Provas no processo previdenciário: barreiras e soluções para garantir direitos
26 de novembro de 2024, 6h03
Os segurados da Previdência Social enfrentam, cada vez mais, obstáculos significativos na produção de provas em processos previdenciários, especialmente naqueles que envolvem pedidos de aposentadoria especial.
Isso ocorre porque, em grande parte dos casos, o perfil profissiográfico previdenciário (PPP) é considerado a única prova apta a demonstrar a exposição a agentes nocivos.
Contudo, seria o PPP suficiente para retratar, de forma absoluta, a realidade laboral dos segurados? Ou estaríamos presenciando um retrocesso ao ultrapassado sistema de provas tarifadas?
Embora não haja uma resposta única para tais questionamentos, é essencial refletir sobre o direito fundamental à prova e a maneira como esse direito é assegurado no ordenamento jurídico brasileiro.
No âmbito do direito previdenciário, a produção de provas ganha especial relevância, sobretudo diante das peculiaridades que envolvem a comprovação de direitos por parte dos segurados.
A complexidade da matéria, somada às barreiras práticas enfrentadas pelos trabalhadores, como a exigência do PPP como principal meio probatório, suscita reflexões sobre a efetividade do direito fundamental à prova.
Prova essencial para concretização da justiça
Nesse contexto, é indispensável compreender o papel da prova no processo judicial, não apenas como um elemento técnico, mas como instrumento essencial à concretização da justiça e à preservação dos direitos sociais, especialmente na fase instrutória, destinada exclusivamente à sua produção.
De fato, a importância da prova se manifesta em todas as áreas do direito, sendo considerada um dos elementos fundamentais no processo civil. Ela permite a demonstração dos fatos alegados pelas partes, viabilizando o direito à tutela jurisdicional. O objetivo da prova é fornecer ao juiz os dados necessários para estabelecer uma convicção sólida e justa sobre a realidade dos fatos (ANDRADE, 1993).
Sendo o juiz o responsável pela resolução da controvérsia, como ele julgará a causa se não vivenciou os fatos trazidos pelas partes no processo? A resposta é simples, conforme ilustra CARNELUTTI: por meio da prova. [1]
Assim como no processo civil é ampla a produção de provas, pois os litigantes têm o direito de empregar todos os meios de prova admitidos em direito, o processo penal também assegura essa amplitude, disponibilizando diversas provas às partes. Entre elas, destacam-se a prova pericial, o interrogatório, a confissão, as declarações do ofendido (artigo 201 do Código de Processo Penal), a prova testemunhal, o reconhecimento de pessoas e objetos (artigos 226 a 228 do CPP), dentre outras.
No âmbito da Justiça do Trabalho, a situação não diverge. Pode-se, de igual forma, abordar os variados meios de prova empregados no processo judicial, independentemente da área jurídica em questão. É fato que os litigantes dispõem de inúmeros recursos probatórios para fundamentar suas alegações perante o Judiciário.
No processo penal, o princípio in dubio pro réu constitui um dos pilares fundamentais que orientam sua condução. De maneira semelhante, na esfera trabalhista, aplica-se o princípio in dubio pro operario, que confere maior proteção aos trabalhadores. No campo previdenciário, por sua vez, destaca-se o princípio in dubio pro mísero, o qual determina que, diante de interpretações divergentes sobre uma norma, deve prevalecer aquela que favoreça o segurado, promovendo maior justiça social.
PPP é prova no direito previdenciário
Mas por que, no direito previdenciário, na maioria dos casos, a única prova valorada é o PPP?
Se o processo previdenciário é regido pelas normas do direito processual civil, por que razão os segurados são frequentemente limitados ao PPP — um documento que sequer é produzido pelo trabalhador? Afinal, as partes possuem o direito de utilizar todos os meios de prova legalmente admitidos para demonstrar a verdade dos fatos em juízo, conforme estabelece o artigo 369 do CPC.
O indeferimento da prova pericial, a rejeição da prova emprestada e da prova testemunhal, somados à valorização exclusiva do PPP, resultam na violação dos direitos dos segurados. Essa prática compromete o princípio in dubio pro mísero e faz o processo retroceder ao ultrapassado sistema de provas tarifadas, em flagrante prejuízo à efetividade da justiça.
Vale lembrar que o PPP tornou-se indispensável para a comprovação do período cuja especialidade for postulada (artigo 148 da IN 99 do INSS, publicada no DOU de 10/12/2003) e, desde que corretamente preenchido, exime a parte da apresentação do laudo técnico em juízo. Neste contexto, é pertinente destacar duas situações bastante recorrentes em processos judiciais relacionados ao preenchimento do PPP pelas empresas.
Os segurados enfrentam duas principais dificuldades. A primeira ocorre quando a empresa comete equívocos no preenchimento do formulário, violando exigências formais, como a ausência da indicação do responsável técnico pelos registros ambientais ou a utilização de metodologia inadequada para a avaliação de determinados agentes nocivos. Nessas situações, é comum que os julgadores afastem a especialidade do período em questão devido ao erro exclusivo da empresa, prejudicando o trabalhador, que não possui qualquer controle sobre a emissão e o preenchimento do documento.
A segunda dificuldade surge quando a empresa omite informações sobre a exposição a agentes nocivos ou descreve de forma inadequada as atividades exercidas pelo segurado, resultando igualmente na improcedência do pedido. Além disso, há casos em que a empresa reconhece a exposição a agentes químicos, mas declara, de maneira genérica, o uso eficaz de Equipamentos de Proteção Individual (EPI).
Risco de benefício negado
Em todos esses cenários, o trabalhador, após contribuir por mais de 35 anos, recorre ao Judiciário para assegurar seu benefício e vê seu direito negado, seja em razão de erros formais no preenchimento do PPP, seja pela omissão ou negligência da empresa. Essas falhas comprometem a efetividade da proteção previdenciária e sobrecarregam o segurado com a responsabilidade por atos que fogem à sua esfera de controle.
Sabendo que o sistema do livre convencimento motivado superou o sistema de provas tarifadas, aliada ao fato de que impera no processo previdenciário o princípio do in dubio pro mísero, além de ser legalmente constituído às partes o direito de empregar todos os meios de prova cabíveis, é necessário garantir ao trabalhador, que é a parte hipossuficiente na demanda, produzir outra prova para demonstrar seu direito, que no exemplo é a comprovação do tempo exercido sob condições prejudiciais.
Portanto, o que se defende não é a mera impugnação genérica ao PPP, pois, evidentemente, o requerimento de provas tem de ser pertinente e fundamentado.
Dito isso, um segurado que laborou como mecânico de automóveis, recebe um PPP da empresa omitindo os fatores de risco, mas apresenta ao Juízo um laudo pericial similar, produzido em empresa do mesmo porte e segmento, que analisou a mesma função de mecânico de automóveis, constatando a exposição a óleo mineral e ruído acima dos limites de tolerância, está, ao nosso ver, devidamente justificada a pertinência da prova pericial ou a admissão da prova emprestada.
Prova pericial
Além disso, em caso de dúvidas, prestigiando os princípios norteadores do direito previdenciário (ou que ao menos devem o sustentar), necessário se faz permitir a realização da prova pericial, seja ela direta ou indireta.
Aliás, a própria TNU já se posicionou no sentido de que o PPP não pode ostentar de presunção de veracidade, inclusive, referindo que a empresa terá sua carga tributária majorada caso seja reconhecida a atividade nociva e, com isso, não se poderia presumir verdadeiras as informações, especialmente, sobre o uso de EPI eficaz. Vejamos o excerto do voto conduzido pelo Ilustre relator do caso Fabio de Souza Silva:
Não há presunção legal, pois em momento algum o legislador a estabelece. Não há presunção lógica, a lei cria um paradoxo: o direito do segurado à aposentadoria especial depende de uma prova produzida pela empresa que terá sua carga tributária majorada caso o direito seja reconhecido. Esse paradoxo impede o reconhecimento de uma presunção lógica de veracidade das informações contidas no PPP, especialmente aquelas sobre a eficácia do EPI. Por esses motivos, o PPP não é dotado de uma especial força probante. (TNU – Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei (Turma): 00044394420104036318, Relator: FABIO DE SOUZA SILVA, Data de Julgamento: 19/06/2020, TURMA NACIONAL DE UNIFORMIZAÇÃO, Data de Publicação: 25/06/2020)
Observamos, ainda, muitos julgados afastando a especialidade de um período em que o PPP indica a exposição a óleos e graxas, pela mera indicação com SIM no campo de EPI eficaz, sem sequer oportunizar ao segurado a produção de prova em sentido contrário ou, ainda, sem se dar conta de que aquele EPI indicado se referia ao uso de botas de borracha ou luvas.
Sem fugir do tema central em debate, mas em se tratando de exposição a óleos e graxas, compostos por hidrocarbonetos aromáticos, o uso de luvas ou botas afasta a nocividade da exposição a estes agentes?
A exposição a hidrocarbonetos aromáticos pode provocar danos nas vias respiratórias quando inalados, além de problemas hepáticos, pulmonares e renais. (nesse sentido: Apelação nº 0001699-27.2008.404.7104/RS, Relator Des. Federal Celso Kipper, DE 26/09/2011, unânime)
No entendimento do desembargador federal Luiz Fernando Wowk Penteado, do TRF4, o uso de EPI, nesses casos, não descaracteriza a especialidade do labor (TRF-4 – APELAÇÃO CIVEL: 50037837720214047000 PR, Relator: LUIZ FERNANDO WOWK PENTEADO, Data de Julgamento: 09/07/2024, DÉCIMA TURMA).
Obstáculos para comprovar direitos
Dessa forma, constata-se a existência de inúmeros obstáculos enfrentados pelos segurados ao tentarem comprovar seus direitos em processos previdenciários, seja pela alegação de utilização de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) supostamente eficazes, seja pela ausência de informações precisas e completas no formulário preenchido pela empresa.
Nesse contexto, a realização da prova pericial revela-se imprescindível. Não se pode presumir, com base apenas nas informações constantes do PPP, que: houve efetivamente o fornecimento do EPI; o equipamento era de fato eficaz; ou houve correta utilização e fiscalização do uso do EPI por parte da empresa. Garantir a ampla defesa ao segurado é fundamental, permitindo-lhe produzir provas em sentido contrário, conforme assegurado pelo entendimento consolidado no Tema 555 do Supremo Tribunal Federal (STF).
Por outro lado, observa-se que, frequentemente, o despacho saneador intima as partes a especificar as provas que pretendem produzir. Contudo, ao final, as sentenças muitas vezes concluem que “o PPP é o formulário adequado para comprovação do trabalho em condições especiais, nos termos do artigo 58, §1º, da Lei 8.213/91, sendo documento essencial e suficiente para o deslinde da causa”.
Diante disso, surge uma reflexão: qual a razão de existir a fase de instrução no processo judicial, se o PPP é reiteradamente considerado como a única prova determinante? Por que as partes possuem o direito de produzir outros meios probatórios, se, ao final, o formulário será o único elemento valorizado na decisão?
Essas perguntas não podem mais continuar assombrando a vida dos trabalhadores que batem às portas da Justiça para obter a sua tão esperada aposentadoria.
STF e a aposentadoria especial
O próprio STF, ao julgar o Tema repetitivo 555, estabeleceu que, em havendo dúvida sobre a real eficácia do equipamento de proteção individual, reconhece-se o direito à aposentadoria especial.
No mesmo sentido, existem diversos temas julgados que mencionam a necessidade da perícia técnica para atestar a exposição a agentes nocivos, como por exemplo o Tema 1.031 do STJ, relacionado aos vigilantes, em que foi firmada a tese no sentido de que é possível o reconhecimento da especialidade da atividade de vigilante, com ou sem o uso de arma de fogo, desde comprovado o exercício de tal função mediante laudo técnico ou elemento material equivalente, tal como a prova pericial.
O IAC nº 5 do TRF4, que confere aos motoristas de ônibus e caminhão o direito à prova pericial, ressaltando que “possuindo o interessado direito de produzir tal prova”.
A súmula 198 do ex-TFR já dizia que “é devida a aposentadoria especial, se perícia judicial constata que a atividade exercida pelo segurado é perigosa, insalubre ou penosa, mesmo não inscrita em Regulamento”.
O Tema 1.083, do STJ, prevê também prevê a realização de perícia técnica judicial para comprovar a habitualidade e permanência da exposição ao agente nocivo ruído, quando há indicação no PPP de que houve a exposição ao ruído em intensidade variável.
Ausência de conteúdo probatório eficaz
Portanto, como visto, temos diversos temas, julgamentos e súmulas prevendo a realização da prova pericial.
Além disso, cabe questionar: se o magistrado invalida todas as demais provas e aprecia exclusivamente o PPP, e este não contém elementos capazes de comprovar a especialidade alegada pelo segurado, não seria caso de extinção do processo sem resolução do mérito, conforme dispõe o Tema 629 do STJ? Isso porque a ausência de conteúdo probatório eficaz no formulário permitiria ao trabalhador retornar à Justiça com outros meios de prova para demonstrar seu direito.
Existem várias possibilidades de abordagem, mas negar a produção de provas e julgar improcedente a demanda sob o argumento de insuficiência probatória é indubitavelmente cercear o direito reclamado.
Por essas razões, é imprescindível que, enquanto operadores do direito, defendamos a ampla produção de provas e a efetiva aplicação do sistema do livre convencimento motivado. É nosso dever impugnar formulários e documentos que não refletem a realidade das condições laborais dos segurados, buscar a produção de outros meios probatórios e assegurar que o direito dos trabalhadores não seja limitado ao que está consignado no PPP.
Diante de todas as questões abordadas, é essencial que o sistema judicial reconheça as barreiras enfrentadas pelos trabalhadores na comprovação de seus direitos previdenciários e adote uma postura que valorize a verdade material, acima de formalismos excessivos.
Embora o PPP seja um documento relevante, ele não deve ser considerado, isoladamente, como prova absoluta, especialmente quando outras provas legítimas e moralmente admissíveis podem demonstrar a realidade das condições de trabalho dos segurados.
É necessário acreditar que, com a constante atuação de operadores do direito comprometidos com a Justiça e o respeito aos princípios constitucionais, será possível construir um cenário mais equitativo e acessível, onde os trabalhadores não tenham seus direitos cerceados por falhas de terceiros ou interpretações restritivas. A luta continua, e a esperança permanece como combustível para a efetivação de uma justiça social plena.
[1] CARNELUTTI, Francesco, Teoria Geral do Direito, tradução de A. Rodrigues Queiró e Artur Anselmo de Castro, Armênio Amado Editor, Coimbra, 1942, p. 491 e 492.
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