Programa Receita de Consenso regulamentado: avanços da consensualidade fiscal
27 de novembro de 2024, 11h15
As medidas de eficiência dos órgãos tributários e aduaneiros em âmbito federal normalmente servem de exemplo e inspiração para que os estados e municípios também desenvolvam suas próprias estruturas com o objetivo de otimizar a gestão tributária, exercendo um impacto em todo o país nos mais diversos contextos. Nesse sentido, as ferramentas de prevenção e resolução consensuais de controvérsias e litígios tributários da União estão em processo acelerado de desenvolvimento e aperfeiçoamento.
Essa tendência deve ser comemorada, pois está em linha com os esforços conjuntos de diversos órgãos e instituições para uma melhor gestão do contencioso tributário no Brasil, havendo, inclusive, medidas no âmbito do Poder Judiciário nesse sentido, com a Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado à Alta Litigiosidade do Contencioso Tributário do Conselho Nacional de Justiça (Resolução CNJ nº 471/2022).
Em 18/11/2024, foi publicada a Portaria Sutri nº 72/2024, que dá maior concretude à Portaria RFB nº 467/2024, veiculadora de um novo olhar sobre a consensualidade fiscal em âmbito federal, que se realizará antes mesmo da fase contenciosa administrativa dos casos tributários e aduaneiros no programa Receita de Consenso.
A nova portaria detalha procedimentos e enfrenta as questões de organização administrativa necessária para viabilizar o programa. Ela representa um avanço significativo na busca por um ambiente fiscal mais colaborativo, permitindo que contribuintes e a administração tributária dialoguem de forma mais efetiva.
As questões abordadas por esse programa restringem-se a divergências em procedimentos fiscais já em andamento e dúvidas sobre as consequências tributárias de negócios jurídicos antes de qualquer procedimento fiscal. Destaca-se o intuito preventivo, pois todo o trâmite consensual será realizado antes mesmo da instauração do contencioso administrativo e por meio de uma ou mais audiências gravadas.
Os princípios do programa Receita de Consenso – imparcialidade, voluntariedade, boa-fé mútua, prevenção e solução consensual de controvérsias e cumprimento das soluções acordadas – permeiam diversas previsões de caráter concreto. Já na seleção dos componentes do Centro de Prevenção e Solução de Conflitos Tributários e Aduaneiros (Cecat), é exigida formação e certificação específica para o desempenho dessa atividade, providência que, certamente, colabora para a melhor qualidade das propostas de acordo, o que tem o potencial de levar a soluções mais efetivas e melhor aceitas pelas partes envolvidas.
O prestígio à boa-fé, por sua vez, fica evidente na definição do critério de ingresso do contribuinte no programa: a classificação máxima em programas de conformidade da RFB. Nesse aspecto, destaca-se o programa Confia (Portarias RFB nº 387, de 2023, e as Portarias RFB nº 402, 408 e 417, de 2024), que envolve etapas como autoavaliação do contribuinte, elaboração de Plano de Trabalho de Conformidade e certificação dos contribuintes elegíveis, que são aqueles que, entre outros, tenham estrutura de governança corporativa tributária eficaz, demonstrada pela existência e pela prática de política corporativa tributária bem definida e comunicada, aprovada no nível estratégico da empresa; estrutura de controle e gestão de riscos com processos e procedimentos capazes de identificar, mitigar e monitorar os principais riscos de conformidade tributária e aduaneira de forma contínua e consistente; sistema de gestão de conformidade tributária, comprovado por documentação que demonstre a política fiscal endossada pela administração com a descrição do método de identificação e gerenciamento da obrigação tributária; os procedimentos utilizados para cumprimento de obrigações tributárias acessórias; e os procedimentos utilizados para testar e validar a eficácia operacional da estrutura de controles internos relacionada ao cumprimento das obrigações tributárias.
A publicidade, que se revela, entre outros meios, pela transparência que deve reger a administração pública por força da própria Constituição, também foi realizada a partir da previsão de gravação das audiências e publicação.
Celeridade do procedimento consensual e objetividade na análise dos pedidos
O tempo de solução da questão fiscal, que costuma ser uma das mazelas do Judiciário, foi uma preocupação do programa, que prevê que o procedimento consensual deve ser concluído no prazo de 90 dias, prorrogável uma vez pelo mesmo período.
A nova portaria Sutri ainda trouxe maior objetividade para a análise dos pedidos de adesão, ao elencar os itens a serem considerados no despacho decisório: a matéria controvertida; o grau de incerteza sobre os fatos tributários ou aduaneiros; a existência de conduta com repercussão em lançamentos semelhantes para períodos de apuração posteriores; e a existência de jurisprudência administrativa ou judicial sobre situações idênticas ou similares aos fatos do caso concreto.
Não bastasse isso, ainda determinou objetivamente como deverá ser feita a comprovação da existência de jurisprudência administrativa sobre situações idênticas ou similares aos fatos em análise, que deverá ser realizada com a apresentação de, no mínimo, três decisões com o mesmo objeto da controvérsia. No âmbito judicial, igualmente, essa comprovação deverá ser feita com a apresentação de, no mínimo, três decisões de, pelo menos, dois Tribunais Regionais Federais (TRF) ou uma decisão do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal.
Outras iniciativas
A consensualidade fiscal refere-se à possibilidade de prevenção e resolução de litígios tributários por meio de acordos entre a administração tributária e os contribuintes, evitando ou encerrando a judicialização de questões fiscais.
Nesse contexto, a Receita Federal já havia implementado outro programa de consensualidade: o Programa Litígio Zero 2024. A Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, por sua vez, também implementou a transação tributária por meio da Portaria PGFN nº 6.757/2022. Cada um desses programas, de características distintas, se presta a resolver problemas diferentes, todos decorrentes do alto grau de judicialização tributária revelado por relatórios do CNJ.
No Programa Litígio Zero 2024 (Edital de Transação por Adesão RFB nº 1, de 18 de março de 2024), foram considerados elegíveis para transacionar os débitos de natureza tributária que já estão na fase de contencioso administrativo no âmbito da RFB, cujo valor, por contencioso, fosse igual ou inferior a R$ 50 milhões. Os benefícios possíveis envolvem parcelamentos e descontos. A transparência foi expressamente prestigiada naquele edital, com previsão de ampla divulgação na internet de todas as informações do acordo, resguardadas apenas as informações protegidas pelo sigilo fiscal. Não foi prevista exigência de classificação de conformidade fiscal para que as pessoas físicas e jurídicas possam aderir, diferentemente do Receita de Consenso, que exige essa condição.
No âmbito da PGFN, a transação é regulamentada pela Portaria PGFN nº 6.757/2022. Cotejando a regulamentação do Receita de Consenso e da Transação da PGFN, observa-se que, enquanto a PGFN confere grande relevância ao critério da capacidade de pagamento e categoriza os créditos a partir de graus de recuperabilidade (artigo 24 da Portaria PGFN 6.757/2022), a RFB prestigia os contribuintes incluídos na classificação máxima em seus programas de conformidade.
No que diz respeito aos objetivos expressos nessas normas, enquanto a Receita Federal busca evitar, mediante técnicas de consensualidade, que conflitos acerca da qualificação de fatos tributários ou aduaneiros se tornem litigiosos (artigo 2º da Portaria RFB 467/2024), a PGFN apresenta como objetivos: (1) viabilizar a superação da situação transitória de crise econômico-financeira do sujeito passivo; (2) assegurar fonte sustentável de recursos para execução de políticas públicas; (3) assegurar que a cobrança dos créditos inscritos em dívida ativa seja realizada de modo a equilibrar os interesses da União e dos contribuintes e destes com os do FGTS; (4) assegurar que a cobrança de créditos inscritos em dívida ativa seja realizada de forma menos gravosa para a União, para o FGTS e para os contribuintes; e (5) assegurar aos contribuintes em dificuldades financeiras nova chance para retomada do cumprimento voluntário das obrigações tributárias e fundiárias correntes.
Considerações finais
Em conclusão, a implementação da Portaria Sutri nº 72/2024 representa um marco significativo na promoção da consensualidade fiscal preventiva no Brasil. Ao estabelecer um diálogo mais aberto entre contribuintes e a administração tributária antes da fase contenciosa, o programa Receita de Consenso não apenas busca resolver divergências de forma mais eficiente, mas também reforça princípios fundamentais como a boa-fé e a transparência.
A exigência de conformidade e a formação especializada dos mediadores são passos cruciais para garantir a qualidade das soluções propostas, contribuindo para um ambiente fiscal mais colaborativo e menos litigioso. Assim, essa iniciativa pode ser vista como um avanço promissor na construção de um sistema tributário mais justo e eficaz, que prioriza a resolução consensual de conflitos e a prevenção de litígios.
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