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Cannabis medicinal no STJ: e se a moda da omissão regulatória pegar?

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  • é professora adjunta na Universidade de Brasília (UnB) advogada do Senado Federal doutora em Direito pela Universidade de Alicante (Espanha) doutora e mestre em Direito pela UnB e professora do Curso de Especialização Bases para una Legislación Racional na Universidade de Girona (Espanha).

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26 de novembro de 2024, 8h00

Como se vem comentando desde as participações passadas, por mais que o processo legislativo nas Casas Legislativas tenha diversas vantagens institucionais e um pedigree muito mais democrático – sobretudo pelos aspectos relacionados à transparência das funções dos parlamentos (como Casas de Leis), à representatividade dos parlamentares (oriundos de diversas regiões do país), ao desenho dos procedimentos (sobretudo pelo caráter multitudinário), etc. –, é preciso reconhecer as transformações do princípio da legalidade, e, consequentemente, que leis em sentido formal convivem com atos normativos oriundos das agências reguladoras e outros órgãos do Poder Executivo, com capacidade para editar normas com características de abstração e generalidade.

A partir dessas constatações emergem diversas consequências importantes, entre as quais está a ideia de uma omissão regulatória, em moldes semelhantes à que há pouco costumava ser dirigida exclusivamente aos legisladores quando esses não observavam seu dever de legislar, a partir da leitura das normas constitucionais. A omissão legislativa inconstitucional ganhou, inclusive, um remédio específico no âmbito do controle abstrato: a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO), com o propósito de tornar efetiva norma constitucional de eficácia limitada.

Conforme o artigo 103, § 2º, da Constituição, declarada a inconstitucionalidade por omissão, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em 30 dias. Não restam dúvidas de que a referida previsão constitucional foi dirigida não só ao Poder Legislativo, mas também ao Poder Executivo. Ou seja, a efetivação pode depender tanto da promulgação de lei em sentido estrito, quanto da edição de uma regulação, o que atrairia a atuação de outros órgãos com competência normativa, como as agências reguladoras.

O ponto é importante porque o objeto fundamental da ADO tradicionalmente vem sendo somente a omissão legislativa, não a regulatória, mas essa possibilidade de uma omissão regulatória (leia-se, a falta de atuação de uma agência reguladora na edição de regulação) passível de reconhecimento em ADO também estaria contemplada tanto na Constituição quanto na Lei nº 9.868/1999.

Até o momento, entretanto, não há reinvindicações de omissão regulatória de agências reguladoras em caráter abstrato junto ao STF (controle concentrado), mas essa realidade não parece muito distante, sobretudo após a decisão do STJ que fixou o prazo de até seis meses para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) edite a regulamentação de modo a permitir a chamada cannabis medicinal, com teor de tetrahidrocanabinol (THC) inferior a 0,3%, para fins exclusivamente medicinais e industriais farmacêuticos. O prazo conta da publicação do acórdão, ocorrido no último dia 19 de novembro.

Enquanto isso, a decisão do STJ considerou lícita a autorização (e desde já autorizou a recorrente, sem efeitos erga omnes) para plantio, cultivo, industrialização e comercialização do cânhamo industrial (hemp) por pessoas jurídicas, para fins exclusivamente medicinais e/ou farmacêuticos atrelados à proteção do direito à saúde. O inteiro teor do acórdão do REsp 2.024.250, relatado pela ministra Regina Helena Costa, pode ser lido aqui.

A tese [1] aprovada por ocasião desse julgamento ainda fixou no seu item V que compete à Anvisa, no exercício da discricionariedade administrativa, avaliar a adoção de diretrizes destinadas a obstar o desvio ou a destinação indevida das sementes e das plantas (e.g. rastreabilidade genética, restrição do cultivo a determinadas áreas, eventual necessidade de plantio indoor ou limitação quantitativa de produção nacional), bem como para garantir a idoneidade das pessoas jurídicas habilitadas a exercerem tais atividades (e.g. cadastramento prévio, regularidade fiscal/trabalhista, ausência de anotações criminais dos responsáveis técnicos/administrativos e demais empregados), sem prejuízo de outras medidas para preservar a segurança na respectiva cadeia produtiva e/ou comercial.

Spacca

Trata-se da primeira vez em que o STJ reconhece essa categoria de uma omissão regulatória, em sede de julgamento repetitivo: a discussão foi o Tema nº 16 do incidente de assunção de competência (IAC), mecanismo previsto no artigo 947 do CPC, aplicável quando existe relevante questão de direito, com grande repercussão social, que, embora sem repetição em múltiplos processos, a cujo respeito seja conveniente a prevenção ou a composição de divergência entre câmaras ou turmas do tribunal. Com o IAC, fixa-se um padrão de decisão como precedente qualificado, evitando discrepâncias, inclusive em caráter preventivo, sendo esse o grande diferencial desse instituto.

A necessidade de que a Anvisa definisse regras sobre o assunto já vinha sendo reclamada pelo STJ em diversas ocasiões antes desse julgado em comento, com base no artigo 2º, parágrafo único, da Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas), que expressamente ressalvou a hipótese de autorização legal ou regulamentar para o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas. Fora disso, pela literalidade do dispositivo, tais condutas ficam proibidas em todo o território nacional.

Salvos-condutos e a escalada da jurisprudência

Assim, considerando existir omissão estatal em regulamentar tal cultivo para fins medicinais, deixando pacientes sob o risco de rigorosa reprimenda penal, o STJ vinha concedendo salvos-condutos, para permitir a importação de sementes, o transporte e o plantio da cannabis, quando juntada a documentação comprobatória (prescrição médica) da necessidade da substância para o tratamento ou controle de enfermidades.

O entendimento do STJ quanto a esse assunto foi evoluindo ao longo do tempo. No caso do RHC 123.402, ainda de 2021, o ministro relator Reynaldo Soares da Fonseca chega a assinalar: “3. No atual estágio do debate acerca da regulamentação dos produtos baseados na Cannabis e de desenvolvimento das pesquisas a respeito da eficácia dos medicamentos obtidos a partir da planta, não parece razoável desautorizar a produção artesanal do óleo à base de maconha apenas sob o pretexto da falta de regulamentação. De mais a mais, a própria agência de vigilância sanitária federal já permite a importação de medicamentos à base de maconha, produzidos industrial ou artesanalmente no exterior, como, aliás, comprovam os documentos juntados a estes autos”.

Entretanto, na mesma decisão, reconheceu a incompetência do Juízo criminal para a análise de critérios técnicos, sobretudo em sede de habeas corpus, enfatizando que essa atribuição estaria a cargo da própria Anvisa.

Na mesma linha, no julgamento do AgRg no RHC 155.610, o ministro João Otávio de Noronha enfatizou que “2. A ausência de regulamentação do órgão competente acerca do procedimento de avaliação técnica quanto ao preenchimento dos requisitos da autorização do cultivo e colheita de cannabis sativa para fins medicinais (art. 2º da Lei n. 11.343/2006) não pode ser suprida pelo Poder Judiciário. 3. Compete à ANVISA a regulamentação do procedimento de avaliação técnica quanto ao preenchimento dos requisitos da autorização do cultivo e colheita de cannabis sativa para fins medicinais, pois é o órgão técnico com atribuição para tanto, incumbindo ao interessado, em caso de demora na apreciação ou de indeferimento de pedido, submeter a questão ao Poder Judiciário por meio da via própria na jurisdição cível.

Depois, o STJ foi avançando para registrar que não existiria uma opção de não atuação por parte da Anvisa. Por exemplo, no RHC 147.169, o ministro Sebastião Reis Júnior disse o seguinte: “3. A omissão legislativa em não regulamentar o plantio para fins medicinais não representa “mera opção do Poder Legislativo” (ou órgão estatal competente) em não regulamentar a matéria, que passa ao largo de consequências jurídicas. O Estado possui o dever de observar as prescrições constitucionais e legais, sendo exigível atuações concretas na sociedade. 4. O cultivo de planta psicotrópica para extração de princípio ativo é conduta típica apenas se desconsiderada a motivação e a finalidade. A norma penal incriminadora mira o uso recreativo, a destinação para terceiros e o lucro, visto que, nesse caso, coloca-se em risco a saúde pública. A relação de tipicidade não vai encontrar guarida na conduta de cultivar planta psicotrópica para extração de canabidiol para uso próprio, visto que a finalidade, aqui, é a realização do direito à saúde, conforme prescrito pela medicina”.

Na sequência, cita-se a emblemática decisão do REsp 1.972.092, em que o ministro Rogerio Schietti Cruz registrou o paradoxo relacionado à omissão regulatória da Anvisa nessa matéria: “7. Se para pleitear aos entes públicos o fornecimento e o custeio de medicamento por meio de ação cível, o pedido pode ser amparado em laudo do médico particular que assiste a parte (STJ, EDcl no REsp n. 1.657.156/RJ, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, 1ª S., DJe 21/9/2018), não há razão para se fazer exigência mais rigorosa na situação dos autos, em que a pretensão da defesa não implica nenhum gasto financeiro ao erário.

Na mesma decisão, ainda registrou que: “10. Embora a legislação brasileira possibilite, há mais de 40 anos, a permissão, pelas autoridades competentes, de plantio, cultura e colheita de Cannabis exclusivamente para fins medicinais ou científicos (art. 2º, parágrafo único, da Lei n. 11.343/2006; art. 2º, § 2º, da Lei n. 6.368/1976), fato é que até hoje a matéria não tem regulamentação ou norma específica, o que bem evidencia o descaso, ou mesmo o desprezo – quiçá por razões morais ou políticas – com a situação de uma número incalculável de pessoas que poderiam se beneficiar com tal regulamentação”.

Na ocasião, o ministro denunciou o jogo de empurra – ou blame game, como diria Christopher Hood, referindo-se à evasão da responsabilidade presente nas organizações públicas –, pois, de um lado, em 2019, ao julgar o processo nº 25351.421833/2017-76, a Diretoria Colegiada da Anvisa entendeu que a autorização para cultivo de plantas que possam originar substâncias sujeitas a controle especial, entre elas a cannabis sativa, seria da competência do Ministério da Saúde; e, do outro lado, o Ministério da Saúde teria registrado em nota técnica que não pretendia fazê-lo. Estaria caracterizado, portanto, o quadro de intencional omissão do poder público em regulamentar a matéria.

Como se vê, houve uma escalada de decisões rumo ao reconhecimento de uma omissão regulatória inconstiucional por parte da Anvisa. Não foi algo da noite para o dia. Daí a mudança de posicionamento expressamente registrada pelo ministro Reynaldo Soares da Fonseca no HC 779.289, por exemplo, quando afirmou que, passados 2 anos desde que tinha apreciado o assunto pela primeira vez (no já citado RHC 123.402), verificou que o cenário não se alterou administrativamente, que a ausência de regulação persistia e que sequer havia previsão de solução em breve, ao passo que tal situação vinha gerando inúmeros pedidos perante o Poder Judiciário.

A 5ª e a 6ª Turmas do STJ já tinham pacificado o entendimento de ausência de tipicidade material no cultivo da cannabis para fins medicinais e, como já dito, vinha concedendo salvos-condutos. Nesse sentido, por exemplo, cite-se o AgRg no RHC 153.768, e diversos outros. Daí que a decisão do REsp 2.024.250 foi só mais um passo.

Se a moda pega…

A partir da análise do caso da cannabis medicinal no STJ, há sobradas razões para reputar justificada a decisão da 1ª Seção que reconheceu omissão ilegal por parte da Anvisa, tendo-se respeitado o espaço de atuação da agência, e garantido sua participação ativa da discussão, inclusive na audiência pública realizada. A dúvida agora é se a Anvisa vai acolher a determinação do STJ para editar regulação disciplinando o manejo da substância para fins medicinais e/ou farmacêuticos (e seu respectivo controle) ou permanecerá recalcitrante. Seja qual for o cenário, surgem preocupações.

Se a Anvisa cumpre a determinação judicial do STJ, existe o risco de essa categoria de omissão regulatória virar moda, pois terá sido criado um incentivo à judicialização e a novas determinações judiciais com a técnica adotada de apelo à agência reguladora. Consequentemente, isso implica interferência judicial na agenda regulatória e no planejamento da atividade normativa desses entes e distorções. Outros riscos relacionados a esse cenário foram levantados: a Anvisa cumprir pro forma a decisão judicial e a regulação sair com viés burocrático, excessivamente cautelosa, onerosa, etc.

Nessa esteira, logo haverá outras decisões judiciais reconhecendo omissão regulatória parcial, omissão regulatória por falta de avaliação de impacto e de resultado regulatório e extraindo omissão regulatória a partir de previsões legais genéricas (por exemplo, “regulamento disporá”, “na forma estabelecida em regulamento” ou “na forma regulamentar”) em um processo interpretativo de elevadas abstração e carga valorativa a respeito da matéria. A questão é: existe um amplo espaço em que a inação da agência reguladora não se reveste necessariamente de inconstitucionalidade ou ilegalidade. É possível regular desregulando e permitindo a autorregulação, por exemplo.

Se a Anvisa deixa de atender à ordem judicial e não edita uma regulação, a provável consequência é que o Judiciário o faça, com o que haverá transferência do poder decisório da agência para o Judiciário. Do apelo à agência reguladora se passará a sentenças aditivas em substituição à agência regulatória, precisamente como já se viu acontecer quanto a diversas omissões legislativas no STF. Esse cenário é tão ruim quanto o primeiro (em que a omissão regulatória vira moda), não só porque enfraquece institucionalmente a atuação das agências reguladoras, mas também porque cria insegurança jurídica (no caso de a regulação vir judicialmente) e o debate público regulatório perde inputs de ordem técnica importantes.

Nesse segundo cenário, outra opção é que atue o Legislativo (por exemplo, aprovando o PL 399/2015), já que o Congresso Nacional não abriu mão de sua competência para legislar sobre todas as matérias de competência da União, tal como previsto no artigo 48 da Constituição. No entanto, há profundas divergências sobre a questão entre os congressistas, o que dificulta o avanço da matéria no parlamento. De todos, embora esse cenário seja o menos preocupante, é o mais remoto.

 


[1] Eis a tese firmada completa: “I – Nos termos dos arts. 1º, parágrafo único, e 2º, caput, da Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas), não pode ser considerado proscrito o cânhamo industrial (Hemp), variedade da Cannabis com teor de Tetrahidrocanabinol (THC) inferior a 0,3%, porquanto inapto à produção de drogas, assim entendidas substâncias psicotrópicas capazes de causar dependência;

II – De acordo com a Convenção Única sobre Entorpecentes (Decreto n. 54.216/1964) e a Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas), compete ao Estado brasileiro estabelecer a política pública atinente ao manejo e ao controle de todas as variedades da Cannabis, inclusive o cânhamo industrial (Hemp), não havendo, atualmente, previsão legal e regulamentar que autorize seu emprego para fins industriais distintos dos medicinais e/ou farmacêuticos, circunstância que impede a atuação do Poder Judiciário;

III – À vista da disciplina normativa para os usos médicos e/ou farmacêuticos da Cannabis, as normas expedidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA (Portaria SVS/MS n. 344/1998 e RDC n. 327/2019) proibindo a importação de sementes e o manejo doméstico da planta devem ser interpretadas de acordo com as disposições da Lei n. 11.343/2006, não alcançando, em consequência, a variedade descrita no item I (cânhamo industrial – Hemp), cujo teor de THC é inferior a 0,3%;

IV – É lícita a concessão de autorização sanitária para plantio, cultivo, industrialização e comercialização do cânhamo industrial (Hemp) por pessoas jurídicas, para fins exclusivamente medicinais e/ou farmacêuticos atrelados à proteção do direito à saúde, observada a regulamentação a ser editada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA e pela União, no âmbito de suas respectivas atribuições, no prazo de 06 (seis) meses, contados da publicação deste acórdão; e

V – Incumbe à Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA e à União, no exercício da discricionariedade administrativa, avaliar a adoção de diretrizes destinadas a obstar o desvio ou a destinação indevida das sementes e das plantas (e.g. rastreabilidade genética, restrição do cultivo a determinadas áreas, eventual necessidade de plantio indoor ou limitação quantitativa de produção nacional), bem como para garantir a idoneidade das pessoas jurídicas habilitadas a exercerem tais atividades (e.g. cadastramento prévio, regularidade fiscal/trabalhista, ausência de anotações criminais dos responsáveis técnicos/administrativos e demais empregados), sem prejuízo de outras medidas para preservar a segurança na respectiva cadeia produtiva e/ou comercial.”.

Autores

  • é professora adjunta na Universidade de Brasília (UnB), advogada do Senado Federal desde 2009, doutora em Direito pela Universidade de Alicante (Espanha), doutora e mestre em Direito pela UnB, professora do Curso de Especialização Bases para una Legislación Racional na Universidade de Girona (Espanha).

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