Direito de contragolpe: o que são condutas atentatórias à democracia (parte 2)
27 de novembro de 2024, 13h12
Continuação da parte 1
Limites entre atos preparatórios e atos executórios
Sequenciando o texto anterior, há que se falar dos limites entre atos executórios (puníveis) e atos preparatórios (excepcionalmente puníveis), que é um dos temas mais tortuosos do Direito Penal, uma vez que as fórmulas elaboradas pela literatura jurídico-penal são muitas vezes abertas e oferecem pouca segurança jurídica. O inciso II do artigo 14 do Código Penal brasileiro estabelece que a tentativa se configura quando há o início da execução do crime.
A redação brasileira, embora concisa, possui um fundamento histórico sólido. Ela representa a adoção de um critério objetivo para a punição da tentativa, ou seja, a relevância penal do comportamento depende da exteriorização de atos que demonstrem a intenção criminosa. Essa abordagem, ao afastar considerações puramente subjetivas, garante maior segurança jurídica e evita punições por simples pensamentos ou atos preparatórios.
Muitas são as teorias que tentam dar conta dos limites entre ato preparatório e ato executório, tais como a teoria puramente subjetiva, a teoria formal-objetiva, a teoria objetivo-material, a teoria da colocação em perigo, a teoria das esferas, etc. Nesse ecossistema de teorias, tendemos a concordar com Eduardo Viana [1], quando afirma:
“ O Código Penal brasileiro não adotou qualquer critério de orientação em relação à delimitação entre a preparação e a tentativa (i). De lege lata, nosso Código é compatível com qualquer teoria objetiva e incompatível com as teorias subjetivas (ii). A determinação do início da tentativa deve ser sugerida, preferencialmente, à luz de uma teoria que combine critérios (iii). A teoria da colocação em perigo expressa o critério decisivo para o início da execução (iv). A missão da ciência será desenvolver os critérios materiais à luz da investigação sobre a ratio da punibilidade da tentativa (v).”
Nesse sentido, os estudiosos e estudiosas do Direito Penal conhecem a famosa “operação toupeira”. A operação, deflagrada em setembro de 2006, resultou na prisão de uma organização criminosa especializada em furtos a instituições financeiras. Um dos integrantes foi capturado no interior de um túnel clandestino com cerca de 70 metros de extensão, escavado a uma distância de 12,8 metros de um banco [2].
A investigação policial, que se estendeu por dois meses, revelou que a organização criminosa planejava adentrar a instituição financeira através do túnel para subtrair dinheiro, joias e outros bens. A decisão de aguardar a conclusão da escavação visava a prisão em flagrante de todos os envolvidos, otimizando o resultado da operação.
A defesa dos acusados alegou que os atos de escavação do túnel eram meramente preparatórios, não caracterizando o início da execução do crime de roubo. Essa tese se alinha à teoria objetivo —formal, que entende que o início da execução se dá com a prática do verbo nuclear do tipo penal, ou seja, no caso do roubo, com a subtração da coisa móvel alheia. No julgamento desse caso pelo STJ, na ocasião do julgamento do REsp 1.252.770, o ministro relator Rogério Schietti, contudo, admitiu a conjugação de critérios distintos para a solução do caso.
No julgamento, o ministro afastou a aplicação pura e simples da teoria objetivo-formal, reconhecendo a necessidade de uma análise mais complexa e individualizada. Ele destacou a importância de considerar “outros parâmetros materiais e subjetivos” para determinar se houve, de fato, o início da execução.
Para fundamentar seu entendimento, o STJ adotou os parâmetros propostos por Hans Frank [3], que — conforme Juarez Cirino dos Santos [4] —: se baseiam na avaliação da “elevada probabilidade de produção do resultado, caracterizada em atividade imediatamente anterior à ação do tipo, mas pertencente à ação típica conforme um juízo material”. Nesse mesmo sentido, o ministro relator Rogério Schietti considerou em seu voto que:
“De fato, quando o agente penetra no verbo nuclear está, sem dúvida, executando atos executórios. No entanto, ao praticar comportamentos periféricos que, conforme o plano do autor, uma vez externados, prescindem da execução do verbo típico para, de forma efetiva, evidenciar o risco ao bem jurídico tutelado pela norma penal, também estaria iniciada a execução do crime.”
Segundo a teoria objetivo-material, o início da execução ocorre quando a conduta do agente se encontra imediatamente anterior à ação típica e demonstra uma elevada probabilidade de consumação do crime. A decisão do STJ demonstra uma preocupação em evitar uma interpretação rígida da teoria objetivo-formal, que poderia levar à desproteção de bem jurídico contra condutas que, embora não tenham se consumado, representam um perigo concreto a esse mesmo bem jurídico tutelado. Ao adotar os parâmetros de Frank, o tribunal valorizou elementos como a proximidade temporal e espacial entre a conduta e a consumação do crime, bem como a intensidade da vontade criminosa do agente.
Como visto até aqui, assiste razão o senador Flávio Bolsonaro, quando diz: “Por mais que seja repugnante pensar em matar alguém, isso não é crime. E para haver uma tentativa é preciso que sua execução seja interrompida por alguma situação alheia à vontade dos agentes”. O que precisamos verificar, contudo, é complemento de sua frase: “O que não parece ter ocorrido”. No próximo tópico, vamos verificar as condições jurídicas para que se configure a tentativa (e não apenas atos preparatórios impuníveis) nos crimes contra as instituições democráticas.
Afinal, houve crime(s) contra as instituições democráticas praticado por Bolsonaro e seus asseclas?
Como dito no início do artigo, dois são os crimes contra as instituições democráticas: “abolição violenta do Estado democrático de Direito” (artigo 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência) e “golpe de Estado” (artigo 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência).
Os tipos penais em questão criminalizam a tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito, exigindo dolo específico, ou seja, a clara intenção de destruir a ordem constitucional. É preciso observar que, em ambos os tipos penais, o núcleo do tipo é o verbo “tentar”. Isso significa dizer que se trata de crimes de empreendimento (ou de atentado), espécies de crime onde a tentativa é punida na forma de consumação.
A conduta típica consiste em iniciar a execução do crime, empregando violência ou grave ameaça para impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais (359-L) ou para depor o governo legitimamente constituído (359-M). A norma penaliza a tentativa, não exigindo a consumação do crime, ou seja, a efetiva abolição do Estado democrático de Direito ou golpe de Estado. Isso porque, como tem sido amplamente debatido pela literatura jurídica especializada, a consumação impediria a punição, já que os poderes competentes para sancionar a conduta seriam destituídos.
No que tange ao contexto desta análise, desde antes da “operação contragolpe” revelar um plano posto em prática — mas não consumado — para assassinar autoridade, a “operação tempus veritatis”, deflagrada pela Polícia Federal, trouxe à tona uma série de fatos que, se confirmados, configura uma grave ameaça às instituições democráticas brasileiras. As investigações apontam para a existência de um plano articulado, envolvendo o ex-presidente da República Jair Bolsonaro e seu entorno, com o objetivo de subverter a ordem constitucional.
A elaboração de atos normativos que visavam deportar autoridades, por exemplo, demonstra a intenção de fragilizar as instituições e eliminar opositores políticos. A reunião ministerial, com divisão de tarefas e cronograma para a execução de ações, evidencia um planejamento detalhado para a concretização do golpe. A busca por apoio militar demonstra a intenção de utilizar o poder das Forças Armadas para alcançar os objetivos políticos do grupo. A tentativa de pressionar o comandante do Exército demonstra a importância atribuída ao apoio militar para a concretização do plano.
É importante frisar que, com a “operação contragolpe”, não se discute propriamente a tentativa de homicídio das autoridades, mas a tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito de golpe de Estado. É o que pode ser observado no excerto do relatório da Petição 13.236/DF, de relatoria do ministro Alexandre de Moraes:
“A investigação da Polícia Federal demonstra que as ações operacionais ilícitas executadas por militares com formação em Forças Especiais (FE) do Exército, com participação de General de Brigada da reserva, e com a finalidade, inicialmente, de monitoramento de Ministro desta SUPREMA CORTE, para a execução de sua prisão ilegal e possível assassinato e, posteriormente, com o planejamento dos homicídios do Presidente e Vice-Presidente eleitos – LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA e GERALDO ALCKMIN – , com a finalidade de impedir a posse do governo legitimamente eleito e restringir o livre exercício da Democracia e do Poder judiciário brasileiro, tiveram seu auge a partir de novembro de 2022 e avançaram até o mês de dezembro do referido ano, como parte de plano para a consumação de um Golpe de Estado, em uma operação denominada pelos investigados de “Copa 2022”, conforme apontado pela Polícia Federal […].”
Partindo para os argumentos finais, para que se verifique se ocorreram não só atos preparatórios, mas efetivas tentativas de abolição violenta do Estado democrático de Direito e golpe de Estado, é mister retornar ao caso paradigma do REsp 1.252.770, já citado acima. A aplicação da teoria objetivo-material nesse caso permite concluir que a mera execução de atos que evidenciem um caminho em direção à subversão da ordem constitucional seria suficiente para a caracterização do delito.
Ao invés de se limitar aos resultados concretos de uma ação, essa teoria permite que se avalie a conduta sob uma perspectiva mais ampla, considerando o seu potencial lesivo ao bem jurídico protegido. No contexto dos crimes contra a democracia, a teoria objetivo-material nos permite identificar o perigo que uma ação representa, mesmo que não tenha se concretizado em sua totalidade.
Afinal, não é necessário aguardar que um golpe de Estado seja consumado com o uso de força letal ou a prisão de autoridades para que se configure um crime. Basta que se identifique uma sequência de atos que, se não interrompidos, levariam a esse resultado. Ao aplicar essa teoria, podemos enxergar que a tentativa de impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais, por meio de ações que visam enfraquecer as instituições ou criar obstáculos ao seu funcionamento, já configura um crime, mesmo que esses obstáculos não tenham sido totalmente eficazes.
Conclusão
Este artigo não se destina a pleitear a imposição apressada de sanções penais, mas de compreender que os atos golpistas transcenderam os acontecimentos de 8 de janeiro de 2023. Torna-se cada vez mais evidente a atuação prévia — e de forma ainda mais significativa — de militares de alta patente e de autoridades civis de destaque à época, na tentativa de desmantelamento violento do Estado de Direito. Com base nos diversos elementos levantados pelas operações da Polícia Federal, é preciso combater a desinformação de que não houve tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado — imaginário ilustrado na postagem supracitada do senador Flávio Bolsonaro.
A conduta de realizar campana, acompanhar indivíduos, consultar sobre a possibilidade de agir e planejar as ações subsequentes à restrição da liberdade demonstra, inequivocamente, o início da execução do delito. Assim, investigações revelam um conjunto de atos que transcendem a mera preparação para a prática de um crime, evidenciando o início de sua execução. Dentre as condutas identificadas, destacam-se a aquisição de aparelhos telefônicos por interpostas pessoas, o acesso a informações sigilosas, a vigilância de autoridades, a elaboração de planos estratégicos e pareceres jurídicos, a realização de deslocamentos com o propósito de executar o planejamento criminoso e o contato com grupos que contestavam os resultados eleitorais.
Os artigos 359-L e 359-M do Código Penal brasileiro tipificam crimes que atentam contra a ordem constitucional e a democracia. Ambos os tipos penais possuem como núcleo o verbo “tentar”, o que significa que a consumação do delito ocorre com o simples início da execução, independentemente de se alcançar o resultado final, ou seja, a efetiva abolição do Estado democrático de Direito ou a deposição do governo legitimamente constituído. Nessa perspectiva, não seria imprescindível a ocorrência de atos de violência extrema, como o uso de armas de fogo ou a detenção arbitrária de autoridades, para a configuração do crime. Bastaria a constatação de uma sequência de ações que, se não interrompidas, culminariam inevitavelmente em uma ruptura institucional.
A tentativa de subverter a ordem constitucional, por meio da destituição de autoridades e da utilização das Forças Armadas para fins políticos, caracteriza os crimes de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado. A reunião ministerial, com a divisão de tarefas e o cronograma para a execução das ações, evidencia a existência de um plano concreto para a tomada do poder por meios ilegais. Do mesmo modo, a existência de um grupo estruturado, com divisão de tarefas e hierarquia, atuando com o objetivo de cometer crimes, configura o crime de organização criminosa.
[1] VIANA, Eduardo. O problema dos limites entre atos preparatórios e tentativa. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 19, n. 79, p. 69-100, 2020, p. 98.
[2] AGÊNCIA ESTADO. Bastidores da Operação Toupeira: Delegado diz que grupo preso nesta sexta-feira (01) é na verdade um pool de quadrilhas; erro de ladrões deixou plano vulnerável. globo.com, 2006. Disponível em: .
[3] Sobre a teoria Frank, ver: VIANA, Eduardo. O problema dos limites entre atos preparatórios e tentativa. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 19, n. 79, p. 69-100, 2020.
[4] SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos Editora, 2002, p. 307
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