Processos de crédito resolvidos no Carf por voto de qualidade: há exclusão de multa e juros?
27 de novembro de 2024, 17h14
Depois de muitos “episódios”, com direito a reviravoltas emocionantes, a “série” sobre o voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) chegou ao fim com a publicação da Lei 14.689, em 20 de setembro de 2023. Mas era apenas o encerramento da “primeira temporada”. Com as últimas alterações do Regimento Interno do Carf, em 21 de dezembro de 2023 (Portaria MF 1.634), o órgão retomou o seu ritmo de julgamentos [1] e, com isso, voltamos a nos deparar com os julgados por voto de qualidade, agora com novos efeitos. É aí que começa a “segunda temporada da série”, com o enfrentamento das limitações regulamentares e dúvidas interpretativas.
O Valor Econômico noticiou [2], em 19 de novembro de 2024, uma das primeiras decisões judiciais sobre o tema relativo ao direito do contribuinte de excluir multa e juros de débito tributário cujo julgamento foi resolvido por voto de qualidade. Naquele caso, a “matéria” [3] controvertida envolvia a análise de “decadência” que, assim como a “existência de direito creditório do contribuinte”, recebeu tratamento regulamentar específico. É o tratamento dado a essa segunda “matéria”, no âmbito da Receita Federal (RFB), que será objeto desse artigo.
Exceção relativa à “matéria” “existência do direito creditório do contribuinte”
A Lei 14.689/2023 previu, na “hipótese de julgamento de processo administrativo fiscal resolvido favoravelmente à Fazenda Pública pelo voto de qualidade”, a exclusão das multas (pela inserção do parágrafo 9º-A no artigo 25 do Decreto 70.235/72); e dos juros de mora (pela inserção do artigo 25-A, no mesmo decreto); entre outras consequências.
Em 22 de julho de 2024, foi editada a Instrução Normativa (IN) 2.205, que “regulamentou” as disposições do artigo 25, § 9º-A e artigo 25-A do Decreto 70.235 no âmbito da Receita Federal, que em última análise exige os créditos tributários confirmados pelo Carf e, portanto, é responsável pela implementação dos efeitos benéficos da lei. Foi a IN que, no seu artigo 3º, V, deu tratamento de exceção às discussões relativas a crédito do contribuinte.
Tal disposição, que em última análise pretende manter pelo menos a imposição de multa, reflete o posicionamento da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), manifestado no Parecer SEI 943/2024. São dois os fundamentos para tanto:
- Que o parágrafo 9º-A foi introduzido no artigo 25 do Decreto 70.235, que trata do julgamento do “processo de exigência de tributos e contribuições” administrados pela Receita Federal.
- Que o artigo 1º do Decreto 70.235 delimita seu âmbito de aplicação, regendo o “processo administrativo de determinação da exigência” dos créditos tributários da União (além do processo de consulta).
Para a PGFN, as conclusões acima decorrem da distinção dos processos administrativos em duas categorias: o processo de determinação ou exigência do crédito tributário, que envolve o juízo sobre a obrigação tributária do contribuinte; e o processo sobre a existência do crédito pretendido pelo contribuinte (§§ 215 a 217 do Parecer SEI 943/2024). As expressões acima destacadas (“processo de exigência” e “processo de determinação”) não abarcariam a categoria.
Primeiro, cabe analisar a efetiva distinção entre os dois tipos de processos e sua pertinência para os fins da Lei 14.689.
Os processos de crédito surgem de um pedido de ressarcimento, restituição, reembolso ou declaração de compensação do contribuinte, geralmente transmitidos eletronicamente via “PER/DCOMP” [4].
No que interessa ao presente artigo, a “DCOMP”, precedida ou não de “PER”, pode vir a ser homologada na situação em que o direito creditório é confirmado e, assim, a extinção do débito (crédito tributário constituído por declaração) é consolidada. Por outro lado, a “DCOMP” não homologada resulta em duas consequências: indeferimento do direito creditório e exigência do tributo que havia sido extinto (sob condição resolutória da posterior homologação [5]).
Mas observe que estamos falando, nesse último caso, de um único ato. O mesmo despacho decisório (DDE) que indefere o direito creditório é ato de cobrança do tributo, com juros desde a data do seu vencimento original, além de multa de mora (artigo 61, §2º da Lei 9.430/1996). É pela apresentação de manifestação de inconformidade a esse DDE que se suspende a exigibilidade do tributo, assim como é pela inércia ao atendimento à notificação desse mesmo DDE que o débito segue para inscrição em dívida ativa e cobrança executiva.
É verdade que o DDE normalmente vem acompanhado do “detalhamento da compensação”, que apresenta, para cada débito que havia sido originalmente extinto por compensação, um número de “processo de cobrança”. Mas trata-se de um processo interno da RFB, sem participação do contribuinte. O contraditório se dá integralmente no chamado “processo de crédito”.
Para o contribuinte, não existem dois processos. Diferente seria se, resolvido o processo de crédito, a exigência do crédito tributário dependesse de autuação específica, com uma segunda oportunidade de discussão, independente e desvinculada da primeira.
A controvérsia que se instaura no único processo administrativo com participação do contribuinte é, sim, sobre o direito creditório — sua certeza e liquidez —, até porque o débito (que fora objeto de compensação) é confessado pelo contribuinte e, por isso, incontroverso [6]. Contudo, a improcedência do direito creditório resulta em crédito tributário exigível, no âmbito do processo de crédito. Em outras palavras, o processo de crédito do contribuinte se transforma em processo de crédito do Fisco. A partir da não homologação da compensação, opera-se a condição resolutiva que retira do crédito (débito confessado) a qualidade de extinto, tornando-o exigível.
Nesse sentido, os processos decorrentes de DCOMP estão, sim, dentro do escopo do artigo 1º do Decreto 70.235. Decidir se há ou não crédito suficiente à extinção do débito do contribuinte não encontra melhor definição do que determinar a exigência desse último. Exatamente o mesmo resultado verificado em um processo originário de auto de infração, por exemplo.
Não faz sentido a distinção entre o “juízo sobre a existência do crédito pretendido pelo contribuinte” e o “juízo sobre a obrigação tributária do contribuinte” criada pelo Parecer Sei 943/2024/MF, se o elemento comum de ambos — o “juízo” — é o que atrai a aplicação da Lei 14.689. Com efeito, o “juízo”, aqui, pode ser traduzido como a decisão que põe fim à contenda, ou seja, a decisão “duvidosa” (ou frágil, por decorrer de critério de desempate). Aqui, o critério de diferenciação escolhido pela Fazenda (processo de crédito ou de débito, para usar uma expressão simplificada) não é congruente com a medida adotada (ter multa e juros afastados), em violação ao postulado da razoabilidade [7].
Ainda, não é demais lembrar que a redação do artigo 1º do Decreto 70.235 é de 1972 e a compensação veio a ser regulamentada, no âmbito federal, em 1996, na Lei 9.430. Portanto, a redação do artigo 1º não nasceu com a preocupação de abarcar ou excluir um tipo de contraditório então inexistente. Nada obstante, § 11 do artigo 74 da Lei 9.430 prevê expressamente que o rito processual do Decreto 70.235 é o aplicável ao processo decorrente de compensação. Isso deveria suplantar qualquer dúvida quanto à abrangência do Decreto 70.235 e prevenir a retirada de expressões do seu contexto, a fim de infirmar esse alcance.
Da mesma forma, a redação do caput do artigo 25 do Decreto 70.235 (“o julgamento do processo de exigência de tributos … compete …”) não restringe sua aplicação aos processos decorrentes de auto de infração, eis que o conteúdo de todos os seus incisos e parágrafos se aplicam, igualmente, a todos os processos no âmbito da RFB e Carf, inclusive aos chamados “processos de crédito”. Não seria diferente com o §9º-A, agora introduzido pela Lei 14.689.
Exceção relativa às ‘multas moratórias’
O artigo 3º, II, da IN 2.205 também consigna as “multas moratórias” entre as “matérias” excepcionadas. Segue, também nesse ponto, a conclusão do Parecer SEI 943/2024, segundo o qual a multa de mora de 20% “não enseja discussão no âmbito do processo administrativo fiscal” de compensação e, por isso, “não seria suscetível de exclusão”:
221. Acerca da multa de mora em caso de declaração de compensação, sua hipótese de incidência não enseja discussão no âmbito do processo administrativo fiscal, restando o questionamento prejudicado neste ponto.
222. Com base no exposto nesta seção, responde-se ao questionamento do item 1.3, nos seguintes termos: afasta-se o §9º-A do art. 25 do Decreto n.º 70.235/72 nos processos que discutem direito creditício do contribuinte, uma vez que (i) não há discussão sobre a constituição de crédito tributário e, pois, a interpretação sistemática, bem como os métodos histórico-sociológico e teleológico- axiológico afastam a subsunção do tema à hipótese prevista na referida norma e, ainda, que aplicável fosse (ii) não haveria multa correlata ao crédito não homologado que fosse suscetível de exclusão, o que torna impossível a incidência da norma.
Difícil visualizar a relação entre a causa do §221 e a conclusão do §222. Efetivamente, a multa de mora em geral não comporta discussão específica nesse tipo de processo. Mas nesse ponto não difere, por exemplo, da multa de 75% prevista no artigo 44, I, da Lei 9.430, que acompanha o lançamento de ofício (auto de infração). Ainda que não submetida à controvérsia específica, a multa de 75% é afastada em caso de voto de qualidade que mantém o crédito tributário principal (Parecer SEI 943/2024/MF, parágrafo 118; IN 2205, artigo 2º, I).
Isso porque o afastamento da multa não pressupõe a sua controvérsia.
A exclusão da penalidade decorre da fragilidade (e incerteza) em torno de um crédito confirmado por voto de qualidade. Essa é a motivação para a medida, conforme consta no parecer de plenário ao Projeto de Lei 2.384/2023 (que deu origem à Lei 14.689), quando do seu trâmite na Câmara dos Deputados [8], bem como no Parecer 67/2023 do Senado [9].
A multa de 20% terá sempre o mesmo grau de “insegurança” do seu adjacente principal, resolvido por “desempate”.
E, finalmente, os pareceres emitidos na fase legislativa não mencionam nenhuma restrição ao afastamento dos benefícios aos “processos de crédito”, o que se refletiu na redação final da Lei 14.689. Com efeito, vale retomar a redação do § 9º-A introduzido no artigo 25 e do próprio artigo 25-A, do Decreto 70.235, que se referem, respectivamente, a “julgamento de processo administrativo fiscal resolvido favoravelmente à Fazenda pública pelo voto de qualidade” e “julgamento de processo administrativo fiscal resolvido definitivamente a favor da Fazenda Pública pelo voto de qualidade”.
Qualquer regulamentação que restrinja ou extrapole o alcance dessas duas expressões, inclusive pela exclusão de “matérias”, é ilegal. É recorrente, na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o afastamento de instruções normativas ilegais, do que são exemplos os seguintes acórdãos: RESP 1.221.170; RESP 1.353.111; RESP 993.164; RESP 1.624.510; RESP 1.662.728.
Dos juros
Como a IN 2.205/2024 incluiu a “matéria” “existência de direito creditório do contribuinte” na lista de exceções do artigo 3º, poderia se concluir que a exclusão dos juros sobre os débitos compensados também estaria descartada. Mas não parece ser assim.
Referida IN dispõe no artigo 3º:
Art. 3º Ainda que decididos por voto de qualidade, os efeitos previstos no art. 2º não se aplicam às seguintes matérias:
(…)
V – existência de direito creditório do contribuinte; e
(…)
Ao excluir o processo de crédito do alcance da Lei 14.689, o artigo 3º da IN remete aos efeitos previstos no artigo 2º que, por sua vez, faz referência a outros efeitos:
Art. 2º Os efeitos de que trata o art. 1º, caput, incisos I e II, abrangem as penalidades previstas nos seguintes dispositivos …..:
O artigo 1º, caput, “dispõe sobre os efeitos previstos no artigo 25, § 9º-A e artigo 25-A do Decreto 70.235”. Já os incisos I e II tratam, respectivamente, da exclusão das multas e cancelamento da representação fiscal para fins penais (RFFP). Há um terceiro inciso, que trata do “parcelamento de que trata o Capítulo V”.
O caput do artigo 1º é mais abrangente que os incisos I e II. Isso porque remete não só ao artigo 25, § 9º-A, que trata da exclusão das multas e cancelamento da RFFP, mas também ao artigo 25-A do Decreto 70.235, que prevê a exclusão dos juros de mora até a data do acordo para pagamento.
Como se pode ver, a remissão da remissão, na redação da IN, retira a clareza do texto. E dela advém a seguinte questão interpretativa: determinar o que foi excluído do alcance da “matéria” “existência de direito creditório do contribuinte”. Foi apenas a exclusão da multa e cancelamento da RFFP ou também a exclusão dos juros?
Parece que a resposta está na própria IN, que tratou da exclusão dos juros (originária do artigo 25-A do Decreto 70.235) no inciso III do artigo 1º, ao incluir “o parcelamento de que trata o Capítulo V”. É o parcelamento do Capítulo V, no artigo 9º, que menciona a redução dos juros e remete ao artigo 5º, bastante preciso em afastar os juros, além de instituir parcelamento em 12 vezes.
Portanto, a IN deixou de incluir o inciso III do artigo 1º na lista de “efeitos” não aplicáveis aos processos de crédito, o que permite concluir que o parcelamento com exclusão dos juros é aplicável a esse tipo de contencioso.
[1] A reforma buscou, justamente, a celeridade na tramitação dos processos, como noticiou o próprio órgão em http://idg.carf.fazenda.gov.br/noticias/2022-1/conselho-administrativo-de-recursos-fiscias-tem-novo-regimento-interno
[2] https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2024/11/19/justica-federal-autoriza-contribuinte-a-pagar-divida-sem-multa-e-juros.ghtml
[3] Para usar os mesmos termos do art. 3º da IN 2205/2024.
[4] Pedido Eletrônico de Restituição, Ressarcimento ou Reembolso e Declaração de Compensação.
[5] Lei 9.430/1996, art. 74, §2º; Instrução Normativa RFB 2.055/2021, art. 65.
[6] Lei 9.430/1996, art. 74, §6º; Instrução Normativa RFB 2.055/2021, art. 65, parágrafo único.
[7] ÁVILA, Humberto, Teoria Geral dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 3ª Edição, 2004, Malheiros Editores, pp. 108-109.
[8] “…. justifica-se a previsão de regras especiais para as hipóteses em que a existência ou o valor do crédito exigido são controversos.”
[9] “… deve-se considerar que, em caso de empate no julgamento, há certa razão do contribuinte em impugnar a exigência fiscal. Assim, nos casos em que o voto de qualidade lhe for contrário, devem ao menos ser afastadas as penalidades tributárias.”
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