Opinião

Do artigo 83-b do Decreto 12.189/24, das queimadas, e suas possíveis implicações

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26 de novembro de 2024, 16h24

Em 20 de setembro de 2024, foi publicado o Decreto 12.189, para alterar o Decreto nº 6.514/08, responsável por regulamentar as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente.

As alterações do Decreto 6.514/08 foram motivadas pelo significativo aumento de queimadas em alguns estados brasileiros. Entre as mudanças, houve o agravamento daquelas sanções ligadas ao cenário de queimadas pelo país, como o uso do fogo sem autorização, além da inclusão de outras infrações à norma.

Dentre as inovações trazidas pelo Decreto nº 12.189/24, destaca-se a inserção do artigo 83- B no Decreto nº 6.514/08, que define como infração administrativa a conduta de “deixar de reparar, compensar ou indenizar dano ambiental, na forma e no prazo exigidos pela autoridade competente, ou implementar prestação em desacordo com a definida”, sendo estabelecida multa aberta de até R$ 50 milhões.

Entretanto, não há previsão legal que confira aos órgãos ambientais o poder de obrigar administrativamente o infrator a reparar danos ambientais, uma vez que essa obrigação possui natureza civil, ficando a cargo do Poder Judiciário estabelecer tais condenações.

Às autoridades ambientais compete tão somente a apuração de infrações administrativas — artigo 70, §3º, da Lei nº 9.605/98 —, de modo que enumera quais as possíveis sanções aplicáveis às transgressões regularmente apuradas no artigo 72 da mesma norma.

Portanto, mesmo com a apuração resultando na culpa do autuado, aplicando as sanções administrativas previstas em lei, o órgão ambiental não possui poder suficiente para determinar que o transgressor recupere o dano ambiental no âmbito administrativo.

Dispositivo abre caminho para a  ‘sanção política’

Assim, para a reparação de danos ambientais (responsabilidade civil), os órgãos do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), necessariamente, devem ajuizar ação civil pública com esse objetivo, nos termos do artigo 1º, I, da Lei 7.347/85, ou firmar um termo de ajustamento de conduta.

incêndio queimada pantanal

Entrementes, com a inclusão do artigo 83-B, foi conferido aos entes a “possibilidade administrativa” de coerção, de forma que agora pode impingir os autuados a reparar o dano causado, sob pena de sanção de multa aberta.

Essa nova previsão desperta questionamentos, sobretudo porque a administração pública possui instrumentos efetivos para ver reparado o dano ambiental causado. A redação do artigo 83-B revela a impressão de que o Decreto 12.189/24 veio autorizar o que chamamos de “sanção política” no Direito Tributário.

“Sanções políticas são meios pelos quais o Estado, como detentor de uma série de prerrogativas que lhe são exclusivas, pretende, por meios transversos, exercer poder de coerção para com o jurisdicionado, de forma a indiretamente obrigá-lo a empreender alguma atividade por ele desejada” [1]

No caso específico, mesmo possuindo instrumentos para alcançar a reparação do dano ambiental, os órgãos ambientais, a partir de então, poderão lavrar auto de infração quando o autuado não reparar, compensar ou indenizar dano ambiental, na forma e no prazo exigidos pela autoridade competente.

O poder público deve se valer dos mecanismos que a legislação lhe oferece para constranger o autuado a reparar o dano ambiental causado, e não se valer de artifícios – agora institucionalizados – que indiretamente forçam a obrigação de fazer, usurpando o direito de discuti-la eventualmente.

A redação do dispositivo foi infeliz, pois a lei nunca conferiu aos órgãos ambientais a possibilidade de reparação, compensação ou indenização como sanção no artigo 72 da Lei 9.605/98. E não o fez, obviamente, pois são condutas relacionadas à responsabilidade civil, não administrativa.

Logo, se não há medida de reparação do dano como sanção aplicável, não poderia o decreto prever como elemento da infração “deixar de repararna forma e no prazo exigidos pela autoridade competente”.

Decreto tem bons propósitos, mas ultrapassou limites

Rememorando as lições Meirelles, a “eficácia de toda atividade administrativa está condicionada ao atendimento da lei. Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa “pode fazer assim”; para o administrador público significa “deve fazer assim[2].

É dizer, se a administração pública não pode exigir a reparação administrativamente, por não haver previsão legal para tanto, evidentemente que não deveria aplicar multa pela não execução de uma obrigação que sequer pode exigir, pelo mesmo motivo.

Ao que tudo indica, a intenção do artigo 83-B é criar uma via transversa para que a administração pública exerça o poder de coerção, de forma a indiretamente obrigar o autuado a reparar o dano, mesmo possuindo meios legítimos para tanto.

Essa previsão sugere uma forma de compelir ao autuado à reparação do dano ambiental, sem a necessidade de lançar mão de medidas judiciais para obter a responsabilização civil do transgressor. Agora a administração pública, por uma via paralela, pode “responsabilizar civilmente” os responsáveis pelo evento danoso.

No nosso sentir, o Decreto 12.189/24 ultrapassou os seus limites de regulamentar a legislação, pois, como já ventilado, a obrigação de reparar o dano sequer foi eleita como medida administrativa pela Lei 9.605/98, não sendo legitimo que, por meio de decreto, crie uma nova pena e, em maior gravidade, autorize a “sanção política”.

Spacca

A Suprema Corte já arrematou que “a finalidade da competência regulamentar é a de produzir normas requeridas para a execução de leis quando estas demandem uma atuação administrativa a ser desenvolvida dentro de um espaço de liberdade exigente de regulação ulterior, a bem de uma aplicação uniforme da lei, isto é, respeitosa do princípio da igualdade de todos os administrados[3].

Desta forma, o decreto regulamentar não deve se sobrepor à lei, ante a sua posição hierárquica frente a esta, sob pena de invalidade.

É inegável a intenção da norma de proteger o meio ambiente natural, notadamente quando se considera as circunstâncias em que foi publicada. Todavia, o estabelecimento de medidas administrativas deve ser muito bem avaliado pelo poder público, prevenindo-se que se crie um cenário abusivo, tolhendo os direitos fundamentais do autuado à pretexto da preservação da natureza.

Em síntese, a redação do artigo 83-B do Decreto 12.189/24 ultrapassou os limites do poder regulamentar ao criar uma medida administrativa não prevista no artigo 72 da Lei 9.605/98. Além disso, conferiu à administração pública a possibilidade de utilizar meios indiretos para forçar o autuado a reparar um dano ambiental, desconsiderando os instrumentos legais que a autoridade ambiental já possui. Isso retira do infrator o direito de discutir a responsabilidade civil de forma apropriada, configurando uma espécie de sanção política no campo do Direito Ambiental.

Pela importância do bem que se pretende preservar, tem-se adotado mundo à fora a ideia de que “tudo pode para proteger o meio ambiente, inclusive infringir a lei”. Essa é, precisamente, a crítica trazida por este artigo ao debate.

 


[1] Maria Luiza Jansen Sá Freire de Souza, Sanções Políticas no Direito Tributário: Precedentes e Atualidades. Revista SJRJ, Rio de janeiro, v.17, n. 28p. 117-126,2010.

[2] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 1998

[3] (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 336). [ADI 4.218 AgR, rel. min. Luiz Fux, j. 13-12-2012, P, DJE de 19-2-2013.]

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