Opinião

A democracia iliberal e o Brasil

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  • é professor emérito e titular aposentado de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). Doutor honoris causa da Universidade de Lisboa. Doutor pela Universidade de Paris. Ex-professor visitante da Faculdade de Direito de Aix-en-Provence (França). Membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Presidente do Instituto "Pimenta Bueno" — Associação Brasileira dos Constitucionalistas.

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26 de novembro de 2024, 11h22

Discute-se o risco de o Brasil se tornar, por influência de Trump e de golpistas ou de populistas, uma democracia iliberal. Entretanto, será o Brasil do presente uma democracia liberal?

Cabe para responder a essa indagação examinar a realidade dos fatos.

Como forma de governo, o Brasil não é uma democracia à ateniense, em que o povo se governava, deliberando diretamente sobre as questões de interesse geral. Não é assim uma democracia direta, na tipologia didática, mas o Brasil, sendo governado por meio de representantes, eleitos pelo povo, ele é uma democracia representativa.

E isto é o caso de todas as democracias ditas iliberais, como a Hungria, pois nelas todas há eleições, como também o fazem estados ostensivamente não democráticos ou antidemocráticos. Fácil é o exemplo: Venezuela e Cuba, para ficar na América.

Assim, não há dúvida: o Brasil é uma democracia. É o que decorre o parágrafo único do artigo 1º:

“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

Disto decorre, obviamente que a governança cabe apenas a eleitos. Falta a outras autoridades ou outros órgãos não eleitos a legitimidade democrática para a governança.

Mas o Brasil é, hoje, uma democracia liberal? Ou iliberal?

O modelo liberal é o modelo constitucional das Declarações de Direitos do século 18. Ninguém o ignora. Formulação claríssima está no artigo 16 da Declaração francesa de 1789:

“Toda sociedade na qual a garantia dos direitos (fundamentais) não é assegurada, nem determinada a separação dos poderes, não tem Constituição.”

A nossa Constituição, na sua letra segue o modelo liberal.

Spacca

Ela estrutura os Poderes constituídos, de acordo com a fórmula clássica da “separação dos poderes” de Montesquieu, ou seja, prevê um Executivo, um Legislativo e um Judiciário, cada um com competência determinada e limitada, para que se impeça o arbítrio instaure um “governo de leis, não de homens”, como lapidarmente gravou John Adams.

Por outro, é quase desnecessário salientar que ela declara e resguarda os direitos fundamentais, logo no segundo “Título II – Dos Direitos e Garantias fundamentais”.

Neste — como todos sabem — está garantida a “inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (artigo 5º, caput).

Mais ainda, a inviolabilidade de tais direitos é intocável, “cláusula pétrea” como decorre do artig 60, § 4º, IV que atribui essa qualidade aos “direitos e garantias individuais”, como o mesmo artigo e parágrafo o fazem para com a “separação dos poderes” no inciso III.

Tudo isto posto sob a proteção do Supremo Tribunal Federal, a quem compete, “precipuamente, a guarda da Constituição”, (artigo 102, caput).

Entretanto, no dia a dia, nem a separação dos poderes é plenamente respeitada, nem as garantias de direitos fundamentais.

Quanto à primeira, tem sido geradas, em demandas judiciais perante o STF, portanto, fora do âmbito dos Poderes políticos — Executivo e Legislativo — não raro em despachos monocráticos (que não se coadunam com o artigo 97 da Carta) — normas impositivas que pautam a governança e criam direitos e obrigações em contradição com o artigo 5º que dispõe:

“II – ninguém será a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.”

Igualmente, no dia a dia, ocorrem maus tratos a dano de direitos fundamentais, que claramente estão enunciados na Constituição.

Por exemplo, volte-se ao artigo 5º da Constituição dita cidadã.

Em seu inciso IX está:

“É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;”

É isto reflexo da “liberdade de expressão do pensamento” (inciso IV), sem dúvida um dos mais importantes de todos os direitos fundamentais, que a Carta defende proibindo a censura. Direito este que decorre da “liberdade de consciência e de crença” (inciso VI).

Tão importante é essa liberdade que o artigo 220 o repete:

“A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.”

E a proibição da censura é também reiterada:

“É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.”

Ora, muitos são os casos de censura que se tem registrado. O último bem recentemente, episódio que relembra tristemente a queima de livros pelo regime nazista.

Ademais, por um simples inquérito, depois desdobrado em muitos outros, estabeleceu-se um “sistema de emergência” não previsto na Constituição, em nome da democracia, em atentado contra o modelo liberal.

A Lei Magna, com efeito, admite que para a “Defesa do Estado e das Instituições democráticas” — Título V da Constituição — se instalem restrições, sempre temporárias, exceto no caso de guerra”, ao exercício de direitos fundamentais. E nesse Título jamais se atribuiu tal poder senão aos Poderes políticos, jamais a um Poder não político, não eleito, que nenhum outro controla. Este, porém, se auto-investiu de um poder de emergência ilimitado e interminável.

E registre-se — como todos sabem — que o inquérito decorre de publicações consideradas ofensivas aos membros do Poder não político, e o primeiro ato que se lhe seguiu foi a censura a uma de tais publicações.

Não estamos, contudo, em guerra, nem se percebe qualquer situação de emergência, nem a democracia está em perigo (salvo a liberal), pois, houve eleições já duas vezes depois desse inquérito ser decretado em 2019 e empossou-se o eleito de 2022, mas esse inquérito conserva a sua vigência e escora a de suas ramificações. E até se anuncia que perdurará por muito tempo à frente.

Neste quadro, não apenas se estabeleceu censura, colhendo a liberdade de expressão, mas a criminalização de condutas, sem caracterização penal. Revogou-se o princípio de que não há crime sem prévia lei que o defina. Pobre Beccaria!

Igualmente, suprimiu-se para acusados, às vezes adrede escolhidos, o devido processo legal (artigo 5º, LIV). É o caso de desordeiros do 8 de janeiro, que não têm foro privilegiado e são processados e julgados por autoridade que não é competente, juridicamente falando, como reclama o artigo 5º, LIII.

De fato, os processos e o julgamento não se fazem pelo seu juiz natural. Assim, não se lhes assegura a possibilidade de ampla defesa (que ensejam os diferentes graus de jurisdição). Pior, são processados e julgados por quem assume o papel de investigador, acusador e julgador. E são condenados por atentado ao “estado democrático de direito”, como se na realidade pudessem tentá-lo com os meios de que dispunham — ou seja, atribuindo-lhes um crime impossível. Isto não raro depois de investigações secretas que vazaram na imprensa.

Tribunal de exceção

Poder-se-ia até dizer que são processados e julgados por um tribunal de exceção, relembrando o Tribunal de Segurança Nacional dos tempos do Estado Novo, a ditadura getulista. E tribunal de exceção é expressamente vedado pela Constituição no artigo 5º, XXXVII:

“Não haverá juízo ou tribunal de exceção.”

Tribunal de exceção não é apenas o que é instituído excepcionalmente para julgar determinados acusados de determinados crimes. É todo juízo excepcional que assume poder para processar e julgar casos que não lhe cabem segundo a Constituição e a lei.

De tudo o que se expôs sumariamente, confirma-se o que disse noutro trabalho. O Brasil não tem mais Constituição (rígida), pois a existente passou, por força de um “poder constituinte permanente”, de que se arrogam os ditos “guardiães da Constituição”, a poder ser modificada, sem a necessidade de Emenda.

A intenção de tais atos é boa, seja a defesa da democracia, seja a proteção do povo contra “fake news”, seja para “civilizá-lo). Mas disto não advém a capacidade de determinar o que é verdadeiro ou falso, de censurar o que parece, num juízo subjetivo, intolerável.

Por outro lado, a jurisprudência da Corte abala a segurança jurídica, pois — como há exemplo conhecido — na interpretação de norma constitucional ora dá-lhe um sentido, noutro, diferente. Ou seja, que variará de uma proibição a uma autorização, conforme o dia. Veja-se o caso do alcance de uma condenação penal relativamente à liberdade individual, que está claro no artigo 5º, LVII da Constituição:

“Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”

Apesar disto a prisão decorrente de condenação penal foi por um tempo admitida antes do trânsito em julgado e agora de novo proibida. Tudo por obra do “poder constituinte permanente”…

Assim, em conclusão, não temos Constituição que limite o poder, como se apontou em trabalho recente.

E pouco falta para a plena instauração de uma democracia iliberal, se falta.

Autores

  • é advogado, professor titular aposentado de Direito Constitucional e ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; é doutor em Direito pela Universidade de Paris e doutor Honoris Causa da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Foi professor visitante da Faculdade de Direito de Aix-en-Provence e é presidente da Associação Brasileira dos Constitucionalistas (Instituto Pimenta Bueno), além de ex-vice-governador do estado de São Paulo.

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