Opinião

Falta de unificação da jurisprudência gera insegurança jurídica para vítimas de violência doméstica no DF

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27 de novembro de 2024, 21h12

A jurisprudência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) é caracterizada pela coerência interna de suas decisões e pelo respeito aos entendimentos pacificados pelos tribunais superiores, especialmente no que diz respeito à competência para julgar processos criminais [1]. Todavia, especificamente em relação aos casos contemplados pela Lei Maria da Penha identificamos decisões contraditórias e que não seguem o que já foi definido pelo Superior Tribunal de Justiça. Essa falta de unificação gera insegurança jurídica na efetividade de uma lei que decorre, justamente, de uma condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos [2] pela omissão e negligência em um caso gravíssimo de violência no contexto doméstico e familiar.

A questão abordada neste texto é complexa e já foi bastante controvertida: para a aplicação da Lei Maria da Penha é necessário comprovar que, no caso concreto, a vítima é vulnerável e que o crime foi motivado pelo gênero dela? Ou basta que o delito seja praticado no âmbito da unidade doméstica, da família ou de uma relação íntima de afeto, conforme previsto pelo artigo 5º da Lei 11.340/2006 [3]?

Sobre o tema, a jurisprudência do TJDFT havia se estabelecido no sentido de que somente atrairia a aplicação da Lei Maria da Penha os casos em que se pudesse constatar que o crime foi motivado pelo gênero da vítima, em situação de vulnerabilidade. Por exemplo: “para a incidência da Lei Maria da Penha não basta que a vítima seja mulher, mas também que a agressão seja praticada com base no gênero, visando a subjugar ou oprimir a ofendida em situação de vulnerabilidade, no âmbito das relações domésticas e familiares”. Inicialmente, o STJ adotava o mesmo entendimento [4].

Entretanto, iniciou-se uma discussão no Senado, a partir do Projeto de Lei 1.604/2022, que propôs a alteração da norma para garantir a sua aplicação sempre que houver violência domiciliar, familiar ou íntimo-afetiva contra a mulher. Na justificativa do projeto, apontava-se que a jurisprudência exigia a demonstração da vulnerabilidade ou hipossuficiência da mulher e a motivação baseada no gênero, o que contrariava o entendimento de que a violência de gênero é estrutural [5].

Ainda em 2022, o STJ se adiantou em relação ao Poder Legislativo e consolidou o entendimento de que “é desnecessária, portanto, a demonstração específica da subjugação feminina para que seja aplicado o sistema protetivo da Lei Maria da Penha, pois a organização social brasileira ainda é fundada em um sistema hierárquico de poder baseado no gênero, situação que o referido diploma legal busca coibir[6].

No ano seguinte, o Projeto de Lei 1.604/2022 se tornou a Lei 14.550/2023, que adicionou o artigo 40-A à Lei Maria da Penha, determinando sua aplicação a todos os crimes praticados contra a mulher no contexto familiar, doméstico e de relações íntimas, independentemente da motivação do crime e da vulnerabilidade da vítima [7].

Diante dessas alterações na jurisprudência do STJ e na Lei Maria da Penha, o próprio TJDFT sinaliza um avanço em seu entendimento inicial, aplicando a lei sem a restrição imposta inicialmente:

“II – O artigo 40-A, incluído pela Lei nº 14.550/2023, dispõe que aLei Maria da Penha“será aplicada a todas as situações previstas no artigo 5º, independentemente da causa ou motivação dos atos de violência e da condição do ofensor ou da ofendida.”

III – Conforme entendimento firme do STJ, considera-se presumida a condição de vulnerabilidade e/ou hipossuficiência da vítima que sofre violência no âmbito doméstico e familiar” [8].

Conflito com compromissos internacionais e ordenamento interno

Contudo, ainda persistem decisões recentes em sentido contrário ao artigo 40-A da Lei Maria da Penha e que fixam a competência de Varas criminais comuns, com fundamento na ausência de motivação de gênero: “além de a vítima ser do sexo feminino, é necessário que a conduta ocorrida no âmbito de relação familiar seja baseada no gênero, objetivando subjugar a mulher em situação de vulnerabilidade[9]. Existem inúmeros exemplos de decisões nesse sentido [10].

Com a devida vênia, a insistência nesse rumo decisório conflita com os compromissos internacionais estabelecidos pelo Brasil e o ordenamento jurídico interno em matéria de proteção dos direitos das mulheres. Para o correto diagnóstico da realidade no que diz respeito à violência de gênero precisamos partir da constatação de que “gênero” se vincula ao aspecto da cultura e, com o mínimo de consenso entre as diversas teorias que pretenderam explicá-lo, como sendo “a construção social do masculino e do feminino[11].

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Juiz manda riscar petição com ofensa de gênero em pedido de medida protetiva

A construção desse masculino e feminino reproduz relações de poder, onde aos homens são concedidas características valorizadas e às mulheres papeis menos valorizados ou mesmo rejeitados socialmente. Essa distribuição assimétrica de poder – imposta por uma estrutura machista – gera relações desiguais nos espaços públicos e privados, o que faz recair historicamente essas violências sobre as mulheres. Daí porque, nas palavras da professora Lourdes Maria Bandeira, é apenas pela “perspectiva de gênero que se entende o fato da violência contra as mulheres emergir da questão da alteridade como fundamento distinto de outras violências[12].

Insegurança jurídica e outras consequências

Nessa linha, a razão de existir da Lei Maria da Penha é um cenário de vulnerabilidade estrutural em relação às mulheres. Portanto, a aplicação restrita da lei, no sentido de que nem toda violência doméstica, familiar e íntimo-afetiva atrai a sua competência, carece de respaldo na interpretação autêntica da lei, nos compromissos internacionais firmamos pelo Brasil no âmbito de proteção da mulher e na literatura científica [13] sobre o tema.

Ao passo que o Conselho Nacional de Justiça tornou obrigatória a observância do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, o que deveria somar na uniformização da interpretação autêntica da Lei Maria Penha, o que vislumbramos é a incoerência entre as decisões do próprio TJDFT, o que engendra enorme insegurança jurídica e consequências graves.

Em primeiro lugar, a definição da competência nessas situações passa a depender do acaso. Em um contexto assim, a confiança e a credibilidade do Judiciário ficam prejudicadas pela percepção de injustiça que advém de decisões contraditórias. Diante disso, as vítimas podem ser desmotivadas a buscar auxílio. Ademais, isso é especialmente temerário no presente, em que as instituições do Estado Democrático de Direito, muito especialmente o Poder Judiciário, são reiteradamente atacadas de forma injusta e, por vezes, até criminosa.

Em segundo lugar, o tratamento desigual de casos semelhantes compromete o princípio da isonomia. Há a discriminação de determinados casos sem uma justificação idônea, em prejuízo ao comando legal de oferecimento de proteção igualitária a todas as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar.

Em terceiro lugar, a falta de unificação se traduz em falta de eficiência processual, pois faz com que sejam apresentados recursos, conflitos de competência e reclamações. Assim, o tribunal fica sobrecarregado com processos que discutem uma matéria que é juridicamente incontroversa. Por consequência, processos de outras matérias são atrasados pela necessidade de direcionar a atividade judicante do tribunal a casos que poderiam ser resolvidos em primeira instância.

Em quarto lugar, é possível que haja a vulnerabilização de Direitos Fundamentais das vítimas, com risco à sua segurança e integridade física, moral e psicológica. Isso porque o debate acerca da Vara competente pode levar muito tempo no TJDFT e no STJ em casos que demandam a aplicação de medidas protetivas de urgência (ou mesmo de medidas cautelares genéricas). Essa demora em se definir quem julga, o que é indiscutível, pode ser extremamente prejudicial.

Vale mencionar que uma vítima que pesquise no Google hoje sobre a possibilidade de aplicação da Lei Maria da Penha em relação à agressão sofrida por um parente vai se deparar, nos primeiros resultados, com uma página do TJDFT informando o entendimento anterior ao artigo 40-A da lei [14]:

“Desentendimento entre parentes – inaplicabilidade da Lei

última modificação: 28/04/2022 19:18

Tema atualizado em 3/12/2020.

Para a incidência da Lei Maria da Penha, não basta que a vítima seja mulher. A agressão física tem que ter sido praticada com base no gênero, visando a subjugar ou oprimir a vítima em situação de vulnerabilidade e tem que ter ocorrido no âmbito das relações domésticas e familiares. O mero desentendimento entre parentes não está sujeito à incidência da Lei 11.340/2006.”

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De um lado, é louvável que o tribunal disponibilize em seu portal informações sobre a sua jurisprudência, de forma simples e acessível. Todavia, em um tema como esse, a informação desatualizada em relação ao entendimento do STJ e à própria lei pode fazer com que uma vítima deixe de procurar um (a) advogado (a) e o Judiciário por achar, erroneamente, que a Lei Maria da Penha não pode ser aplicada [15] – a despeito de que, de fato, em razão das decisões vacilantes, é possível que ela não seja.

Portanto, em um assunto tão sério, é importante que o TJDFT mantenha a sua notável coerência ao decidir, resolvendo esses casos de inconsistência na fixação da competência. Atualizar suas páginas institucionais sobre o tema também é essencial, considerando o compromisso do Poder Judiciário em garantir o direito à informação adequada à população, especialmente a grupos vulnerabilizados. Assim, o esforço do Tribunal em democratizar as informações necessita caminhar com a qualidade e revisão delas.

Em conclusão, a inconsistência do TJDFT na fixação de competência de casos de violência doméstica e familiar contra a mulher representa uma lacuna na proteção oferecida às vítimas. Essa falta de unificação gera insegurança jurídica, violação do princípio da isonomia, falta de confiança no Judiciário, sobrecarga de processos no TJDFT e STJ e a vulnerabilização de direitos das mulheres. Tudo isso em casos relacionados a compromissos internacionais dos Direitos Humanos das Mulheres, em relação aos quais o próprio Poder Legislativo demonstrou uma preocupação especial.

As reflexões desse texto visam contribuir para a demonstração do quão é imprescindível que o TJDFT harmonize suas decisões, seguindo o espírito da Lei 11.340/2006, reforçado no pelo artigo 40-A, e o entendimento do STJ, no sentido de que a lei se aplica independentemente da demonstração da motivação de gênero no caso concreto e da situação de vulnerabilidade/hipossuficiência da vítima. Tal medida é necessária para que as mulheres tenham acesso igualitário e eficiente às proteções previstas no arcabouço normativo interno e internacional. E mais, para que o Brasil avance no enfrentamento à violência de gênero estrutural.

 


[1] Sobre isso, vale mencionar o artigo “Competência para julgar desvios de verbas do SUS: o caso do DF”, publicado no Conjur há cerca de um ano, em que um dos autores deste texto elogiou a postura do Tribunal de corrigir os reiterados erros da primeira instância acerca da competência para julgar desvios de verbas do SUS. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-set-08/castro-sousa-competencia-julgar-desvios-sus/.

[2] A Lei 11.340/2006, nomeada Lei Maria da Penha, cumpre o compromisso do Estado Brasileiro ao incorporar a Convenção Para Prevenir, Punir, e Erradicar a Violência contra a Mulher, a Convenção de Belém do Pará, da Organização dos Estados Americanos (OEA), ratificada pelo Brasil em 1994, e à Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw), da Organização das Nações Unidas (ONU), ao ordenamento jurídico interno.

[3] “I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação”.

[4] Exemplos de julgados nesse sentido: STJ, AgRg no REsp n. 1.430.724/RJ, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª T., j. 17/3/2015, DJe 24/3/2015 e STJ, AgRg no REsp 1900484/GO, rel. Min. Felix Fischer, 5ª T., j. 02/02/2021, DJe 17/02/2021

[5] Veja-se a justificava do Projeto de Lei 1.604/2022: “A Lei Maria da Penha (LMP) foi editada com a finalidade de promover a proteção ampla e integral de todas as mulheres que venham a sofrer violência nas relações domésticas, familiares e íntimas de afeto. O programa normativo subjacente à lei é o de que todas as mulheres que sofrem violência nesses contextos merecem uma proteção diferenciada e efetiva, diante da cultura sexista que fomenta a violência estrutural, naturalizada e invisibilizada a todas as mulheres. Em outros termos, a categoria ‘violência baseada no gênero’ não é um pré-requisito probatório a ser aferido no caso concreto. É o pressuposto político da lei, entendida como ação afirmativa que se antepõe à violência baseada no gênero numa sociedade machista, violência essa que advém do poder desigual de gênero de longa duração, no passado legitimado, inclusive, pelo Direito”.

[6] AgRg na MPUMP 6/DF, rel. min. Nancy Andrighi, Corte Especial, DJe 20/05/2022.

[7] Art. 40-A. Esta Lei será aplicada a todas as situações previstas no seu art. 5º, independentemente da causa ou da motivação dos atos de violência e da condição do ofensor ou da ofendida.

[8] Acórdão 1931463, Conflito de Competência 0731029-21.2024.8.07.0000, rel. desemb. Nilsoni de Freitas Custodio, Câmara Criminal, DJe 21/10/2024. No mesmo sentido: Acórdão 1931459, Conflito de Competência 0734470-10.2024.8.07.0000, rel. desemb. Arnaldo Corrêa Silva, Câmara Criminal, DJe 15/10/2024

[9] Acórdão 1931467, Conflito de Competência 0731046-57.2024.8.07.0000, rel. desemb. Sandoval Oliveira, Câmara Criminal, DJe 16/10/2024.

[10] Veja-se: (i) Acórdão 1927677, 0734552-41.2024.8.07.0000, rel. desemb. Esdras Neves, 1ª Turma Criminal, DJe 08/10/2024; (ii) Acórdão 1917789, 0753946-54.2022.8.07.0016, rel. desemb. Arnaldo Corrêa Silva, 2ª Turma Criminal, DJe 16/09/2024; (iii) Acórdão 1896853, 0703054-03.2024.8.07.0007, rel. desemb. Gislene Pinheiro de Oliveira, 1ª Turma Criminal, DJe 21/08/2024; (iv) Acórdão 1893257, 0721297-16.2024.8.07.0000, rel. desemb. Leila Arlanch, Câmara Criminal, DJe 29/07/2024; (v) Acórdão 1887097, 0719313-94.2024.8.07.0000, rel. desemb. Simone Lucindo, Câmara Criminal, DJe 12/07/2024; (vi) Acórdão 1806023, 0746975-67.2023.8.07.0000, rel. desemb. Roberval Casemiro Belinati, Câmara Criminal, DJe 14/02/2024; e (vii) Acórdão 1809398, 0752224-96.2023.8.07.0000, rel. desemb. Gislene Pinheiro de Oliveira, Câmara Criminal, DJe 11/02/2024.

[11] SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. Ministério Público do Estado da Bahia, 2004.

[12] BANDEIRA, Lourdes Maria. Violência de gênero: a construção de um campo teórico e de investigação. In Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto/ Angela Arruda (et al); organização Heloisa Buarque de Hollanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019, p. 293.

[13] A exemplo valem os ensinamentos de Carmen de Campos e Isadora Machado: “O gênero (que estrutura as relações hierárquicas) fundamenta a violência baseada no gênero, ou seja, a violência que é exercida sobre corpos femininos e feminizados em virtude das relações assimétricas de poder. Por isso, a violência prevista na lei Maria da Penha não pode ser desvinculada do gênero. Assim, toda e qualquer violência praticada contra mulheres nas relações domésticas, familiares e íntimo-afetivas é uma violência baseada no gênero porque reflete as relações assimétricas de poder que conferem ao masculino um suposto ‘mando’ ou supremacia e às mulheres uma suposta ‘obediência’ ou inferioridade. Essa é a razão pela qual não há que se questionar se há ‘motivação de gênero’ e/ou qualquer outra condição, pois essas são dadas pelas relações hierárquicas e assimétricas de poder construídas em uma sociedade patriarcal e não pela biologia.” (CAMPOS, Carmen Hein de; MACHADO, Isadora Vier. “Lei Maria da Penha – Lei n. 11.340 de 7 de Agosto de 2006”. In: Manual de Direito Penal com Perspectiva de Gênero, org. Carmen Hein de Campos, Ela Wiecko V. de Castilho, 2ª tiragem, 195-216. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022, p. 198).

[14] Link: https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/lei-maria-da-penha-na-visao-do-tjdft/sujeitos-e-requisitos/requisitos/desentendimento-entre-parentes-inaplicabilidade-da-lei, acesso em 23/11/2024.

[15] A esse respeito, vale pontuar que após se informar a partir da página citada, uma pessoa procurou Vinícius André de Sousa, um dos autores desse texto, com essa ideia equivocada. Nesse caso, foi possível esclarecer o entendimento atualizado do STJ e a correta aplicação da Lei Maria da Penha, mas a inquietação do advogado em relação a possibilidade de outras vítimas não receberem as informações corretas fez surgir a ideia desse artigo.

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