Anteprojeto de Lei Geral de Comex (parte 2): PL nº 4.423/2024
26 de novembro de 2024, 8h00
O tema de hoje tem sido presente durante todo o ano, recorrente na coluna. Iniciado com o PL no 508/24, em abril, convertido no Anteprojeto de Lei Geral de Comércio Exterior, apresentado em outubro e aprovado na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE) do Senado Federal, no último dia 13/11, dando origem ao Projeto de Lei no 4.423/2024, em tramitação [1].
Quando do nosso artigo, publicado em 22/10 [2], o grupo de especialistas responsável pelo anteprojeto havia recebido inúmeras contribuições, do setor público e do privado. Eles se debruçaram sobre as mesmas e procuraram avaliar as sugestões, apresentando o texto final levado à CRE [3]. Como já registramos, o texto tem vários méritos, dentre eles, o principal, de atingir a meta que os redatores traçaram: seguir as melhores práticas internacionais nos temas a que se dedica. De fato, é indiscutível a presença de diversos dispositivos da CQR e do Marco Safe, da OMA, e do AFC/OMC, no texto do anteprojeto, e agora, no PL no 4.423/2024. Como no texto anterior tecemos comentários ao anteprojeto, vamos focar nas alterações a ele incorporadas [4].
Uma demonstração de como a revisão feita foi cuidadosa e teve o viés de inclusão e acolhimento de sugestões visando aprimorar o texto original, podemos citar a exclusão do termo desempenho do caput do seu artigo inaugural. Na sua redação original, esse artigo revelava um direcionamento das normas gerais para o desempenho das atividades de regulação, fiscalização e controle sobre o comércio exterior, funções exercidas exclusivamente pelo setor público. Considerando que a norma destina-se a todos, tanto ao setor público, quanto ao privado, mediante provocação da Comissão Especial de Direito Aduaneiro do Conselho Federal da OAB [5], acolheu-se a observação, tornando o artigo inaugural da nova legislação mais inclusivo, como deve ser. Afinal, as normas gerais de comércio exterior não são destinadas aos órgãos de regulação, controle e fiscalização, mas a todos.
No glossário (artigo 2º), foram feitas inclusões relevantes para a segurança jurídica e a previsibilidade na aplicação das normas aduaneiras. Incluiu-se o conceito de controle aduaneiro (artigo 2o, I) [6], e de despacho de admissão (artigo 2o, III) [7]. Acolheu-se a sugestão de alterar o conceito de despacho aduaneiro de “conjunto de ações” para procedimento, utilizando-se a terminologia já consolidada na doutrina aduaneira e no direito administrativo.
A inclusão do despacho de admissão na legislação aduaneira pátria merece ser conjugada com o avanço trazido nas disposições gerais aplicáveis aos regimes aduaneiros especiais, em específico, ao drawback suspensão (artigo 137, PL no 4.423/24). A disposição geral a que nos referimos encontra-se no artigo 95, especialmente, nos §2º e §3º. Entrando em vigor como está, vai modificar o tratamento, atualmente, conferido às importações de insumos para industrialização e exportação do produto final. No modelo atual, no drawback suspensão a entrada se dá através de uma DI para consumo, com a realização dos fatos geradores dos tributos e a suspensão de sua cobrança. Caso o compromisso de exportação não seja atendido no prazo legal, os tributos devidos desde o início do regime são exigidos com os acréscimos moratórios.
No modelo proposto, em sintonia com os demais regimes aduaneiros especiais, também no drawback suspensão, o início do regime será realizado através de uma declaração de admissão. Isso fará com que, no caso de inadimplemento, no futuro, a cobrança com acréscimos moratórios se dê a partir do descumprimento, e não mais retroagindo à data do registro da DI de entrada dos insumos. Assim também, no caso da extinção por nacionalização, os tributos serão apurados considerando a data do registro da declaração para consumo, sem retroagir à data de admissão das mercadorias no regime. Trata-se de um importante avanço.
No artigo 4º, onde são estabelecidas as diretrizes que devem reger a regulação, a fiscalização e o controle sobre o comércio exterior, às quinze já previstas, tivemos a inclusão de duas, e a união de duas já previstas, em uma única. As diretrizes incluídas preconizam o alinhamento das práticas de comércio exterior com os princípios de desenvolvimento sustentável preconizados pela OMA (artigo 4º, VIII), a chamada aduana verde; e a outra diretriz incluída é a de incentivo à adoção de programas de conformidade (artigo 4º, XVI). Os incisos VII e VIII da versão original foram unificados no VII, reforçando a necessidade de atuação do setor público de forma previsível e coerente, assegurando transparência para informações necessárias ao exercício de direitos e cumprimento deveres.
O artigo 4º do PL no 4.423/24 merece detida atenção. Nominalmente, estabelece diretrizes, mas se pode afirmar que suas disposições são normas principiológicas, de elevada carga axiológica. Noutro dizer, são normas que devem nortear a criação de outras leis, que devem servir de parâmetro para os regulamentos, instruções normativas, portarias, resoluções, manuais, enfim, para a legislação relacionada ao comércio exterior. Devem direcionar a interpretação de outras normas. Assim, também, devem produzir efeitos na aplicação e no julgamento administrativo e judicial de fatos aduaneiros. Os 16 incisos do artigo 4º do PL no 4.423/24 fixam bordas para que a atividade de regulação, fiscalização e controle aduaneiros se deem legitimamente. Ultrapassadas tais fronteiras, teremos ilegalidades.
Dentre as balizas, tais atividades das autoridade aduaneiras e que exercem o controle administrativo do comércio exterior deverão pautar-se, sempre, por buscar o equilíbrio entre a segurança e a facilitação do comércio, celeridade na liberação das mercadorias, incentivo à conformidade e estabelecimento de sanções proporcionais às infrações cometidas, assim como definir o erro escusável para lhe dar um tratamento adequado. A leitura conjunta das diretrizes permite afirmar que a atuação administrativa deve ser eficiente, não deve impor ônus desnecessários, injustificados e que há um objetivo expresso de celeridade, redução de custos, previsibilidade e transparência na lei. A demora em indicar uma exigência durante um despacho de importação interrompido; a falta de resposta a uma manifestação do importador, ou do exportador, a demora e a exigência de informações já apresentadas para se obter uma decisão, entre outras ocorrências, poderão configurar, diante de um caso concreto, uma desobediência às diretrizes fixadas no artigo 4º do PL no 4.423/24.
Nesse ponto, fica evidente que o sopesamento entre controle aduaneiro e facilitação do comércio, assim entendida a promoção do comércio legítimo, deve ser bastante equilibrado, não havendo preponderância do poder de polícia aduaneiro, em face do direito dos intervenientes à agilidade, eficiência, medidas que simplifiquem e mitiguem o custo das operações. Vale lembrar, por ser de suma importância, que, uma vez aprovada a lei, deve haver a disseminação do seu conteúdo, junto ao setor público e privado, produção de manuais internos da administração aduaneira, para que tais diretrizes da norma geral possam ser seguidas, na rotina da fiscalização aduaneira. Caso contrário, teremos uma norma alinhada com as melhores práticas internacionais, sem aplicação efetiva nas bancadas em zona primária e secundária, onde circulam as mercadorias.
No caput dos artigos 12 e 13, destinados à administração aduaneira e o exercício de suas atribuições, foi atendida a sugestão da OAB, de inclusão de que tais funções sejam desempenhadas sempre dentro do princípio da legalidade, portanto “observados os direitos e garantias fundamentais”. Importante aperfeiçoamento do anteprojeto. No artigo 18, destinado aos despachantes aduaneiros, foi incluído o parágrafo segundo, assegurando a aplicação das regras vigentes até que sobrevenham novas disposições legais, atendendo a uma demanda legítima da classe feita pelo Sindasp.
No artigo 24, responsável pela criação de mecanismos de coordenação e cooperação entre a administração aduaneira e o setor privado, os órgãos intervenientes e outras administrações aduaneiras, foi bem-vinda a inclusão do inciso IV, com a previsão de se atuar dessa forma com as administrações aduaneiras de fronteira, visando incrementar a gestão coordenada das mesmas, com alinhamento de procedimentos, formalidades e horários de funcionamento, além de se incentivar o compartilhamento de instalações e a criação de um ponto único de controle aduaneiro.
O artigo 30, sobre a prestação de informações para fins de controle administrativo e aduaneiro e sua liberação, foi complementado a fim de que os documentos a serem apresentados possam ser nato-digitais, ou digitalizados, terminologia que foi unificada ao longo da lei e representa importante avanço na simplificação dos procedimentos, alinhado com a ideia da aduana sem papel.
O artigo 31 mereceu importante inclusão de dois parágrafos: (1) o terceiro, em que se prevê a criação de um canal único de comunicação para recebimento de sugestões de harmonização de procedimentos; (2) e o quarto, destacando que serão objeto de consulta pública prévia, as propostas de edição ou de alteração de atos normativos de aplicação geral, quando editados pela administração aduaneira.
Uma outra alteração revela-se no artigo 33, que regula o pagamento eletrônico e previa que ele deveria se dar até a entrega das mercadorias, em sintonia com o PLP 68/24, da reforma tributária. No entanto, tais disposições foram substituídas, delegando-se para futura norma específica que irá determinar o momento do pagamento das taxas e encargos (artigo 33, §2º), e a ato do ministro de estado da Fazenda que definirá o momento do pagamento dos demais tributos incidentes sobre as importações, ou exportações, inclusive direitos antidumpings e compensatórios (artigo 33, §3º).
Às disposições sobre gerenciamento de risco, do artigo 36, foram promovidos importantes acréscimos nos seus §4º e §5º. No §4º, à já prevista possibilidade de revisão dos critérios, indicadores e perfis de risco foi acrescida a condição “diante de reiteradas seleções sem resultado”, robustecendo a prerrogativa de avaliação, verificação e correção de vieses de gestão de risco que estejam a ofender direitos e garantias dos importadores, promovendo, por exemplo, tratamento antiisonômico e mais oneroso a algum deles. Já no §5º do artigo 36, previa-se a criação de canal para denúncia ao que se somou a delimitação de temas que as pessoas intervenientes podem denunciar, a saber, “riscos, violações e infrações no âmbito de operações de comércio exterior”.
No artigo 56 foi feita inclusão prevendo a necessidade de, na conferência aduaneira, a autoridade indicar, objetivamente, os elementos analisados (§1º), e disponibilizar os relatório de verificação para o importador (§2º). A inclusão do §2º garante maior transparência e segurança jurídica ao procedimento, permitindo, igualmente, seja melhor controlado pela própria administração e pelo judiciário.
O artigo 58, sobre liberação das mercadorias, mereceu inclusão positiva no seu §3º, passando a determinar, expressamente, a possibilidade de liberação parcial das mercadorias, para as quais não haja pendência decorrente da conferência aduaneira.
No Título III, Capítulos I, II, III do PL, o tema é fiscalização aduaneira. No seu artigo 76 está positivada a autorregularização e, no artigo 77 são indicadas as espécies de procedimentos fiscais aduaneiros. Dentre eles, a novidade é a auditoria de conformidade aduaneira. Havíamos observado que o viés da mesma seria de fomentar a autorregularização, portanto, supondo que ao cabo da mesma, dar-se-ia oportunidade ao interveniente de promover denúncia espontânea de alguma irregularidade. Essa opinião, entretanto, era passível de dúvida. Com a análise das sugestões enviadas, incluiu-se §1º ao artigo 77, espancando-se qualquer incerteza, como se vê: “as eventuais inconsistências identificadas pela fiscalização por meio de auditoria de conformidade aduaneira, (…), deverão ser notificadas ao interessado, possibilitando a autorregularização.” Felicita-nos a inclusão que evitará a insegurança e segue no sentido de fortalecer a conformidade.
No Livro III, dos regimes aduaneiros, além das novidades já analisadas no artigo anterior da série, sobrevieram algumas inclusões. Uma delas é a disposição do artigo 144, que esclareceu que o drawback isenção e restituição não estão extintos, mas que, como não se enquadram como regimes aduaneiros especiais, e sim como tratamentos tributários diferenciados, poderão ser regulados em norma específica.
Já o Recof, em seu artigo 145, ganha a previsão de que o regulamento estabelecerá o Recof – Serviços (artigo 145, § 5º, “c”), e os setores econômicos para os quais tal regime será admitido (artigo 145, §5º, II). Adicionou-se uma hipótese de extinção do regime, no caso de mercadorias adquiridas no mercado interno, qual seja a sua destruição às expensas do beneficiário (artigo 148, §5º, II).
No Livro IV previu-se, no incluso artigo 168, que será editado pelo Poder Executivo regulamento para dispor sobre a aplicação da lei. Os artigos 169 e 170 renderam preitos à segurança jurídica indicando, expressamente, o prazo de vacatio legis de 180 dias após a sua publicação (artigo 169); e apontando, um a um, os dispositivos a serem revogados pela lei, quando aprovada e em vigor (artigo 170).
As perspectivas de tramitação, até a sua entrada em vigor, é de distribuição para as Comissões do Senado, para análise, estudo do tema, visando elaborar e apresentar parecer para que seja discutido e votado o projeto original, ou texto substitutivo. Se seguirá uma votação no Plenário do Senado. Aprovada, seguirá para votação na Câmara dos Deputados, como casa revisora. Sendo aprovada, segue para a Sanção Presidencial, que poderá transformar a proposta em lei, vetá-la total, ou parcialmente [8]. Como se observa, a “argila” ainda está fresca e, corroborando a citação de Trevisan, de Churchill, it is, perhaps, the end of the beginning [9].
[1] Tramitação disponível em: link . Acesso em 23/11/2024.
[2] Disponível em: link . Acesso em 23/11/2024.
[3] Apresentação na Comissão do Senado está disponível: link .
[4] Para uma visão ampla das contribuições do setor público e do privado, leia-se o Anexo do PL no 4423, às fls. 56 a 63.
[5] O texto com as contribuições da Comissão Especial de Direito Aduaneiro do Conselho Federal da OAB contou com a participação de advogados de todo o Brasil, sendo, em especial, fruto do trabalho da Comissão, presidida por Luciana Mattar, composta por Simone Dauvel, Larissa Gonçalves, Renata Sucupira, Fernanda Kotzias, Walter Veppo, Laércio Uliana e Fernando Pieri.
[6] “O conjunto de medidas aplicadas pela administração aduaneira com vistas a assegurar o cumprimento da legislação aduaneira”
[7] “O despacho aduaneiro utilizado para submeter a mercadoria a determinado regime aduaneiro especial ou aplicado em área especial”
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