Consultor Tributário

Os efeitos danosos do split payment

Autor

  • é sócio fundador do escritório Brigagão Duque Estrada – Advogados presidente nacional do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa) presidente honorário da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) vice-presidente do Fórum Permanente de Direito Tributário da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro former member of the Executive Committee of The International Fiscal Association (IFA) membro do Conselho de Altos Estudos de Finanças e Tributação (Caeft) da Associação Comercial de São Paulo membro do Conselho de Administração da Câmara Britânica (Britcham) diretor da Federação das Câmaras de Comércio do Exterior (FCCE) e professor na pós-graduação de Direito Tributário da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

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27 de novembro de 2024, 13h05

A proposta de adoção do split payment na tributação do consumo, caso aprovada pelo Congresso Nacional na forma em que está, fará com que o poder público tenha de incorrer em gastos bilionários absolutamente incompatíveis com a situação em que se encontram as contas públicas, tão propalada pelo governo.

Na tomada dessa decisão, portanto, o Congresso Nacional deverá ponderar, com extremo vagar, a relação entre custos e benefícios do split payment, bem como todos os desafios que terão de ser superados para a sua implementação.

O parâmetro internacional

Desde o início dos debates relativos à proposta de reforma tributária veiculada pela PEC 45/19, os seus autores sempre sustentaram a necessidade da sua implementação no desalinhamento existente entre o sistema de tributação do consumo nacional então em vigor com o do resto do mundo.

Da mesma forma, ao incorporarem o IVA dual no bojo da PEC 45/19, originalmente previsto na PEC 110/19, os seus idealizadores novamente se valeram intensamente das experiências supostamente bem-sucedidas dos dois únicos países que o adotaram (Canadá e Índia) para justificar e regulamentar a sua adoção.

Portanto, tanto na elaboração da PEC quanto nos debates ocorridos na tramitação no Congresso Nacional que culminaram na promulgação da Emenda Constitucional 132/23, a experiência internacional sempre foi parâmetro absoluto no esforço de convencimento de que a reforma tributária no sistema brasileiro era inevitável.

Se é essa a baliza adotada no exame da adequação de regras relativas à tributação do consumo no País, torna-se também mandatório que os mesmos parâmetros sejam utilizados na avaliação de implementação do split payment. É imperioso, portanto, que se verifique a experiência  vivida pelos demais  países que o adotaram, para que se avalie o quanto acertada é a sua implementação no Brasil.

Nesse exame, a primeira constatação a que se chega é a de que foram muito poucos os países que adotaram essa sistemática. De fato, ao que saibamos, dos 175 países que implementaram o IVA na tributação do consumo, apenas 13 [1] optaram por utilizar essa sistemática, grande parte deles localizados no continente europeu [2] e na América Latina [3].

Nessa modalidade de pagamento, estabelece-se que, na liquidação de cada transação tributada pelo IVA, o valor pago pelo adquirente ao fornecedor seja automaticamente dividido: (a) a primeira parte, concernente ao preço ajustado da operação, é destinada ao fornecedor; e (b) a segunda parte, correspondente ao valor dos tributos devidos na operação, é imediatamente encaminhada aos cofres públicos.

A fundamentação da adoção desse regime apresentada pelos idealizadores da reforma sempre foi a de que ele seria eficiente, como de fato é, no combate a fraudes relativas ao pagamento do IVA, como a Carousel Fraud e a Missing Trader Intra-Community (MTIC).

Nessas fraudes, empresas fictícias são criadas com o único objetivo de promover evasão fiscal em operações intracomunitárias tributadas pelo IVA. Posteriormente, tais empresas se apropriam indevidamente do valor do IVA incidente nas operações subsequentes e, em seguida, simplesmente desaparecerem, causando prejuízos ao Fisco [4].

Com a adoção do split payment, essas fraudes são em tese eliminadas, uma vez que o recolhimento do imposto deixa de depender da discricionariedade do contribuinte. O valor devido é automaticamente direcionado aos cofres públicos no momento da liquidação de cada operação tributada.

Apesar desse louvável efeito, relativo à utilização do split payment no combate a fraudes, dos seis países que adotavam esse método de recolhimento do IVA no continente europeu, um terço deles (Bulgária e Romênia), optaram por abandoná-lo devido à sua complexidade e aos significativos desafios que ele acarretava [5].

A União Europeia e o split payment

Essas mesmas desvantagens, referidas no parágrafo anterior, levaram a União Europeia a encomendar um estudo à Deloitte para avaliar os prós e contras da adoção do regime pelos países-membros, cujas conclusões foram muito esclarecedoras [6].

Os principais prós apontados nesse estudo foram os seguintes

(1) Redução da Fraude e da Evasão Fiscal – o mecanismo de split payment é considerado medida eficaz para combater fraudes relacionadas ao IVA, como a fraude do missing trader, ao eliminar a possibilidade de fornecedores cobrarem o IVA e desaparecerem sem repassá-lo às autoridades fiscais;

(2) Melhoria na Coleta do IVA – ao remover a responsabilidade do fornecedor pelo pagamento do IVA, o mecanismo pode melhorar a eficiência na coleta do imposto, garantindo que os valores devidos sejam direcionados diretamente aos cofres públicos,

Os contras, estes outros:

(1) Pressão Sobre o Fluxo de Caixa – pequenas empresas, que geralmente têm margens muito apertadas, ou mesmo as de maior porte, podem ser seriamente afetadas com a separação automática do IVA, seja pela redução da sua liquidez, seja pela quebra do seu fluxo de caixa;

(2) Complexidade na Implementação – a adoção do split payment requer mudanças significativas nos sistemas de pagamento e faturamento, além de treinamento das partes envolvidas, o que representa significativo desafio para empresas e autoridades fiscais;

(3) Aumento dos Custos Administrativos – a implementação do split payment pode resultar em custos administrativos significativos (na ordem de bilhões) para empresas e poder público, especialmente se o mecanismo for aplicado em larga escala;

(4) Impacto do Split Payment no Aumento da Informalidade – a implementação do mecanismo pode levar algumas empresas, especialmente as pequenas e médias, a operar fora do sistema formal (exatamente o contrãrio do que se quer evitar), tendo em vista os custos adicionais relacionados à adaptação de seus sistemas e conformidade com o regime.

Levando em consideração, entre outros, os prós e contras acima referidos, o relatório conclui que, embora o split payment possa reduzir a evasão fiscal no âmbito do IVA (Vat gap), os benefícios, claramente, ficam muito aquém dos custos associados, especialmente considerando a quebra do fluxo financeiro das empresas, a complexidade do sistema e os desafios administrativos e financeiros envolvidos.

O split payment na reforma tributária

Na reforma tributária, por sugestão dos seus idealizadores, o split payment foi previsto na EC 132/2023 por meio da inserção do Artigo 156-A, §5º, inciso II, no texto constitucional:

“Art. 156-A

(…)

§5º. Lei complementar disporá sobre:

(…)

II – o regime de compensação, podendo estabelecer hipóteses em que o aproveitamento do crédito ficará condicionado à verificação do efetivo recolhimento do imposto incidente sobre a operação com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com serviços, desde que:

a) o adquirente possa efetuar o recolhimento do imposto incidente nas suas aquisições de bens ou serviços; ou

b) o recolhimento do imposto ocorra na liquidação financeira da operação;” (grifos do colunista)

Assim, ao lado da risível previsão de permitir ao adquirente de bens e serviços recolher, ele próprio, o imposto não pago pelo fornecedor para poder se creditar do respectivo valor e compensá-lo com os tributos devidos em suas operações futuras (quem em sã consciência faria isso?!), surge o split payment na liquidação financeira da operação como alternativa a ser prevista em lei complementar para viabilizar uma das maiores excrescências dessa reforma tributária, inexistente em qualquer outro lugar no planeta: o condicionamento do aproveitamento do crédito do imposto devido pelo elo anterior da cadeia ao seu efetivo recolhimento pelos respectivos fornecedores.

Spacca

Para a elaboração dos projetos de lei complementar necessários à implementação das regras de incidência do IBS e da CBS (incluindo aquelas relacionadas à implementação do split payment), representantes das três esferas da Federação se reuniram em 19 grupos de trabalho, sem que aqueles que “pagam a conta” (os representantes de entidades do setor privado) tivessem assento nessas discussões de forma efetiva. O resultado dessas reuniões foram os enviesados PLPs 68/24 e 108/24.

O split payment foi regulado pelo PLP 68/68, nos seus artigos 51 a 56. Nesses dispositivos propostos, previram-se três diferentes modalidades:

(1) o split payment (supostamente) “inteligente”, previsto nos §§ 3º e 4º do artigo 52, pelo qual, no momento da liquidação financeira da operação, apura-se o valor devido pelo sujeito passivo, já considerando os créditos relativos às operações realizadas no período corrente, bem como eventuais saldos credores acumulados de períodos de apuração anteriores;

(2) o split payment simplificado, disciplinado no artigo 53, que é baseado em alíquotas presumidas e se aplica, de forma facultativa, às vendas realizadas para adquirentes que não sejam contribuintes do IBS/CBS; os valores recolhidos dessa forma são utilizados para quitar os débitos do período de apuração; o Comitê Gestor do IBS e a Receita Federal do Brasil (RFB) deverão transferir ao fornecedor, em até 3 dias úteis após a conclusão da apuração, os valores antecipados por meio do split payment simplificado que eventualmente excedam o montante devido pelo sujeito passivo, apurado com base nos créditos  efetivamente existentes no período; e

(3) por fim, o split payment manual, que não é propriamente um sistema de dessa natureza, mas mero pagamento dos tributos diretamente pelo adquirente da mercadoria, conforme previsto no artigo 56; nesse regime, não há um terceiro intermediando a liquidação financeira entre o fisco e o adquirente; ele é aplicável somente aos casos em que o pagamento for efetuado por meio de instrumentos que não permitam a segregação de valores, como dinheiro em espécie ou cheque; sendo o adquirente contribuinte regular do IBS/CBS, poderá recolher o tributo devido pelo fornecedor e, em seguida, creditar-se do valor correspondente (essa é aquela opção risível a que antes nos referimos).

O split payment e os regimes de caixa e competência

Qualquer que seja a modalidade de split payment adotada, haverá danosa quebra de fluxo financeiro das empresas contribuintes (demonstrada pelo referido estudo da Deloitte encomendado pela União Europeia), bem como incontornável ofensa ao princípio da não cumulatividade, conforme sejam definidos os regimes (de caixa ou de competência) aplicáveis aos lançamentos de créditos e débitos.

De fato, caso adotado o regime de caixa para ambos os lançamentos, haverá indiscutível quebra da neutralidade nas compras a prazo de mercadorias vendidas à vista, em decorrência do descompasso temporal entre os respectivos lançamentos de créditos e débitos. Isso porque, nessas circunstâncias, o lançamento integral do débito ocorrerá, de uma só vez, quando da venda realizada e recebimento do respectivo preço pelo contribuinte, e os seus créditos somente serão lançados em momento futuro, no pagamento, pelo mesmo contribuinte, das parcelas futuras devidas ao fornecedor.

Por sua vez, caso o regime adotado seja o de competência tanto para créditos quanto para débitos, haverá evidente comprometimento do cash flow do contribuinte nas compras à vista de mercadorias vendidas a prazo.  De fato, nesse cenário, o débito do imposto será lançado sem que o contribuinte tenha recebido a integralidade do preço da venda que realizou, o que comprometerá a sua disponibilidade financeira para a quitação da respectiva obrigação tributária.

Somente na hipótese de a compra e a venda serem realizadas ambas à vista ou a prazo, e desde que adotada simetria de regimes (de caixa ou de competência), para lançamento de créditos e débitos, haverá, em tese, neutralidade.

No entanto, a redação atual do PLP 68/2024 prevê a ocorrência do fato gerador no fornecimento ou no pagamento, o que ocorrer primeiro, ao passo que adota o regime de caixa para fins do creditamento. Temos, assim, que, nas vendas à vista de bens cujo preço de aquisição seja pago a prazo pelo contribuinte, sempre haverá a obrigatoriedade de pagamento do tributo (débito) em momento anterior àquele em que o contribuinte terá direito ao crédito relativo às incidências ocorridas nas respectivas aquisições.

Resultado semelhante ocorrerá, se as vendas e aquisições forem feitas ambas a prazo. Nesse caso, o sujeito passivo poderá se apropriar dos créditos somente na medida em que os pagamentos forem efetuados, mas estará obrigado a recolher o IBS/CBS integralmente no momento da venda, mesmo que ainda não tenha recebido o valor correspondente à operação, o que comprometerá o fluxo de caixa da empresa, em decorrência da redução de disponibilidade financeira causada nesse cenário.

Conclusão

Portanto, além da ínfima aderência ao split payment no resto do mundo, seguida de significativas desistências por parte de países que o adotaram – o que bem demonstra o quanto a experiência internacional (tão valorizada pelos autores da reforma) foi malsucedida na sua adoção –, há várias outras razões que apontam para o grande equívoco que será a implementação dessa modalidade de pagamento no Brasil.

E, mesmo que não fosse esse o caso, ou seja, mesmo que esse sistema não contivesse em si vícios intrínsecos incontornáveis, ainda assim, ele jamais poderia ser adotado para todas e quaisquer operações realizadas em todos os setores da economia.

Ele teria de ser, como no resto do mundo, restrito às operações realizadas no âmbito de setores afeitos a práticas fraudulentas ou configuradoras de sonegação fiscal. Os devedores contumazes, esses sim, estão acostumados com a violência própria de um regime especial de fiscalização que os obriga a recolher o imposto em cada operação de forma instantânea (como ocorre nos regimes especiais de fiscalização, próprias do vigente ICMS). Os bons contribuintes, não!

 


[1] Argentina, Peru, Equador, Chile, República Dominica, Polônia, República Tcheca, Holanda, Itália, Romênia, Bulgária, Turquia e Quênia. Temos conhecimento também de que o Reino Unido estaria realizando testes para possível implementação do split payment.

[2] Obrzeżgiewicz, D. (2022). Split Payment Mechanism in the European Union – Comparative Analysis. In: Procházka, D. (eds) Regulation of Finance and Accounting. ACFA ACFA 2021 2020. Springer Proceedings in Business and Economics. Springer, Cham. https://doi.org/10.1007/978-3-030-99873-8_12

[3] MACIEL, Ana; TROIANI, Enrique, Minding the VAT Gap: Split Payment and RealTime Taxation Insights from Latin America; link: https://www.vertexinc.com/sites/default/files/2018-12/Vertex_MindingtheVATGap.pdf; acessado em 25.11.2024.

[4] https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/BRIE/2021/690462/IPOL_BRI(2021)690462_EN.pdf

[5] TEIXEIRA, Alexandre Alkmim.To Split or not to Split: o split payment como mecanismo de recolhimento de IVA e seus potenciais impactos no Brasil. Revista Direito Tributário Atual nº 50, ano 40. São Paulo: IBDT, 2022. Pag. 31 e 32.

[6] https://taxation-customs.ec.europa.eu/system/files/2018-01/split_payment_report_execsummary_2017_en.pdf

Autores

  • é presidente nacional do Cesa (Centro de Estudos das Sociedades de Advogados); presidente honorário da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro); vice-presidente do Fórum Permanente de Direito Tributário da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro; ex-membro do Executive Committee of The International Fiscal Association (IFA – 2017/18); membro do conselho de administração da Câmara Britânica (Britcham); diretor da Federação das Câmaras de Comércio do Exterior (FCCE); membro do Caeft (Conselho de Altos Estudos de Finanças e Tributação), da Associação Comercial de São Paulo; professor da Faculdade de Direito da Universidade Cândido Mendes (1993/2004); professor na pós-graduação de Direito Tributário da Fundação Getulio Vargas – FGV; sócio fundador do escritório Brigagão, Duque Estrada — Advogados.

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