Licitação, retroatividade e hibridismo
26 de novembro de 2024, 6h30
Pergunta formulada por um respeitado diretor de administração inspirou este artigo.
Seria possível a aplicação do prazo do artigo 106, § 2º da Lei 14.133/2.021 (cinco anos) aos contratos de informática regidos pela Lei 8.666/1993 que tem prazo de 48 meses? A Lei 14.133/2021 pode retroagir para evitar sanções pelo Tribunal de Contas?
Sim, a vedação ao hibridismo não alberga a irretroatividade, foi a resposta. Assim:
“Art. 191. Até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 193, a Administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso.
Parágrafo único. Na hipótese do caput deste artigo, se a Administração optar por licitar de acordo com as leis citadas no inciso II do caput do art. 193 desta Lei, o contrato respectivo será regido pelas regras nelas previstas durante toda a sua vigência.”
Quando se configura o hibridismo?
A burla aos tipos licitatórios configura hibridismo. Nesse diapasão, já nos manifestamos[1] sobre a vedação da ilícita prática de “somar“ os limites de valores de dispensa que acarretaria a configuração do “fracionamento por hibridismo”.
Também já nos manifestamos[2] sobre a impossibilidade de execução de um contrato por regime distinto daquele em que houve a licitação. Não é lícito que, em uma empreitada por preço global, haja execução por preços unitários sob pena de hibridismo licitatório.
Por outro lado, a inclusão no edital da “repescagem licitatória“ que existia na lei revogada e não está prevista na lei atual é possível, conforme já nos manifestamos[3].
Inserir regras da lei anterior (como regra do edital) é perfeitamente possível, pois não há criação de modalidade híbrida de licitação. Vejamos.
Aplicação da regra revogada como regra do edital
Algumas figuras licitatórias da lei revogada podem ser incluídas no edital desde que haja lacuna na nova lei. Nestas hipóteses, seriam regras do edital e não uma forma de ressuscitar os mortos do mundo jurídico ou criar modalidade licitatória com fragmentos de duas leis. Assim já nos manifestamos[4]:
“Não há que se falar em “hibridismo” no atual momento pois a lei Federal 8.666/93 foi, definitivamente, sepultada. Não há hibridismo em relação a uma lei e outra que sequer existe neste mundo.
A utilização de regras que existiram na lei 8.666/93, portanto, não se configura como hibridismo pelo simples fato de que a regra utilizada sequer existe no mundo jurídico.
A regra copiada no edital como uma espécie de saudade legislativa é apenas e tão somente uma regra do edital.”
E sintetizamos no mencionado texto:
“O hibridismo tem como regra vedar o uso de dois sistemas licitatórios em vigor. Assim, a opção pelo uso da lei 8.666/93 exclui, necessariamente, o uso da lei 14.133/21.”
A nova lei de licitações não proíbe uma regra do edital pelo simples motivo de já ter constado numa lei revogada! Modalidades licitatórias formadas por agrupamentos de retalhos legislativos distintos é que são proibidos.
Seria viável, porém, a aplicação de regra da Lei 14.133/2.021 aos contratos firmados sob a égide da lei 8.666/1993 sem que se configure hibridismo?
Para afirmarmos se é possível aplicar a Lei 14.133/2.021, ainda que excepcionalmente, precisamos antes identificar a finalidade da norma que proíbe o hibridismo.
Finalidade da vedação ao hibridismo
O tema da finalidade da norma nos remete ao clássico tema do julgamento dos nazistas que alegavam, basicamente, que cumpriam fielmente as leis de Hitler. Assim, dentro da lógica do Terceiro Reich, seriam indivíduos em absoluta consonância com o princípio da legalodade ainda que tenham praticado incontáveis atrocidades.
A pergunta que deve ser feita é sobre a finalidade do princípio da legalidade. Seria a proteção de antissemitas, torturadores e genocidas? Ou seria defender o cidadão comum dos abusos do Estado? Resposta óbvia e inversão axiológica evidente.
A finalidade da vedação ao hibridismo é proibir a criação de novas modalidades licitatórias. Assim, prevê o artigo 28 da Lei 14.133/2.021:
“§ 2º É vedada a criação de outras modalidades de licitação ou, ainda, a combinação daquelas referidas no caput deste artigo.”
Deve haver interpretação sistemática dos artigos 191 e 28,§2º da Lei 14.133/2.021 para que enxerguemos o princípio que orienta tais normas.
A aplicação retroativa (excepcional) não cria uma nova modalidade licitatória. Apenas ilumina de justiça o caso concreto. Logo, a vedação ao hibridismo não proíbe a aplicação retroativa da norma desde que não crie outra modalidade licitatória por combinação de leis.
Assim, a regra do artigo 5º, XL da CF sobre a retroatividade benigna do direito penal pode ser aplicada na decisão do tribunal de contas, máxime quando possa gerar sanção ao administrador público. O hibridismo só é vedado para impossibilitar “novos tipos licitatórios” e não para ajustamento de sanções das cortes de contas ao princípio da razoabilidade.
Precedente do conselheiro Sidney Beraldo
Decidiu o conselheiro do TCE/SP:
“Por oportuno, apenas a título de conhecimento, observo que a Lei nº 14.133/21 deixou de limitar o prazo de vigência dos contratos de aluguel de equipamentos e utilização de programas de informática em 48 meses, consoante disposto em seu art. 106, § 2º: Art. 106. A Administração poderá celebrar contratos com prazo de até 5 (cinco) anos nas hipóteses de serviços e fornecimentos contínuos, observadas as seguintes diretrizes: I – a autoridade competente do órgão ou entidade contratante deverá atestar a maior vantagem econômica vislumbrada em razão da contratação plurianual; II – a Administração deverá atestar, no início da contratação e de cada exercício, a existência de créditos orçamentários vinculados à contratação e a vantagem em sua manutenção; (…) § 2º Aplica-se o disposto neste artigo ao aluguel de equipamentos e à utilização de programas de informática.”( TC-008670.989.19-3).
Apesar de não haver aplicação expressa da Lei 14.133/2.021 a contrato regido pela Lei 8.666/1993, há menção implícita da inadequação axiológica da norma anterior.
A menção do conselheiro favorece a ausência de sancionamento e/ou sua mitigação. No fundo, pensamos, há uma aplicação benéfica (implícita) da nova norma. Pensamos que se trata de decisão visionária e indicativa de decisões futuras em todas as cortes de contas do país. O eminente Conselheiro fez verdadeiro vaticínio hermenêutico.
Conclusão
Pelo exposto, opinamos pela possibilidade de aplicação da retroativa da lei 14.133/2.021 aos contratos regidos pela Lei 8.666/1993 na hipótese específica do prazo para contratos de programas de informática já que o prazo de 48 meses foi alterado pela lei 14.133/2.021 para 60 meses para mitigar sanções junto às cortes de contas.
A vedação ao hibridismo não proíbe a retroatividade da norma mais benéfica, proibindo apenas a criação de novas modalidades licitatórias com fragmentos de ambas as leis.
[1] “Inovações da Lei de Licitações e polêmicas Licitatórias”, Editora Dialética, 3ª Edição, pág. 161
[2] https://www.migalhas.com.br/depeso/410133/licitacao-vedacao-ao-hibridismo-entre-regimes-nas-obras-publicas
[3] https://www.migalhas.com.br/depeso/413166/primazia-da-licitacao-e-repescagem-licitatoria
[4] https://www.migalhas.com.br/depeso/414044/lacunas-da-lei-14-133-21-e-hibridismo
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