Opinião

12 perguntas sobre os rumos da regulação do trabalho plataformizado no Brasil

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  • é doutor em Estado e Sociedade na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB) especialista em Processo Civil e procurador do Trabalho.

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27 de novembro de 2024, 7h00

No próximo dia 9 de dezembro, ocorrerá audiência pública no STF nos autos do Recurso Extraordinário 1.446.336, tendo como relator o ministro Edson Fachin, inserida no Tema 1291 da sistemática da repercussão geral, em que se discute a possibilidade de reconhecimento de vínculo de emprego entre motoristas de aplicativo e empresa administradora de plataforma digital.

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Segundo despacho do ministro do Supremo Tribunal Federal, aqueles que forem habilitados a participar da referida audiência pública deverão, como pré-requisito para sua atuação, trazer respostas a uma ou mais perguntas abaixo elencadas.

As perguntas referem-se a temas complexos sobre as plataformas digitais de transporte no Brasil, com foco nas relações de trabalho entre motoristas e empresas como Uber, 99 e Ifood. A análise a seguir busca refletir os principais pontos discutidos no referido recurso extraordinário, bem como contextualizar as implicações jurídicas, econômicas e sociais desse modelo de negócios.

Qual é o regime adequado para as relações entre as empresas de intermediação por aplicativo e os motoristas, considerando os princípios da Constituição? Quais são direitos e deveres das empresas intermediadoras e dos motoristas?

De acordo com os princípios da Constituição, especialmente no que tange aos direitos trabalhistas, a relação entre motoristas e empresas de aplicativos poderia ser caracterizada por um vínculo de emprego, levando em consideração os princípios da dignidade da pessoa humana, igualdade, liberdade e a proteção contra a exploração do trabalho. A Constituição, no artigo 7º, garante uma série de direitos ao trabalhador, como salário mínimo, jornada de trabalho, férias, 13º salário, e proteção contra despedida arbitrária.

Quando se fala que tal relação pode ser caracterizada relativiza-se a afirmação justamente porque a conclusão definitiva dependerá sempre do caso concreto, ou seja, da casuística, uma vez que no direito do trabalho, além da subordinação sempre presente no trabalho plataformizado, há que se analisar ainda se determinado motorista de aplicativo, por exemplo, também laborava com não eventualidade ou com pessoalidade.

A configuração do vínculo empregatício, embora fortemente contestada por essas empresas, garantiria ao motorista os seguintes direitos:

  • Direitos dos motoristas: salário mínimo, jornada de trabalho, repouso semanal remunerado, férias, 13º salário, e aposentadoria.
  • Deveres das empresas: fornecer condições adequadas de trabalho, pagar encargos trabalhistas e sociais, garantir a segurança dos motoristas e respeitar os direitos trabalhistas.
  • Manutenção da dinâmica de trabalho atual: a própria CLT, no seu artigo 468, não autoriza a alteração unilateral do contrato de trabalho, o que significa que o salário dos motoristas continuaria sendo pago por corrida realizada, por quilometro percorrido e com aceite voluntário das corridas, características típicas de um salário por peça.

O que se entende por “novo modelo de negócios de ‘economia compartilhada’ de trabalho intermediado por plataformas tecnológicas”? Quais são os modelos de contrato de atividade praticados pela Uber no Brasil?

O termo “economia compartilhada” por si só já é equivocado. Apesar da propalada democratização, a grande maioria das empresas proprietárias de plataformas digitais não disponibiliza livre acesso aos seus códigos-fonte. Com diferentes finalidades, público-alvo e modo de agir, a maioria delas tem interesse de lucro, corroborando o fato de que compartilhar não é o verdadeiro leitmotiv dessas corporações. De mais a mais, o compartilhamento é uma via de mão única, com trabalhadores compartilhando seus instrumentos de trabalho e os riscos do negócio, em um desvirtuamento do que dispõe os artigos 2º e 3º da CLT.

Spacca

No caso da Uber e 99, os motoristas não são considerados empregados, mas sim prestadores de serviços independentes. Mas como pude analisar detalhadamente no livro “Dirigindo Uber: a Subordinação Jurídica na Atividade de um Motorista de Aplicativo” (2024, Editora Juruá), especificamente no Brasil, as plataformas praticam o modelo de “contrato de adesão”, onde o motorista aceita integralmente as condições gerais de uso da plataforma, sem negociação individual dos termos. Nesse contrato, não há vínculo de emprego formal, o que coloca os motoristas como trabalhadores autônomos, mas com uma forte dependência econômica das plataformas e subordinação demonstrada pelo trabalho de campo como motorista de aplicativo por quatro meses em Salvador. O que resta claro é que se trata de um contrato de atividade cujo núcleo duro repousa na prestação de um serviço por uma pessoa física — e não na disponibilização de serviços digitais ou de intermediação.

Caso seja reconhecido o efetivo vínculo empregatício entre os motoristas e a empresa administradora, qual o impacto estimado no faturamento geral anual das empresas intermediadoras? E caso não seja reconhecido tal vínculo, o que sugere?

Caso seja reconhecido o vínculo empregatício, as plataformas teriam que arcar com os custos trabalhistas (encargos sociais, férias, 13º salário, FGTS etc.), o que implicaria um aumento relativo nas despesas operacionais. Isso poderia reduzir de alguma maneira a margem de lucro, e as empresas provavelmente precisariam repassar esses custos ao consumidor, aumentando as tarifas. Além disso, a flexibilização nas condições de trabalho poderia ser prejudicada, já que as empresas poderiam adotar, para novos contratos de trabalho, horários fixos e normas trabalhistas mais rígidas.

No entanto, ainda assim, esse parece ser o modelo empresarial de maior sustentabilidade. O que se assiste hoje é uma insatisfação generalizada por parte de motoristas, passageiros e por toda a sociedade: trabalhadores praticando jornadas exaustivas, ganhos cada vez menores, competição intensa entre motoristas, exigências arbitrárias de plataformas e usuários, riscos à saúde e segurança; passageiros aguardando muito tempo pela aceitação de corridas, veículos guiados por condutores exaustos que dormem ao volante, automóveis cada vez mais velhos ou quebrados, com pouca higiene no interior da cabine, episódios de desrespeito ou de desonestidade por parte de alguns motoristas, e preços abusivos em determinados horários de pico. Para a sociedade, os prejuízos são ainda maiores: a substituição do transporte coletivo por serviços como Uber e 99 voltou a causar congestionamentos em grandes cidades, baixíssimos índices de arrecadação de impostos e alta sonegação previdenciária, leitos de hospital cheios e múltiplas ocorrências policiais diante de colisões e assaltos ou sequestros de motoristas e entregadores, trabalhadores sem qualquer perspectiva de aposentadoria, o que irá resvalar na necessidade urgente de políticas públicas voltadas a esse público quando do seu adoecimento ou velhice. Trata-se de um modelo atual fadado ao insucesso e insatisfação, mas que a aplicação de leis trabalhistas teria o condão de assegurar maior sustentabilidade e benefícios mútuos.

Sem o reconhecimento do vínculo, a sugestão de alguns especialistas seria a busca por alternativas de regulamentação que ofereçam uma proteção mínima aos motoristas, como benefícios sociais, redução de encargos trabalhistas e flexibilização nas condições de trabalho. No entanto, o PL 12/2024 não contou com o apoio da categoria dos motoristas e, por falta de ambiente político para sua aprovação, parece não ter mais futuro. Principalmente, o projeto de lei apresentado pelo governo representava sério risco de expansão para outras categorias laborais (por força do artigo 8º da CLT), o que poderia fragilizar ainda mais a proteção social no Brasil.

Quais os dados mais atualizados acerca de decisões da Justiça do Trabalho sobre este tema no Brasil?

A Justiça do Trabalho no Brasil tem enfrentado diversas demandas envolvendo motoristas de aplicativos. O número de decisões que reconhecem ou não o vínculo de emprego tem sido um tema de debate. Algumas decisões afirmam que o vínculo empregatício é incompatível com a natureza autônoma do serviço, enquanto outras entendem que os motoristas estão sujeitos a regras da plataforma, configurando uma subordinação típica de uma relação de emprego.

As decisões podem variar de acordo com as circunstâncias de cada caso, desde o reconhecimento da autonomia até a caracterização do vínculo de emprego, passando pela incompetência da Justiça Laboral. Os estudos mais recentes demonstram uma baixa demanda judicial por parte de motoristas de aplicativo. Os julgamentos em primeira instância demonstravam uma tendência de vitória das plataformas digitais. No entanto, no Tribunal Superior do Trabalho, a tendência é revertida, com quatro turmas sendo favoráveis ao vínculo, ao passo que três delas se mostravam contrárias a esse reconhecimento. Cabe salientar, ainda, que no bojo de demandas coletivas, o Ministério Público do Trabalho ingressou com ações civis públicas requerendo a assinatura de carteira de trabalho para todos os motoristas e entregadores de refeições de empresas como Uber (procedência), 99 (improcedência), Ifood (improcedência mas recente reforma para procedência por parte do TRT da 2ª Região) e Rappi (procedência), todas elas ainda sem trânsito em julgado, mas evidenciando que, quando há provas robustas, a chance de reconhecimento do vínculo é maior do que para reclamações trabalhistas individuais.

Qual o número de motoristas de aplicativos ativos nas plataformas e os dados disponíveis sobre horas percorridas por dia/semana/mês?

Os dados sobre motoristas ativos e sua jornada de trabalho variam conforme a plataforma. A Uber, por exemplo, possui informações detalhadas sobre o tempo de trabalho dos motoristas, incluindo horas de condução, intervalo e tempo de espera, mas recusa-se a divulgar tais informações para autoridades brasileiras. A empresa também parou de atualizar o quantitativo de motoristas ativos na plataforma e, atualmente, apenas informa que mais de 5 milhões de parceiros já geraram renda através do seu aplicativo no Brasil. A plataforma possui 7,4 milhões de motoristas e entregadores no mundo, e estima-se que cerca de 1,5 milhão deles são brasileiros, o que significa 20% de sua mão de obra mundial, tornando o mercado nacional prioritário para a companhia.

Embora os números exatos estejam ocultos, apesar da sua facilidade de obtenção pelas plataformas digitais, estimativas apontam que a maioria dos motoristas trabalha em média 46 horas por semana.

Quais os dados disponíveis sobre quantidade de motoristas que dependem exclusivamente ou primariamente do trabalho por aplicativo?

Estudos indicam que uma parte significativa dos motoristas depende principalmente do trabalho por aplicativo, com cerca de 50% considerando-o sua principal fonte de renda. Segundo IBGE, em 2022, o Brasil tinha 1,5 milhão de pessoas que trabalhavam por meio de plataformas digitais. Desse total, 52,2% (ou 778 mil) exerciam o trabalho principal por meio de aplicativos de transporte de passageiros.

Cerca de 77,1% dos ocupados plataformizados são trabalhadores por conta própria e 9,3% são empregados do setor privado sem carteira assinada, outra informação que sugere a ampla dependência dos motoristas às plataformas, afastando a ideia de que se trata de um “bico”.

Qual a estimativa de impacto financeiro ou orçamentário, no caso de reconhecimento de relação de emprego, relativo a contribuições sociais e recolhimento previdenciário?

O impacto financeiro de reconhecer o vínculo de emprego para motoristas não seria substancial para as plataformas, dado que elas poderiam repassar tais custos, de maneira proporcional e módica, para consumidores. Considerando que o modelo tarifário hoje utilizado por plataformas como Uber e 99 é flutuante, referida compensação poderia ser feita facilmente para horários ou locais com alta demanda (preço dinâmico).

Isso poderia resultar em um aumento de até 20% nos custos da tarifa base (se uma corrida custa em média R$ 15,00 para o passageiro ela seria ajustada para R$ 18,00, o que ainda tornaria interessante a opção pelo transporte por aplicativo), além de pequena redução em margem de lucro bilionária hoje em dia. Mas isso também dependeria do salário pago e da quantidade de motoristas em atividade na plataforma, números ainda desconhecidos.

Qual o quantitativo de motoristas que contribuem para a previdência social como autônomos?

É pequeno o quantitativo de trabalhadores plataformizados contribuindo para previdência (35,7% motoristas de aplicativo e 22% entregadores de refeições), segundo dados do IBGE.

Os trabalhadores que contribuem para a previdência assim o fazem como autônomos. Com isso, o Estado perde duas vezes: ao não arrecadar contribuições previdenciárias de motoristas e empregadores e ao arcar com os custos sociais para situações de inatividade dos trabalhadores.

Em síntese, embora os números exatos sejam difíceis de obter, cerca de 30% dos trabalhadores plataformizado podem estar fazendo contribuições individuais.

Qual a média de horas percorridas e o impacto na saúde dos motoristas?

Como dito acima, embora os números exatos possivelmente não venham a ser divulgados pelas plataformas digitais durante a audiência pública do STF, o conjunto dos estudos aponta que a maioria dos motoristas trabalha em média 46 horas semanais, com rendimentos líquidos próximos a R$ 2 mil.

Outros estudos sobre a saúde dos motoristas de aplicativos indicam que muitos enfrentam problemas de saúde física, como dores nas costas, distúrbios no sono e problemas relacionados à postura. Em termos de saúde mental, o estresse e a pressão por altas taxas de aceitação de corridas também são fatores de risco. A literatura médica aponta para um aumento de casos de esgotamento físico e psicológico entre motoristas que trabalham longas horas.

Quais os dados disponíveis sobre a composição dos valores no modelo de negócios?

A composição dos valores pagos aos motoristas pelas plataformas envolve uma divisão entre o valor pago pelo usuário e a comissão da plataforma. A Uber, por exemplo, retira uma comissão de 25% a 30% do valor da corrida, o que pode variar dependendo da cidade e das condições específicas. O restante é repassado ao motorista.

Por outro lado, além do principal gasto com combustível, motoristas precisam abater despesas com seguro do carro, IPVA, depreciação, manutenção, alinhamento, e balanceamento, troca de pneus, troca de óleo, projeção de gastos em caso de colisão, projeção de gastos para multas de trânsito, pedágios e estacionamentos pagos, renovação da CNH, imposto de renda/INSS, e despesas com aquisição do celular e plano de dados móveis. Por tais motivos é que na cidade de São Paulo, pesquisa feita pela Stop Club, evidenciou que o rendimento líquido ficará em torno de R$ 2,5 mil quando abatidos todos estes itens, mas nas demais cidades o rendimento será inferior a este.

Como outros países estão tratando a questão do vínculo entre empresas de intermediação por aplicativo e motoristas?

Em outros países, como o Reino Unido, Espanha e França, há uma tendência crescente de reconhecimento do vínculo empregatício ou de criação de uma nova categoria de trabalhador, com direitos intermediários, como o reconhecimento de benefícios sociais e direitos trabalhistas básicos.

Quais países já regularam a questão da natureza do vínculo?

Alguns países já regularam a questão do vínculo entre plataformas e motoristas, como o Reino Unido (onde motoristas são classificados como “workers”), e a Espanha (onde leis de proteção foram implementadas). Esses países criaram legislações específicas que garantem benefícios sociais aos motoristas, mesmo sem vínculo formal de emprego.

Conclusão

A título de conclusão, dever ser dito que a questão do vínculo entre motoristas e empresas proprietárias de plataformas digitais de transporte é complexa e envolve uma série de considerações jurídicas, econômicas e sociais. No entanto, ainda assim, a decisão irresoluta das esferas estatais e da sociedade de querer resolver a precariedade existente é simples e passa necessariamente pela aplicação de leis trabalhistas.

O padrão legal trabalhista nacional prevê a possibilidade de: salário por peça ou tarefa, trabalho intermitente, limitação de jornada, negociação coletiva, pluralidade de empregadores, vedação à alteração unilateral do contrato, incremento da subordinação para que mais corridas sejam atendidas, riscos do negócio correrem exclusivamente por conta do empregador, institutos que aperfeiçoariam o contrato entre as partes, trazendo mais dignidade para motoristas e entregadores, segurança jurídica e conforto para os passageiros, e maior eficiência empresarial.

No Brasil, embora as plataformas evitem o reconhecimento do vínculo de emprego, a realidade dos motoristas e os direitos constitucionais indicam a necessidade de um regime mais equilibrado que já possui previsão na CLT, reconhecendo as especificidades desse trabalho sem prejudicar esse modelo de negócios.

Autores

  • é doutor em Estado e Sociedade pela Universidade Federal do Sul da Bahia (UFBA), mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UBC), especialista em Processo Civil pela Faculdade Jorge Amado (Unijorge) e procurador do Trabalho.

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