A carteirada por magistrados e o prêmio de aposentadoria compulsória
27 de novembro de 2024, 19h16
Conforme enuncia o artigo 5º, caput, da Constituição de 1988, todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Ora, esse preceito, por si só, já é suficiente para obstar qualquer tratamento discriminatório dentro do território nacional, haja vista se tratar de um direito fundamental, cláusula pétrea, integrante do núcleo intangível do ordenamento jurídico nacional (artigo 60, § 4º, CF).
Em complemento, o artigo 37, caput, da Constituição da República enumera alguns princípios da administração pública, quais sejam, legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Conforme ensina o magistrado Alexandre de Moraes acerca do princípio da isonomia (pág. 115),
“A Constituição Federal de 1988 adotou o princípio da igualdade de direitos, prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm o direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico. Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito, sem que se esqueça, porém, como ressalvado por Fábio Konder Comparato, que as chamadas liberdades materiais têm por objetivo a igualdade de condições sociais, meta a ser alcançada, não só por meio de leis, mas também pela aplicação de políticas ou programas de ação estatal. A igualdade se configura como uma eficácia transcendente, de modo que toda situação de desigualdade persistente à entrada em vigor da norma constitucional deve ser considerada não recepcionada, se não demonstrar compatibilidade com os valores que a Constituição, como norma suprema, proclama.” (grifos do articulista)
Nesse particular, temos que o artigo 42, inciso V, da Lei Complementar Federal nº 35 de 1979 (Loman) não foi recepcionado pela Constituição Cidadã, pois se era uma prerrogativa quando do regime militar, na democracia é um privilégio [1].
Outrossim, o conceito de isonomia possui íntima relação com o conceito de República. Conforme escreve o professor Flávio Martins (pág. 1.851),
“Como vimos anteriormente, a República (do latim res publica, coisa pública) configura forma de Governo na qual o governante é um representante do povo, por ele escolhido, para um mandato determinado, podendo ser responsabilizado por seus atos, já que é um gestor da coisa pública. Com origem na Idade Antiga, a República se opõe à Monarquia, na qual o governante, embora se considere um representante do povo, não é por ele escolhido, bem como não tem um mandato determinado, e, em regra, não pode ser responsabilizado por seus atos. Por exemplo, o art. 99 da Constituição brasileira de 1824 afirmava: ‘A pessoa do Imperador é inviolável, e sagrada: ele não está sujeito a responsabilidade alguma’. Nas palavras de Dalmo de Abreu Dallari, “a República, que é a forma de governo que se opõe à monarquia, tem um sentido muito próximo do significado de democracia, uma vez que indica a possibilidade de participação do povo no governo. […] As características fundamentais da república, mantidas desde o século XVII e que foram a razão de seu prestígio e de sua receptividade, são as seguintes: Temporariedade. O Chefe de Governo recebe um mandato, com o prazo de duração predeterminado. E para evitar que as eleições reiteradas do mesmo indivíduo criassem um paralelo com a monarquia, estabeleceu-se a proibição de reeleições sucessivas. Eletividade. Na república o Chefe de Governo é eleito pelo povo, não se admitindo a sucessão hereditária ou por qualquer forma que impeça o povo de participar da escolha. Responsabilidade. O chefe do Governo é politicamente responsável, o que quer dizer que ele deve prestar contas de sua orientação política, ou ao povo diretamente ou a um órgão de representação popular.” (grifos do articulista)
Nessa senda, fica fácil concluir que se até mesmo as altas autoridades da República devem responder por seus atos, sendo agentes políticos com amplo poder discricionário, quiçá os demais agentes públicos.
De seu turno, a igualdade certamente deságua na impessoalidade, já que se todos são iguais, devem ser tratados sem favoritismos. Conforme leciona a professora Di Pietro (pág. 226),
“Este princípio, que aparece, pela primeira vez, com essa denominação, no art. 37 da Constituição de 1988, está dando margem a diferentes interpretações, pois, ao contrário dos demais, não tem sido objeto de cogitação pelos doutrinadores brasileiros. Exigir impessoalidade da Administração tanto pode significar que esse atributo deve ser observado em relação aos administrados como à própria Administração. No primeiro sentido, o princípio estaria relacionado com a finalidade pública que deve nortear toda a atividade administrativa. Significa que a Administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, uma vez que é sempre o interesse público que tem que nortear o seu comportamento. Aplicação desse princípio encontra-se, por exemplo, no artigo 100 da Constituição, referente aos precatórios judiciais; o dispositivo proíbe a designação de pessoas ou de casos nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para esse fim.” (grifo do articulista)
Portanto, em homenagem ao princípio da impessoalidade, todo ato praticado por agente público deve atender a uma finalidade pública, que é aquela explicita ou implicitamente prevista na regra de competência funcional.
Ora, a “carteirada”, quando visa ao atendimento do exclusivo interesse do agente, não atende nenhuma finalidade pública, configurando autêntico desvio de poder ou de finalidade.
Contudo, a carteira funcional possui previsão legal, como, por exemplo, no artigo 42 da Lei Federal nº 8.625 de 1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), e visa permitir que seus membros se identifiquem quando no estrito exercício das funções.
Sem embargo, como em terras brasilis nada é tão simples, o legislador ainda teve que prever, no artigo 33, parágrafo único, da Lei Federal nº 13.869/2019 a figura da “carteirada”, sendo descrita da seguinte forma, verbis:
“Art. 33. Exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem se utiliza de cargo ou função pública ou invoca a condição de agente público para se eximir de obrigação legal ou para obter vantagem ou privilégio indevido.” (grifo do articulista)
Apesar de ser comum no meio policial a utilização da “carteirada” para o ingresso em estabelecimentos comerciais, em especial nas “baladas”, tal fato até pode se justificar, considerando que o tira tem a obrigação de realizar a prisão em flagrante de quem estiver cometendo alguma infração penal, consoante o artigo 301 do Código de Processo Penal, dirimente não extensível a Guardas Civis Metropolitanos, cujo flagrante é facultativo [2].
Malgrado, essa figura também tem sido praticada por autoridades judiciárias.
A sanção dos sonhos
Um dos casos que ficaram famosos ocorreu com o desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira, que humilhou Guardas Civis de Santos (SP), ao receber multa por descumprimento de medidas sanitárias decorrentes da COVID-19. No caso, bem pontou a ministra Rosa Weber no Conselho Nacional de Justiça (PAD n. 0007026-78.2020.2.00.0000),
“Eu, na magistratura há 46 anos, fico imensamente triste quando vejo um juiz, que exerce uma parcela do poder estatal, se comportar de uma maneira absolutamente incompatível com o próprio respeito ao outro, no caso representado pelo agente da Guarda Civil Metropolitana de Santos, e reproduzindo uma cultura que todos nós devemos combater e não pode ser relevada” [3].
No entanto, a grande piada foi o magistrado tem recebido a “pena” de aposentadoria compulsória, sanção essa sonhada pela maioria dos brasileiros e que sem abantesma de dúvidas viola o princípio constitucional da moralidade, estando revogada pela Constituição Federal de 1988.
Outro caso cômico, para não dizer infeliz, foi o da desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul, Tânia Garcia de Freitas Borges, que utilizou carro oficial e escolta para buscar o próprio filho em presídio no município de Três Lagoas (PAD nº 0009559-19.2018.2.00.0000) [4].
Esse caso também contou com a irônica figura da “penalidade” de aposentadoria compulsória. É como se a sociedade fosse punida duas vezes pelo mesmo fato (bis in idem), já que a Previdência Social terá que sustentar tais cidadãos até o fim de suas vidas, ainda que sejam “proventos proporcionais ao tempo de serviço”.
Ao que tudo indica, a Suprema Corte tem por constitucional a sanção de aposentaria compulsória. Eis a ementa do Ag. Reg. em MS n. 38.030-DF[5]:
“MANDADO DE SEGURANÇA. APLICAÇÃO DE PENALIDADE À MAGISTRADA PELO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. SEGURANÇA DENEGADA EM DECISÃO MONOCRÁTICA. INTERPOSIÇÃO DE AGRAVO REGIMENTAL. DESNECESSIDADE DE VINCULAÇÃO ENTRE O DECIDIDO NO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR E EM AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. ALEGAÇÃO DE INOBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL E VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. SANÇÃO APLICADA DE ACORDO COM A APURAÇÃO DOS FATOS NO ÂMBITO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. IMPOSSIBILIDADE DE REDISCUSSÃO DE FATOS E PROVAS EM SEDE DE MANDADO DE SEGURANÇA. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.”
Nessa esteira, iniciativa louvável do então senador da República e hoje ministro do Supremo Tribunal Federal Flávio Dino, a PEC nº 3 de 2024[6], cujo texto constitucional passará a contar com o seguinte dispositivo, verbis:
“Art. 93 (…) VI-A é vedada a concessão de aposentadoria compulsória aos magistrados como sanção pelo cometimento de infração disciplinar, devendo ser aplicada, em face de faltas graves, a penalidade de perda do cargo ou demissão, ou equivalente, conforme lei disciplinadora da carreira.” (grifo do articulista)
Nesse ponto, pedimos vênia para citar trecho da obra de Rodrigo Constantino (pág. 11), o qual tece severas críticas ao jeitinho brasileiro. Eis a obra citada:
“Há certas imagens sobre o comportamento do brasileiro que permeiam as percepções das pessoas nas relações sociais. A ideia de que o brasileiro sempre burla normas e determinações para obter o que almeja – e essa é uma definição do jeitinho – é recorrente. Para a grande maioria dos brasileiros, a busca de atalhos, soluções facilitadas ou vantagens faz parte do cotidiano das pessoas”, explicou Rachel Meneguello, cientista política da Universidade de Campinas (Unicamp). (g. n.)
Nada obstante, a despeito da previsão legislativa e da proposta de reforma constitucional, o que para nós soa desnecessário por ser evidente, parece que ainda estamos longe de viver em um verdadeiro Estado Democrático de Direito, onde todos sejam tratados como cidadãos integrantes de uma República, cujo governo seja do povo, pelo povo e para o povo, conforme célebre frase de Abraham Lincoln.
Referências bibliográficas
Constantino, Rodrigo. Brasileiro é otário? O alto custo da nossa malandragem. 1. ed. – Rio de Janeiro: Record, 2016.
Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 33. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2020.
Martins, Flávio. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2022.
Moraes, Alexandre de. Direito constitucional. 36. ed. – São Paulo: Atlas, 2020.
[1] Art. 42 – São penas disciplinares: V – aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço.
[2] Ementa: PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. PRISÃO EM FLAGRANTE EFETUADA POR GUARDAS MUNICIPAIS. LEGALIDADE. EXISTÊNCIA DE JUSTA CAUSA. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. As Guardas Municipais são previstas constitucionalmente no artigo 144, do Capítulo III, Título V (“Da segurança pública”), portanto, cumprem papel nas atividades estatais de segurança pública, conforme expressa previsão constitucional e regulamentação legal, desempenhando função pública essencial à manutenção da ordem pública, da paz social e da incolumidade das pessoas e do patrimônio público, em especial de bens, serviços e instalações do Município. 2. Diferentemente dos policiais integrantes da Polícia Civil e da Polícia Militar, que estão obrigados a realizar a prisão em flagrante, a guarda civil pode – como qualquer pessoa do povo – realizar o flagrante delito, nos termos do artigo 301 do Código de Processo Penal. 3. Não há qualquer ilegalidade na ação dos guardas municipais, pois as fundadas razões para a prisão em flagrante foram devidamente justificadas no curso do processo. Precedentes. 4. Agravo Interno a que se nega provimento. (STF – RE: 1471280 SP, Relator: Min. ALEXANDRE DE MORAES, Data de Julgamento: 26/02/2024, Primeira Turma, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 05-03-2024 PUBLIC 06-03-2024)
[3] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/desembargador-e-condenado-a-pena-maxima-por-desacatar-guardas-municipais-em-santos/#:~:text=Em%202020%2C%20o%20desembargador%20Eduardo,do%20equipamento%20em%20ambientes%20p%C3%BAblicos.
[4] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/desembargadora-do-tjms-recebe-pena-de-aposentadoria-compulsoria/
[5] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-mai-24/stf-mantem-aposentadoria-compulsoria-de-magistrada-que-usou-cargo-para-favorecer-filho/
[6] Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/02/19/dino-anuncia-pec-contra-aposentadoria-compulsoria-de-juiz-promotor-e-militar
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