Ecos da grilagem no PL do Carbono: necessidade de veto
27 de novembro de 2024, 16h19
O Congresso acaba de aprovar e remeter à sanção do presidente da República o Projeto de Lei nº 182/2024, que institui o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE), e altera a Lei nº 12.187, de 29 de dezembro de 2009 (Política Nacional sobre Mudança do Clima), a Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012 (Código Florestal), a Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976 (Lei da Comissão de Valores Mobiliários), e a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei dos Registros Públicos).
O artigo 1º define o que é o SBCE, sendo importante destacar que este se conceitua por ser um sistema regulado que delimita os setores produtivos que a ele estão submetidos, sempre estando sob a responsabilidade de operadores, dentro de uma modelo de cap and trade e que resumidamente é um sistema que define os limites de emissão de gases de efeito estufa (GEE) que uma atividade econômica pode emitir e, permite que as emissões reduzidas ou evitadas sejam comercializadas em um modelo imobiliário, rastreável, todos previamente realizadas segundo metodologias previamente aprovadas.
O legislador brasileiro é importante dizer, conceitua o crédito de carbono por exclusão ao SBCE, embora aquele também seja representativo da redução de emissões de gases de efeito estufa, o marco legislativo define por exclusão das metodologias aprovadas no SBCE, e por isso somente as reduções realizadas segundo esta é que se constituem como Cota Brasileira de Emissões (CB ou CBE) ou Certificado de Redução ou Remoção Verificada de Emissões (CRVEs).
A definição de crédito de Carbono, prevista no artigo 2º , inciso IV deixa isto claro, quando usa os elementos que integram o crédito e sua forma de origem, em atividades florestais, mas “submetidos a metodologias nacionais ou internacionais que adotem critérios e regras para mensuração, relato e verificação de emissões, externos ao SBCE”. In verbis:
“Art. 2º –
VI– crédito de carbono: ativo transacionável, autônomo, com natureza jurídica de fruto civil no caso de créditos de carbono florestais de preservação ou de reflorestamento – exceto os oriundos de programas jurisdicionais, desde que respeitadas todas as limitações impostas a tais programas por esta Lei –, representativo de efetiva retenção, redução de emissões ou de remoção, nos termos dos incisos XXX e XXXI deste artigo, de 1 tCO2e (uma tonelada de dióxido de carbono equivalente), obtido a partir de projetos ou programas de retenção, redução ou remoção de GEE, realizados por entidade pública ou privada, submetidos a metodologias nacionais ou internacionais que adotem critérios e regras para mensuração, relato e verificação de emissões, externos ao SBCE;”
A Leitura do artigo 42 do PL, confirma esta interpretação ao exigir que os créditos de carbono seja gerados pro metodologias não só sejam externas ao SBCE, mas que a regulamentação se dê pela Conaredd+ , mas afirma que estes não geram créditos de carbono ou CRVEs que possam ser comercializadas, e, além disso veda expressamente a conversão em CRVE de créditos de carbono , salvo se a metodologia credenciada pelo SBCE reconhecer a efetiva redução de emissão ou remoção em créditos dessa origem, ou, seja, na verdade ela deixa de ser “crédito de carbono” e passa a serve CRVE, entrando no SBCE.
“Art. 42. Os créditos de carbono gerados a partir de projetos ou programas que impliquem redução de emissão ou remoção de GEE poderão ser ofertados, originariamente, no mercado voluntário, por qualquer gerador ou desenvolvedor de projeto de crédito de carbono que seja titular dos créditos, nos termos do art. 43, ou por ente público desenvolvedor de programas jurisdicionais e projetos públicos de crédito de carbono, respeitadas as condições dos arts. 12 e 43 desta Lei.
§1º Os incentivos financeiros do programa estatal de REDD+ de não mercado não geram créditos de carbono ou CRVEs que possam ser comercializados ou transferidos e não podem impedir direitos de terceiros a gerarem créditos de carbono ou CRVEs em seus imóveis, sendo o acesso aos recursos decorrentes desses incentivos de abordagem de não mercado regulamentado em âmbito nacional pela CONAREDD+.
§2º É expressamente vedada a conversão em CRVE de créditos de carbono do mercado voluntário decorrentes de atividades de manutenção ou de manejo florestal sustentável, salvo se metodologia credenciada pelo SBCE reconhecer a efetiva redução de emissão ou remoção de GEE em créditos com essa origem.”
O que se pode perceber é que o legislador criou dois caminhos para conduzir ao mesmo resultado, redução de gases de efeito estufa, sendo que conforme o caminho adotado, se forma CRVE ou crédito de carbono, mas o resultado final seria o mesmo, embora distintos os caminhos de comercialização, seria semelhante, com a distinção entre a condução de energia, que pode ocorrer em alta ou baixa tensão a corrente, o que exige modelos diferentes de corrente elétrica, como a corrente continua ou alternada, nas ambas são formas de permitir o uso de energia.
Assim, num modelo comparativo, o SBCE funcionaria como o modelo de corrente alternada de eletricidade por ser mais detalhado, e com maior controle, e, por isso mesmo se tem menos perda de controle de gases de efeito estufa, já o modelo de crédito de carbono, seria como o modelo de corrente continua por atuar em maior escala na promoção de redução de emissões de GEE, o que tem mais incertezas, e, por isso mesmo, só seria convertida em CRVEs se adotar um modelo previsto pelo SBCE, dai que ser uma mercado voluntário, onde predomina a confiança, segundo a metodologia acordada pelas partes, ainda, quando, tenha uma abordagem de mercado, o que ocorre principalmente como o modelo jurisdicional de REDD+.
Estas diferenças, então permitem entender, que é preciso antes se escolher o caminho, e, no nosso caso, vamos nos concentrar no modelo de crédito de carbono, que é o mais aplicável à Amazônia, visto que os modelos agroflorestais de uso da terra, predominam nas atividades econômicas, mas se pretende aqui uma analise completa, até por inviabilidade, mas sim, apresentar um elemento importante, ao debate público, que precisa ser observado, que é necessidade de veto, ou posterior combate, pra se evitar um meio “legal” de grilagem de carbono, que identifica-se no PL, remetido à sanção presidencial.
Experiência de litigância climática de grilagem de carbono
Primeiramente, resgata-se que o estado do Pará já promove modalidade de litigância climática, a partir do ajuizamento de 3 ações judiciais contra o comércio ilegal de créditos de carbono, tendo por objetivo declarar a nulidade de projetos de REDD+ incidentes sobre terras públicas, envolvendo cerca de 1.321.000 de hectares), que foram realizados sem o conhecimento e anuência do poder público, além de afetar direitos dos povos, comunidades tradicionais e quilombolas, envolvendo contratos do comercio voluntário, além de obter indenizações por danos materiais e morais, cunhando-se a expressão de “grilagem de carbono”, sendo a primeira ação protocolada, sob o número 0814181-47.2023.8.14.0051, envolve o REDD+ Vale do Jari, ajuizada contra a empresa Jari Celulose, onde o termo aparece pela primeira vez, em trâmite na Vara Agrária de Santarém.
O relatório anual “Global Trends in Climate change Litigation: 2024 snapshot” elaborado por Joana Setezer, e Catherine Higmanm, divulgado em junho de 2024, reporta entre as ações mais relevantes de litigância climática do ano de 2023, a inovação das ações judiciais de combate à grilagem de carbono (forest carbon grabbing).
Dentro dessa experiência de litigância climática, fica evidente que é preciso prevenir que as terras públicas, sejam objeto de projetos de REDD+ sem a devida anuência do poder público, ou em prejuízo à comunidades tradicionais.
Aqui que surge a questão, quando o Capítulo IV, do PL, prevê a chamada Oferta Voluntária de Credito de Carbono, nos artigos 42 a 46, descreve não só quem pode ser titular dos créditos de carbono, mas sobre tudo conecta estes com os tipos de territórios ou modelos de propriedade e usufruto da terra, o que significa então, que é sobretudo o tipo de domínio e aplicação de uso que define a legitimidade ao recebimento dos eventuais direitos decorrentes de projetos de REDD+, o que está sumariamente descrito, no caput do artigo 43, que a titularidade originária dos créditos de carbono cabe ao gerador de projeto de crédito de carbono, sendo válida, como forma de exercício dessa titularidade, a previsão contratual de compartilhamento ou cessão desses créditos em projetos realizados por meio de parceria com desenvolvedores de projetos de crédito de carbono, que também passam a ser titulares.
Ou seja, o desenvolvedor de projetos [1] cria a principio a legitimidade da titularidade dos créditos, mas por que estes não podem ser realizados, sem o suporte da terra, e, obviamente, da floresta ou área onde ser realiza o reflorestamento, o mesmo artigo 43, incisos I a IX, introduz o conceito de titularidade originária, que podemos definir, a míngua de previsão expressa do legislador, como à quem pertence em primeiro lugar os créditos de carbono, cujos direitos devem ser respeitados antes de se tornarem geradores de projeto [2], que devem livremente decidir se usam o direito de propriedade ou usufruto com esta finalidade.
O legislador define como titularidade originária os créditos de carbono em imóveis de propriedade e usufruto:
1) da União, gerados em terras devolutas e unidades de conservação federais e nos demais imóveis federais;
2) dos estados e do Distrito Federal em unidades de conservação estaduais e distritais e nos demais imóveis estaduais e distritais;
3) dos municípios em unidades de conservação municipais, e nos demais imóveis municipais;
4) proprietários ou usufrutuários em imóveis de usufruto privado;
5) das comunidades indígenas nas respectivas terras indígenas descritas no artigo 231 da Constituição;
6) comunidades extrativistas e tradicionais nas respectivas unidades de conservação de uso sustentável que admitem sua presença, previstas nos incisos III, IV e VI do caput do artigo 14 da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000;
7) das comunidades quilombolas nas respectivas terras previstas no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias;
8) dos assentados beneficiários de programa de reforma agrária residentes em projetos de assentamento nos lotes de projetos de assentamento, independentemente de já possuírem ou não título de domínio, o que a principio embora fosse mais simples definir a base da propriedade ou usufruto, sem precisar definir cada um tipo, não se deve opor a estas definições legais.
Por fim, no inciso IX do artigo 43, define como ultima modalidade de titularidade originaria a dos demais usufrutuários sobre os créditos de carbono gerados nos demais imóveis de domínio público não mencionados nas oito modalidades descritas retro, desde que o usufruto não seja do ente público que tem a propriedade do imóvel.
Então cria-se uma abertura legislativa que em tese se permite a particulares desenvolver projetos de carbono em terras públicas, o que pode incentivar a grilagem de carbono, pois não deixa expresso que deve haver a autorização do poder público. Por isso deve ser vetado, com fundamento em contrariedade ao interesse público, vez que criaria modalidades de direitos possessórios sobre terras públicas.
Basta lembrar que reconhecer esta legitimidade de usufruto como titularidade originária não contraria a inteligência do artigo 191, parágrafo único, da Constituição, bem com as sumulas 619 e 637 do STJ, que não reconhecem qualquer tipo de posse sobre terras públicas, já que o usufruto é modalidade de posse, já que o Código Civil, artigos 1.391 e 1.934, definem que o usufruto de imóveis, quando não resulte de usucapião, constituir-se-á mediante registro no Cartório de Registro de Imóveis, e que o usufrutuário tem direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos.
Embora se possa interpretar, que esta modalidade de titularidade originária, depende da demonstração de legitimidade do usufruto, o que demandaria consentimento do titular do domínio público, poderia induzir, ainda, a interpretação de que nestes casos, seria uma forma de dispensa de licitação para a geração de créditos de carbono, o que também seria contra o interesse público.
Visto que a licitação para o uso de bens públicos deve ser a regra, inclusive o artigo 49 do PL, prevê que o desenvolvimento de projetos de geração de créditos de carbono que podem vir a ser habilitados como CRVEs em áreas de propriedade e usufruto públicos fica vinculado aos procedimentos de acompanhamento, manifestação e anuência prévia dos órgãos responsáveis pela gestão dessas áreas, enquanto o desenvolvimento de projetos de geração de créditos de carbono também passíveis de serem habilitados como CRVEs em áreas de domínio público mas de usufruto legítimo de terceiros, nos termos do artigo 43 desta lei, deve ser comunicado previamente ao órgão público a elas diretamente relacionado, para eventual acompanhamento a pedido dos titulares do crédito de carbono, mas poderiam gerar o risco de se interpretar que isto somente ocorreria no caso de se revolver habilitar os créditos no SBCE, o que não se aplicaria ao mercado voluntário, ou, ainda, que o desenvolvimento de projetos por si só criaria direitos ao possuidores.
Conclusão
Esse é um dos ecos da grilagem de carbono que demanda o veto urgente do inciso IX do artigo 43 do PL 182/2024, por contrariedade ao interesse público e criar modelo possessório de usufruto sobre terras públicas reconhecendo titularidade originária de gerador de crédito de carbonos para desenvolvedor de créditos de carbono em terras de domínio público, sem a expressa anuência do poder público.
[1] Comforme o art. 2º, incis V do PL, Desenvolvedor de pr ojeto de crédito de carbono é pessoa jurídica, admitida a pluralidade, que implementa, com base em uma metodologia, por meio de custeio, prestação de assistência técnica ou de outra maneira, projeto de geração de crédito de carbono, em associação com seu gerador1nos casos em que o desenvolvedor e o gerador sejam distintos;
[2] Conforme o art 2º inciso XII , o gerador de projeto de crédito de carbono é pessoa física ou jurídica, povos indígenas ou povos e comunidades tradicionais que têm a concessão, a propriedade ou o usufruto legítimo de bem ou atividade que se constitui como base para projetos de redução de emissões ou remoção de GEE.
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