Opinião

Kafka e as VPIs

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26 de novembro de 2024, 17h20

Recentemente, reli um dos livros que mais marcaram minha adolescência (época em que, não me orgulha assumir, era um leitor muito mais voraz do que hoje): “O Processo”, do escritor Franz Kafka.

Franz Kafka/Wikimedia Commons

A obra narra a história de Josef K. (ou simplesmente “K”), funcionário de uma instituição financeira que, da noite pro dia, é dragado para a condição de réu em um processo sem saber que crime teria cometido ou que norma teria violado. As primeiras linhas marcam o compasso da obra: “Alguém certamente difamara Josef K., pois sem ter feito nada de mau, certa manhã ele fora detido”.

A partir daí, a agonia só aumenta, à medida que o personagem principal tenta de todas as maneiras descobrir qual a razão do tal “processo”, numa teia claustrofóbica de figuras e situações pitorescas que ilustram o aparato burocrático daquela justiça imaginária.

Num mundo distópico onde “a defesa em si não é garantida por lei, apenas tolerada”, como efetivamente se defender se não se sabe qual é a acusação? Como exercer o sacrossanto direito à ampla defesa se desconhecido o crime?

Numa das passagens que mais me marcaram, o personagem do moribundo advogado explica a “K” que “no geral, o processo não é apenas mantido em segredo para o público, mas também para os réus. É claro que isso é feito apenas na medida do possível; no entanto, a medida do possível é bastante ampla”.

Lembro que, à época (quando eu sequer era estudante de Direito), senti que aquela obra flertava com o absurdo. Se transportada para um quadro (afinal de contas, escrever é pintar com as palavras, como lembrava Clarice Lispector), certamente seria uma obra surrealista de Dalí ou Miró.

Spacca

Para entender aquele universo peculiar, era necessário deixar de lado a realidade e aceitar aquela premissa ilógica.

Aí sim, a obra faria algum sentido.

Isso porque, para nós brasileiros que vivemos sob o confortável manto do Estado democrático de direito, é inverossímil a existência de um processo sem os imaculados princípios da publicidade, do contraditório e da ampla defesa.

Ser acusado em um processo ao qual não se tem acesso? Provas sendo produzidas contra um cidadão em um procedimento secreto?

Para criar uma obra tão onírica, talvez Kafka tenha se inspirado no regime monárquico de sua terra natal, o antigo Império Austro-Húngaro, ou quem sabe em um dos tantos regimes de exceção que povoaram nossa história.

Uma realidade fantástica, insólita, muito distante do que eu conhecia à época, e ainda mais do que conheço agora, atuando há mais de 20 anos como advogado.

Será?

Voltando ao nosso tempo

Saltemos 100 anos na história e vamos analisar nossa legislação atual.

O artigo 5º do Código de Processo Penal, em seu parágrafo 3º, dispõe que qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal pode comunicar o fato a autoridade policial e esta, antes de instaurar o competente inquérito, deve verificar a procedência das informações.

A razão é que, por óbvio, a tal “denúncia” pode ser infundada ou desprovida dos mais elementares indícios de crime.

Verificação de procedência de informação

É dai que nasce a VPI (Verificação de Procedência de Informação),  mecanismo concebido em seu nascedouro para, antes da instauração do inquérito propriamente dito, reunir elementos e coletar informações. A partir daí, será analisado se há ou não indícios suficientes a justificar a abertura do inquérito.

Trata-se de um procedimento precário, simples e informal de apuração fática, uma espécie de filtro natural de absurdos, criado para servir de óbice à banalização da abertura de inquéritos policiais.

Nessa etapa, como corolário lógico de sua própria natureza, não são permitidas medidas mais invasivas, como quebra de sigilo de dados, busca e apreensão, entre outras.

Um bom exemplo dos limites da VPI foi dado pelo próprio Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 1.055.941/SP, onde restara decidido que o compartilhamento de Relatórios de Inteligência Financeira (RIF’s) dependeria da existência de “procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional”, hipótese na qual não se enquadra o gênero de verificação de procedência.

Esse tipo de utilização da VPI desvirtuaria o espirito da lei, até porque, por óbvio, “verificação” e “investigação” não são sinônimos no nosso vernáculo.

Se fosse diferente disso, qualquer cidadão poderia ter sua vida devassada mediante mera denúncia, ainda que anônima, ainda que despida de fundamento, ainda que possuísse a solidez de uma gelatina.

Some-se a isso o fato de que, nessa etapa preliminar, o investigado sequer tem a ciência de tal procedimento, numa espécie de inquérito policial sigiloso e ilegal, um processo invisível, onde suas informações mais sensíveis podem vir a ser escrutinadas sem a possibilidade do imaculado exercício do contraditório e da ampla defesa.

Virando retrocesso

Mas o que deveria ser um avanço tem se mostrado um retrocesso.

O que vem ocorrendo, na prática, em alguns casos, é a desvirtuação desse valoroso instituto. Autoridades policiais, desrespeitando reiteradas decisões das Cortes Superiores, têm se utilizado das VPIs para reunir indícios de forma sigilosa, utilizando-os contra o cidadão.

Sem conhecer os elementos de prova que estão sendo colhidos, o cidadão não tem a oportunidade de contestar ou apresentar sua versão dos fatos, o que, inegavelmente, compromete a própria legitimidade das investigações, além de deixá-lo vulnerável e impotente na elaboração de sua defesa.

Trocando em miúdos, o fato é que, usada corretamente (apenas para colher informações preliminares e afastar abusos), a VPI é um avanço na legislação penal; usada de forma errada, arbitrária, pode servir como ferramenta de abuso, corrompendo as garantias fundamentais estampadas na nossa Constituição.

Como diz o ditado, o que separa o remédio do veneno é a dose.

Reler “O Processo” nos dias atuais me trouxe uma reflexão um tanto perturbadora. Será que aquela obra era apenas o fruto criativo de um gênio literário ou teria Kafka, à frente do seu tempo, tentado alertar as gerações futuras para o risco de que, sem o devido respeito às instituições, cada cidadão seria um potencial “Josef K”?

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