Opinião

Golpe de 2022: elementos da concretização do crime pela tentativa

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26 de novembro de 2024, 15h25

Revelado pela Polícia Federal um plano estruturado para matar o presidente eleito, Lula, e o vice Geraldo Alckmin e sequestrar e assassinar o então presidente do Tribunal Superior Eleitoral e ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes — e, com isso, dar um golpe de Estado no Brasil em 2022 —, não tardou para que os incautos e candidatos a pseudojuristas se manifestassem.

Flávio Bolsonaro, senador filho do ex-presidente, foi o primeiro a partir para o ataque público ao ministro Alexandre de Moraes e afirmar que “pensar em matar não é crime”.

Também senador, o ex-juiz Sergio Moro partiu em defesa do juiz afastado Marcelo Bretas, que afirmou em suas redes que a legislação “orienta que nenhum pensamento ou desejo humano pode ser considerado criminoso, a não ser que se manifeste e provoque uma conduta injusta que prejudique um bem jurídico”. O prefeito reeleito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, chamou os dois de delinquentes e os expôs: “vocês dois [Moro e Bretas] são o exemplo do que não deve ser o judiciário”.

Diante disso, é necessário enfrentar os conceitos que se encontram no Código Penal e permeiam o debate, tais quais “relação de causalidade”, “crime consumado”, “tentativa”, “desistência voluntária e arrependimento eficaz “, “arrependimento posterior” e “crime impossível”.

Isso é fundamental, pois até quanto ao dia 8 de janeiro o discurso de defesa é que não se passou de um quebra-quebra e que o golpe seria impossível apesar da tomada dos palácios, visto que se deu em um domingo.

A relação de causalidade é o que garante que somente responde pelo crime quem por uma ação ou omissão deu causa a um resultado no mundo físico. É omissão imputável aquela que emanar de quem “devia ou podia agir”.

É necessário, para cometimento do crime, que o resultado ocorra no mundo físico. Imagina-se uma sequência de dominós sendo derrubados, sendo uma das formas de tentativa configurada quando iniciada a ação do criminoso o resultado desejado não ocorre “por circunstâncias alheias à vontade do agente” que impedem o resultado. Seria como se no meio da sequência do dominó alguém impedisse a continuidade das simultâneas quedas.

Crimes consumados

Fernando Fernandes, criminalista

Aqui entramos conceitos de desistência voluntária e arrependimento eficaz, que ocorrem quando o próprio criminoso em algum momento da ação desiste de atingir o objetivo final. Nessas hipóteses, a lei determina que “só responde pelos atos já praticados”. Também está previsto o arrependimento posterior, somente para os crimes sem violência ou grave ameaça, quando o criminoso atinge o resultado, mas tenta remediar, por exemplo, restituindo coisa furtada por ato voluntário.

E o crime impossível? Trata-se de comportamento em que, apesar da vontade de cometimento do crime, a forma com que o criminoso resolveu praticá-lo torna-a impossível de atingir consumação. O exemplo seria tentar matar alguém com arma de brinquedo.

Pois bem. Pergunta-se por que esses conceitos não são aplicáveis aos atos que estão sendo divulgados? Primeiro porque a maior parte dos crimes são crimes consumados. Quanto aos crimes inseridos no ordenamento pela lei que define crimes contra o Estado democrático de Direito — lei sancionada pelo então presidente Jair Bolsonaro e que teve como um dos articuladores do projeto o deputado federal e atual ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira —, os quais são os mais graves entre as imputações, são aqueles do capítulo II, “Dos crimes contra as instituições democráticas”, os artigos 359L e 359M.

Ao contrário da maioria dos crimes, a previsão não foi de criminalizar o resultado, mas a mera tentativa. Basta atenção ao verbo do tipo: “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o estado direito democrático, impedindo o restringindo o exercício dos poderes constitucionais” ou “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legalmente constituído”.

Aqui reside um dos elementos essenciais. Descoberto um plano para matar o presidente eleito e tendo a execução desse plano pelos criminosos, por algum motivo, sido interrompida, podem eles responderem por homicídio? A respostas simples é que não. Isso se as investigações não demonstrarem que, ao invés de desistência, algo tenha ocorrido que impediu o resultado final.

Partes do golpe e o 8/1

Mas não é pelo homicídio que todos responderão. A descoberta da minuta do plano para esses assassinatos revela que o planejamento contava com outros elementos, como a decretação de uma intervenção no TSE e a efetivação de um golpe de Estado já com uma minuta de decreto preparada. Ora, a minuta desse decreto também foi encontrada na casa do ex-ministro de Bolsonaro, que passou a ser secretário de Segurança quando ocorreu o dia 8 de janeiro de 2023, Anderson Torres.

O golpe realmente não ocorreu, porém é inegável que inúmeros atos foram realizados para que ele se realizasse. O plano para matar Lula, Alckmin e Alexandre Moraes era parte dele, como também era parte da tentativa a criação de uma sensação de caos que possibilitaria o golpe, com uma bomba no caminhão tanque do aeroporto, tentativa de invasão do prédio da Polícia Federal, os bloqueios de estradas, a tolerância com acampamentos golpistas na frente das suas armadas com pedidos de intervenção, o fomento da divulgação de cartazes e palavras de ordem pedindo golpe, os gritos constantes de “eu autorizo“, tudo parece conspirar para a tentativa de criar as condições para o golpe enquanto Bolsonaro era presidente.

Sabe-se hoje que o plano não seguiu porque os comandantes do Exército e da Aeronáutica se recusaram a sua realização. Certamente as questões de geopolíticas internacionais, como uma mensagem do Estados Unidos, que apoiou o golpe de 64, teria sido fundamental para a concretização do plano. No entanto, com os dois comandantes contrários, as condições necessárias para a efetivação do golpe de Bolsonaro não foram alcançadas. Aí ingressa a questão do dia 8 de janeiro.

Os atos praticados nessa data visavam à criação de uma sensação caótica que exigiria do presidente eleito e empossado, Lula, a decretação de uma GLO, decreto de lei ordem, que colocaria os militares nas ruas. Caso Lula tivesse caído nesta armadilha não permaneceria no poder, porque demonstraria falta de força e isto seria a razão para sua queda.

As teses relacionadas a crime impossível ou mera cogitação só são defensáveis se analisados os fatos isoladamente. Como se separássemos fotos de um filme, comprometendo, assim, a compreensão do plano geral.

Indiciamentos, anistia e tentativa de golpe

Neste contexto, o indiciamento de Bolsonaro e ex-integrantes de seu governo pela PF é sinal importante de que o Estado brasileiro caminha para a responsabilização dos agentes criminosos que orquestraram a tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito com os atos que iniciaram um golpe em 2022.

Conduz, ainda, à reflexão sobre as propostas de anistia àqueles que participaram do intento golpista. Veja, a Constituição de 1988, em seu artigo 5º, inciso XLIII, veda a anistia de crimes de tortura, tráfico de drogas, terrorismo e crimes hediondos. A interpretação constitucional mais adequada ao texto legal é a de que, apesar do tipo penal de terrorismo da Lei nº 13.260/2013 não incluir motivos políticos – excetuando manifestações meramente políticas —, o intuito do constituinte está direcionado ao que tutelava a Lei de Segurança Nacional e que foi substituída pela Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito. Assim, o artigo 5º impede a anistia desses crimes, nos quais a prática se aproxima ao terrorismo de Estado com uso de violência.

Portanto, o que houve no Brasil foi uma tentativa de golpe de Estado completamente estruturada, com envolvimento pessoal do ex-presidente da República e dos indiciados pela Polícia Federal, que realizaram inúmeros atos preparatórios do golpe tentado enquanto Bolsonaro era presidente e também depois que deixou o poder. Traduz-se, portanto, em uma real tentativa de derrubar o Estado democrático de Direito brasileiro.

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