Opinião

A prova pericial previdenciária como uma escolha do julgador

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  • é advogado professor doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da atuação jurídica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

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28 de novembro de 2024, 17h28

Óbvio é aquilo sobre o qual não nos perguntamos mais, como refletir sobre o ato de respirar. No entanto, de tempos em tempos é importante lembrar que as empresas insistem em disponibilizar as melhores informações sobre o meio ambiente do trabalho, mormente por motivos fiscais (tributários).

Conforme o Anuário Estatístico da Previdência Social, o Brasil produz quatro acidentes por minuto, dez mortes por dia no trabalho. Assim mesmo, é cediço que a Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) muitas vezes deixa de ser emitida. As subnotificações dificultam a mensuração dos acidentes. Por que isso? A resistência dos empregadores visa a elisão de obrigações legais.

Existe, pois, um conflito de interesses já capturado por decisões judiciais, ou seja, a partir de uma linguagem pública. No julgamento do Tema 213/TNU, o juiz federal Fabio de Souza Silva pondera que, apesar da grande relevância probatória, as informações estampadas no PPP não estão acobertadas por presunção de veracidade legal ou lógica.

“Não há presunção legal, pois em momento algum o legislador a estabelece. Não há presunção lógica, a lei cria um paradoxo: o direito do segurado à aposentadoria especial depende de uma prova produzida pela empresa que terá sua carga tributária majorada caso o direito seja reconhecido. Esse paradoxo impede o reconhecimento de uma presunção lógica de veracidade das informações contidas no PPP, especialmente aquelas sobre a eficácia do EPI. Por esses motivos, o PPP não é dotado de uma especial força probante. É um elemento a ser desafiado, ponderado, superado ou reafirmado pelo conjunto probatório que formará o convencimento do julgador sobre as condições especiais de trabalho.”

Na prática, contudo, o formulário PPP continua sendo tomado como prova absoluta da não exposição a agentes nocivos. Contradições ao infinito, quando a empresa está desativada, não é possível a prova pericial; quando a empresa está ativa, tampouco. No caso de estar em atividade, também não se admite a aplicação de laudos por semelhança. Fica fácil perceber a existência de um discurso abstrato ou genérico, incapaz de dialogar com o mundo prático. A fundamentação é, pois, só um detalhe, logo, os julgadores sequer tomam consciência das contradições e/ou incoerências internas. Isso tudo inviabiliza a demonstração do labor especial, no caso concreto, e fragiliza sobremodo a autonomia do processo previdenciário.

Alguns magistrados antecipam a valoração do resultado de uma perícia judicial em sentido contrário sob o argumento de que, mesmo assim, dariam preferência para as informações estampados no PPP “sem inconsistências”. Uma forma de justificar, de antemão, o não acolhimento da preliminar de cerceamento de defesa – uma resposta antes da pergunta, afinal, para que(m) contraditório?

De modo geral, num suposto conflito entre as informações do PPP e o laudo pericial, o tribunal dá preferência a este último, porquanto produzido com pleno contraditório, vale dizer: já que prova pericial conta com a participação das partes, mediante a formulação de quesitos/perguntas. Por outro lado, em muitos casos não se autoriza a prova pericial, prevalecendo o PPP (produzido fora do processo), sem que isso seja considerado uma afronta ao efetivo contraditório! Isso confirma que a prova pericial (só) é irrelevante até que seja feita — sem ela não saberemos.

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Pensemos nos adicionais de insalubridade ou periculosidade. A partir da Lei 9.732/1998, que emprestou nova redação ao artigo 58, da Lei 8.213/91, tem-se a exigência de que o Laudo Técnico de Condições Ambientais do Trabalho (LTCAT), com base no qual é preenchido o PPP, a ser fornecido pelo segurado como um dos meios de prova da atividade especial, observe os termos da legislação trabalhista, como é o caso da Norma Regulamentar (NR) 15, expedida pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Para José Antonio Savaris, a insalubridade previdenciária parece coincidir agora com a insalubridade trabalhista, ainda que a doutrina previdenciária possa ter uma leitura diferente daquela operada pela trabalhista [1].

Recebimento de adicionais pode ser critério de dúvida relevante

Decisões vêm levando os “adicionais de suicídio” a sério, seja para confortar a especialidade do labor: “[…] considerada também a percepção de adicional de periculosidade, merece ser mantida a especialidade reconhecida em sentença” (TRF-4, AC 5007228-92.2020.4.04.7112, 11ª Turma, relator Victor Luiz dos Santos Laus, juntado aos autos em 9/8/2024); seja para confirmar a não exposição a agentes nocivos: “Ademais, conclui pela ausência de direito ao adicional de insalubridade considerando que a atividade não se insere como de risco” (TRF-4, AC 5009118-11.2020.4.04.7001, 11ª Turma, relatora para acórdão Eliana Paggiarin Marinho, juntado aos autos em 23/10/2024).

Não vou analisar, aqui, o acerto de cada decisão — não é isso o que interessa no presente artigo. O que me interessa compartilhar é que o recebimento de adicionais pode ser um critério de dúvida relevante. Um critério de desempate? Não. Não necessariamente o tempo especial irá coincidir com o recebimento de adicional de remuneração, mas este será sempre um indício de exposição a agentes nocivos — capaz de justificar a necessidade-utilidade de uma prova pericial. A principal diferença entre o adicional da insalubridade e a aposentadoria especial é que o primeiro não serve para proteger o trabalhador, mas, e isso sim, compensar sua exposição a agentes nocivos, porquanto mais prático e barato comprar a sua saúde. Enfim, adicionais de insalubridade sugerem um meio ambiente do trabalho doente, com agentes nocivos que marcam na pele, que tiram saúde e expectativa de vida, que machucam e matam trabalhadores (“antes da hora”).

De um lado, o juiz que acredita no reconhecimento do tempo de serviço como instrumento/técnica de proteção da saúde do trabalhador (e.g.: a exposição prolongada ao agente físico ruído implica risco de surdez ocupacional), logo, este considera o adicional como uma evidência séria do labor especial, devendo, por isso, a dúvida ser computada em favor do segurado, com a autorização da prova pericial ou aplicação de laudo por semelhança. Ele sabe que procurar o verdadeiro não é procurar o desejável, mas, sim, afastar a dúvida, para o bem ou para o mal.

O indeferimento da prova pericial não é um problema única e exclusivamente do processo, mas, principalmente, do direito material. Não se trata apenas de alijar um direito processual do autor, mas prejudicar o reconhecimento do seu direito a um benefício previdenciário. Na zona gris da dúvida, ele admite a possibilidade de o trabalhador estar exposto a substâncias reconhecidamente cancerígenas no interior de uma indústria de calçados (apesar de o formulário PPP omitir os agentes químicos). Do outro lado, o juiz que só lembra do adicional para justificar sua completa adesão ao formulário PPP, ou seja, como prova absoluta da não exposição a agentes nocivos. O julgador escolhe no que acreditar.

O mesmo vale para a indicação dos códigos “01” e “04”, no campo da GFIP, bem assim a abreviação “Iean” no Cnis: “A importância de dito documento, Cnis, com a indicação de possível atividade especial, poderia ou deveria ter o condão de sugerir ao magistrado uma condução processual compatível com esse, ao menos, indício da existência de atividade especial reconhecida posteriormente pela própria empresa.” (TRF-4, ARS 5040858-04.2021.4.04.0000, 3ª Seção, relator Márcio Antônio Rocha, juntado aos autos em 8/11/2022).

Jurisprudência deixa segurado entregue à própria sorte

No acórdão que nega o direito, a preliminar de cerceamento de defesa é afastada sob o seguinte fundamento: “os PPP’s que serviram de base para a sentença foram preenchidos sem inconsistências, bem como foram devidamente assinados pelos responsáveis”. Ora, em poucos segundos, dá para encontrar na jurisprudência do TRF-4 coisas como “a adoção de procedimento diverso, principalmente quando a prova existente é unilateralmente elaborada, convém anotar, fragiliza a eficácia material do devido processo legal, acarretando, ainda, cerceamento de defesa”. Essa decisão não merece observância?

Spacca

A jurisprudência previdenciária está perdida em paradoxos e contradições, ficando o segurado à própria sorte. Tudo vai depender do juiz, do rito, da turma, enfim, justiças diferentes e opostas entre si. O respeito à dúvida, ao contraditório, continua sendo tratado como uma opção/escolha do julgador, que acredita no “livre convencimento motivado” como condição para conduzir o processo conforme a própria consciência — na construção de uma decisão que fará coisa julgada contra o segurado.

O processo previdenciário se transformou num mundo de (meras) narrativas: “formulário PPP sem inconsistências…”, “dada a diversidade das atividades…”, e assim por diante. Não é o mundo do caso concreto. Por qual razão fora do processo ninguém duvida que colas, solventes, óleos e graxas são agentes nocivos à saúde? A realidade constrange, como nos ensina o professor Lenio Streck.

O mesmo vale para o estudo de uma jurisdição constitucional. Numa prova da magistratura seria possível o juiz dizer que o processo deve seguir da contestação direto para a sentença, sem instrução probatória? Certamente ele responderia que a função do juiz é garantir o devido processo legal. Ele não precisa ser a favor de A ou B. Mas por que nos autos de um processo ele coloca sua vontade na contramão de qualquer constrangimento? Na ânsia de colocar fim ao processo, joga-se para o alto tudo aquilo que já se falou e decidiu sobre a prova pericial.

Talvez o indeferimento da prova pericial não resulte de um desinteresse pela verdade, mas da convicção de que, para a esta chegar, adotar as informações do PPP “sem inconsistências” é o caminho mais seguro e, com muito maior razão, mais rápido. Ocorre que uma supervalorização do PPP é uma opção claramente arriscada. Tomar o formulário PPP como prova suficiente para negar o direito à aposentadoria especial nos leva a uma dimensão em que os problemas da realidade são resolvidos por mimetismo, ou seja, basta a empresa disponibilizar as melhores informações sobre o meio ambiente de trabalho — mundo este em que a justiça não se faz necessária.

Por outras palavras, o fato de o formulário PPP (produzido pela empresa) não traduzir com exatidão a realidade labor do trabalhador não é um problema da justiça, vale dizer: na dúvida, pior para o trabalhador!

Uma última palavra: esse “contentamento contraditório” é retroalimentado pela doutrina previdenciária. As posturas analíticas se contentam com um olhar descritivo, apostando (quase) sempre numa abordagem dogmática. Devemos atribuir um caráter funcional aos conceitos de direito. Exemplificando: só se pode compreender adequadamente o termo “hospital” se considerado para que serve um hospital; descrever um estabelecimento como um hospital implica em reconhecer a promessa de cuidado [2].

O mesmo vale para o reconhecimento do tempo especial e, consequentemente, a aposentadoria especial, que tem como finalidade oferecer ao segurado a possibilidade de prevenção contra danos à saúde e/ou integridade física, retirando-o mais cedo do trabalho. No caso da periculosidade, é não “dar chance ao azar”, isto é, diminuir a probabilidade de um evento indesejado (e.g.: explosão de uma caldeira).  

Eis o busílis! Juristas céticos em relação à finalidade do benefício não se preocupam com indícios e/ou evidências sérias do labor especial, tampouco com a saúde do trabalhador. Juízes céticos impõem seus próprios juízos morais aos trabalhadores – que depositaram na justiça a (última) esperança de demonstrar o labor especial. Alguns julgadores, não contentes em (só)negar direitos, ainda instam o advogado a assumir os danos sofridos pelo segurado.

 

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Bah1: SAVARIS, José Antonio. Direito processual previdenciário. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 255.

Bah2: WALDRON, Jeremy. Legal and political philosophy. In: COLEMAN, Jules L; HIMMA, Kenneth E; SHAPIRO, Scott J. The Oxford Handbook of Jurisprudence and Philosophy of Law. Oxford: Oxford University Press, 2004. P. 371.

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  • é advogado, professor, doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da atuação jurídica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

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