

No que se refere ao trabalho exercido em condições de perigo, o artigo 193 da CLT tem passado por algumas atualizações, visando aumentar o escopo de trabalhadores beneficiados pelo adicional de periculosidade, a exemplo dos (1) trabalhadores que se expõem a inflamáveis, explosivos, energia elétrica, roubos e outras espécies de violência física ligadas a atividades profissionais de segurança pessoal ou patrimonial (incluídos em 2012, pela Lei nº 12.740); e (2) trabalhadores que desempenham suas atividades em motocicleta (incluídos em 2014, pela Lei nº 12.997).

Recentemente, em 20 de setembro de 2023, a Lei nº 14.684 acrescentou o inciso III ao artigo 193 da CLT, para considerar perigosas as atividades desempenhadas pelos agentes das autoridades de trânsito, nestes termos:

“Artigo 193. São consideradas atividades ou operações perigosas, […]:
III – colisões, atropelamentos ou outras espécies de acidentes ou violências nas atividades profissionais dos agentes das autoridades de trânsito.”

É esse novo direito celetista o objeto de análise no presente artigo, com o propósito de auxiliar os operadores do Direito do Trabalho na sua atuação profissional, especialmente porque, até o momento da edição deste trabalho, não há, ainda, regulamentação aprovada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) exigida pelo “caput” do mesmo artigo.

Do risco acentuado

Os agentes de trânsito trabalham expostos a toda sorte de riscos inerentes tanto ao trânsito em si quanto ao comportamento imprevisível dos condutores fiscalizados.

De fato, os noticiários diuturnamente trazem situações de risco vividas por esses trabalhadores, tais como atropelamentos, agressões físicas e até homicídios de agentes, pelo mero exercício de suas funções.

Assim, o legislador concedeu o adicional de periculosidade para esses profissionais, conforme se verifica das considerações presentes na justificação do Projeto de Lei 447/2015, as quais enfatizam a realidade especial desse ambiente laboral:

“[…] Atuam […] em locais comumente perigosos [sujeitos] a atropelamentos e colisões. […] o risco de morte acompanha o agente de forma constante nas operações de fiscalização. […] é rotina as investidas e agressões dos infratores autuados, que sempre se sentem injustiçados frente ao cumprimento da legislação.”

É interessante observar que, considerando as diversas situações que podem colocar em risco acentuado os agentes de trânsito, o legislador – ao utilizar a expressão “outras espécies de acidentes ou violências” – trouxe ao texto legal um rol exemplificativo (e não taxativo).

Prefeitura de SP
Agente da CET orienta o tráfego em rua de São Paulo

É justamente por essa ampla gama de perigos que o adicional de periculosidade, como incremento salarial, foi considerado pelo legislador como a medida eficaz para (re)equilibrar a exposição ao perigo nesse ambiente.

Da frequência dessa exposição ao perigo

Por mais que o “caput” do artigo 193 da CLT aponte para a necessidade de exposição permanente para a caracterização do adicional de periculosidade, a jurisprudência trabalhista predominante tem garantido esse direito também ao trabalhador que fica exposto em caráter intermitente.

Nesse sentido, a redação da Súmula nº 364 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), a qual dispõe o seguinte:

“ADICIONAL DE PERICULOSIDADE. EXPOSIÇÃO EVENTUAL, PERMANENTE E INTERMITENTE.

I – Tem direito ao adicional de periculosidade o empregado exposto permanentemente ou que, de forma intermitente, sujeita-se a condições de risco. Indevido, apenas, quando o contato dá-se de forma eventual, assim considerado o fortuito, ou o que, sendo habitual, dá-se por tempo extremamente reduzido.” (Grifamos)

Tradicionalmente, a jurisprudência especializada, ao interpretar o “caput” do artigo 193 da CLT, vem adotando os seguintes entendimentos:

  1. Permanente: interpretado como diariamente, não importando se o contato do trabalhador com o elemento de risco se dê durante toda a jornada ou não (TST, E-RR 4.196/88-1, rel. min. Hélio Regato);
  2. Intermitente: Desnecessário que o trabalhador tenha contato com o agente em todos os instantes da jornada, basta que tenha contato habitual, mesmo que por curto período (TST-E-RR-467.469/1998.4, rel. Rider de Brito);
  3. Eventual: é sinônimo de acidental, de casual, de fortuito; ou seja, o contato do Reclamante com o agente de risco dependia do acaso ou de acontecimento incerto, ou ainda de um imprevisto. (TST-E-RR-467.469/1998.4, rel. Rider de Brito).

Na doutrina, considera-se permanente o contato diário, frequente e habitual. Contudo, o principal problema dessa distinção conceitual é que ainda não existe texto positivado para quantificar a frequência de exposição ao risco, de modo a permitir uma classificação objetiva.

Considerando que os parâmetros para o reconhecimento do direito ao adicional de periculosidade devem estar previstos em Lei (artigo 7º, XXIII, CF), melhor seria se o legislador adotasse critérios objetivos, como os definidos na Instrução Normativa 152 do Ministério da Economia, especialmente o disposto no artigo 9º. Vejamos:

“Artigo 9º Em relação ao adicional de insalubridade e periculosidade, consideram-se:

I – Exposição eventual ou esporádica: aquela em que o servidor se submete a circunstâncias ou condições insalubres ou perigosas, como atribuição legal do seu cargo, por tempo inferior à metade da jornada de trabalho mensal;

II – Exposição habitual: aquela em que o servidor se submete a circunstâncias ou condições insalubres ou perigosas por tempo igual ou superior à metade da jornada de trabalho mensal; e

III – Exposição permanente: aquela que é constante, durante toda a jornada laboral.”

Como se vê, a adoção de critérios objetivos, como constante na IN 15, seria uma alternativa juridicamente segura para quantificar objetivamente a frequência de exposição aos perigos inerentes ao ambiente de trabalho do agente de trânsito.

Todavia, ao lembrar da justificação presente no PL nº 447/2015, conclui-se ser pretensiosa qualquer intenção de calcular matematicamente o tempo de exposição aos perigos inerentes do labor do agente de trânsito. Afinal, é este o contexto descrito no projeto de lei:

“Este risco de morte acompanha os Agentes da Autoridade de Trânsito mesmo após estes retirarem o uniforme que caracteriza a atividade. Fato ilustrado por diversas vezes na mídia, em vários estados da federação, onde o infrator persegue e por vezes mata o fiscal. […].” (Grifamos)

Sabe-se que o método de interpretação racional – especialmente os argumentos do mens legis (espírito da lei) [2] e do mens legislatoris (vontade do legislador) [3] – permite-nos compreender a norma a partir de sua gênese e concluir que os perigos envolvidos nas atividades dos agentes de trânsito não se restringem somente às ações de fiscalizações.

É por isso que, segundo esse método interpretativo, a tentativa de estabelecer uma equação precisa sobre o tempo de exposição ao perigo dos agentes de trânsito deve ser evitada, sob pena de afrontar o espírito da lei e a vontade do legislador.

Quem são os agentes das autoridades de trânsito?

É indispensável definir quem são os “agentes das autoridades de trânsito” e, para cumprir essa tarefa, é na legislação vigente que se devem buscar os elementos que deem sentido à expressão “agentes das autoridades de trânsito”.

Pois bem. A legislação brasileira, em vários de seus diplomas, oferece indicativos de quem são esses agentes, como na Constituição Federal de 1988 que prevê, no seu artigo 144, § 10, inciso II, que:

“Artigo 144. […]
§10. A segurança viária […]:
II – compete, no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, aos respectivos órgãos ou entidades executivos e seus agentes de trânsito, estruturados em Carreira, na forma da lei.” (Grifamos)

Por sua vez, o Código de Trânsito Brasileiro define agente de trânsito como sendo:

“Servidor civil efetivo de carreira do órgão ou entidade executivos de trânsito ou rodoviário, com as atribuições de educação, operação e fiscalização de trânsito e de transporte no exercício regular do poder de polícia de trânsito para promover a segurança viária nos termos da Constituição Federal.” (Grifamos)

Enquanto isso, na justificação do PL nº 447/2015, (convolada na Lei Ordinária nº 14.684/2023 que introduziu o inciso III ao artigo 193 da CLT), menciona-se que o agente de trânsito “é o trabalhador responsável por organizar, controlar e fiscalizar o trânsito dos veículos terrestres”.

A análise dos textos supracitados demonstra que o agente da autoridade de trânsito é o servidor civil, de carreira, aprovado em concurso público do órgão executivo de trânsito, tal como, na esfera estadual, o agente de trânsito do Detran-SP que é empregado público, regido pela CLT (cf. artigo 15, parágrafo único da Lei complementar 1.195/2013) e, na esfera municipal, os empregados da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), conforme artigo 47 do estatuto social da CET.

Do marco temporal sobre o início do pagamento do adicional

A partir de quando esse novo adicional deverá ser pago aos agentes de trânsito? A resposta a esse questionamento aponta para, pelo menos, duas alternativas.

De um lado, há quem defenda a autoaplicação das normas celetistas, o que implica assumir que o direito ao adicional periculosidade existe desde a entrada em vigor da Lei nº 14.684 que incluiu o inciso III ao artigo 193 da CLT, isto é, desde 20 de setembro de 2023.

Fundamentam tal posição, na previsão do artigo 912 da CLT:

“Artigo 912 – Os dispositivos de caráter imperativo terão aplicação imediata às relações iniciadas, mas não consumadas, antes da vigência desta Consolidação.” (Grifamos)

Do outro lado, uma consistente parcela da doutrina entende que, nos casos de concessão de adicional de periculosidade, deve ser observado o princípio da reserva legal previsto no “caput” do artigo 193 da CLT.

De fato, para os que assim entendem, o direito ao adicional de periculosidade somente pode ser deferido “na forma da regulamentação aprovada pelo Ministério do Trabalho e Emprego” exigida no “caput” do mesmo diploma.

Spacca

Com efeito, assim como acontece com a exposição aos perigos descritos no inciso I, inciso II e no parágrafo 4º, do artigo 193 da CLT, seria necessário aguardar a regulamentação ministerial por meio da inserção de um novo anexo à NR 16 da Portaria MTE nº 3.214/1978, definindo-se quem é o agente de trânsito a ser beneficiado e quais são as situações de risco que podem ensejar o recebimento do adicional.

É nesse sentido o entendimento doutrinário de Homero Batista (2024):

“[…] o adicional de periculosidade para agentes de trânsito e funções análogas, inserido em 2023, fica recluso até que norma superveniente discipline a questão. […] E não se esqueça de que […] adicional de periculosidade de 30% sobre os salários dos agentes de trânsito somente terão (sic) efeito a partir da possível inserção de Anexo na NR 16 […]. (BATISTA, 2024, RL-1.47).”

Realmente, nesse ponto, o texto de lei não admite outra interpretação senão a de que, para a configuração legal do adicional de periculosidade previsto para as situações de perigo a que estão submetidos os agentes de trânsito, deve ser promovida a sua regulamentação pelo MTE.

Conclusão

Como bem se nota, em observância aos ditames constitucionais de proteção da saúde e segurança do trabalho e da necessidade de um meio ambiente laboral ecologicamente equilibrado, a CLT trouxe regras que tratam do tema, determinando, inclusive, o pagamento de adicional de periculosidade para atividades desempenhadas pelos agentes das autoridades de trânsito, novidade legislativa incluída no artigo 193 da CLT, pela Lei nº 14.684/2023.

A justificativa do legislador para incluir esse direito foi o risco acentuado a que os agentes de trânsito estão expostos no dia a dia de seu labor, sendo certo que o legislador — em razão das variadas situações que podem colocá-los em risco acentuado — trouxe um rol exemplificativo (e não taxativo) ao indicar as espécies de acidentes ou violências às quais o agente de trânsito está exposto e que podem ensejar o pagamento do adicional em estudo.

Também foi demonstrado que, a jurisprudência trabalhista predominante tem garantido o direito de adicional de periculosidade também ao trabalhador que fica exposto em caráter intermitente, nos termos da Súmula nº 364 do TST, sendo certo que, quanto aos agentes de trânsito, a tentativa de estabelecer uma equação precisa sobre o tempo de exposição ao perigo deve ser evitada, sob pena de afrontar o espírito da lei e a vontade do legislador.

Em seguida, a análise dos textos legais demonstra que o agente da autoridade de trânsito é o servidor civil, de carreira, aprovado em concurso público do órgão executivo de trânsito.

Finalmente, foi esclarecido que, segundo a interpretação mais consentânea com os conceitos jurídicos envolvidos no tema em estudo, é necessário aguardar a regulamentação ministerial sobre o inciso III do artigo 193 da CLT, em perfeita obediência ao “caput” do referido artigo, para que seja possível o efetivo recebimento do adicional de periculosidade pelos agentes de trânsito, decorrentes da inovação legislativa promovida pela Lei nº 14.684/2023.

 


[1]. Essa convenção foi concluída em Genebra, em 22 de junho de 1981, entrou em vigor no plano internacional em 11 de agosto de 1983 e no Brasil foi promulgada pelo Decreto nº 1.254, de 29 de setembro de 1994.

[2] É a análise do que foi dito pelo legislador sem considerar suas intenções.

[3] A verdadeira intenção do legislador, independentemente do que foi escrito.

Autores

  • é juiz do Trabalho Titular da 2ª Vara do Trabalho de Presidente Prudente; professor de Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e Prática Trabalhista da Faculdade Nove de Julho de Bauru (Uninove); professor, tutor e conteudista em cursos da Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, da Escola Superior dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 15ª Região, da Escola Superior da Advocacia; especialista em Direito Civil e Processual Civil e mestrando em Direito Constitucional.

  • é mestre em Estudos de Linguagens pela UFMS desde 2016 e graduando em Direito pela Uninove de Bauru.

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