Opinião

Vega González v. Chile: limites da prescrição e da coisa julgada nos crimes de lesa humanidade

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25 de novembro de 2024, 12h18

Em 26 de setembro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) realizou o Ato de Notificação de Sentença do caso Vega González v. Chile.

Divulgação/CIDH

A decisão, proferida em 12 de março de 2024, aprofundou o debate sobre o dever de flexibilizar a prescrição e a coisa julgada, possibilitando a revisão de sentenças injustas em casos de graves violações de direitos humanos. Com isso, o caso exemplifica como enfrentar questões fundamentais de justiça, de combate à impunidade, notadamente em contextos em que o Estado e seus agentes são autores dos crimes.

Anteriormente, quando do encerramento das audiências públicas, pudemos apresentar os contornos gerais do caso à comunidade jurídica brasileira (aqui).

A República do Chile aplicou o mecanismo de “meia prescrição” ou “prescrição gradual” em crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura militar. Previsto no artigo 103 do Código Penal chileno, esse dispositivo permite reduzir a pena de prisão quando o acusado é processado após o decurso de metade do prazo prescricional. Por força desse instituto, crimes graves foram punidos de modo leve. Os 14 casos envolviam desaparecimentos forçados e execuções extrajudiciais de 49 vítimas.

A Corte IDH considerou que a aplicação da meia prescrição em tal cenário violou o princípio de justiça. Favoreceu-se a impunidade ao reduzir as penas e/ou transformá-las em medidas alternativas, como a liberdade vigiada. Isso contradiz os direitos à justiça previstos nos artigos 8.1 e 25 da Convenção Americana, bem como outros artigos da Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas (CIDFP).

Durante o julgamento, a República do Chile chegou a reconhecer sua responsabilidade, mas contrapôs-se ao pedido da Comissão para anular as sentenças da Corte Suprema e emitir novas decisões sem a aplicação da meia prescrição. Os seguintes argumentos foram aventados: (i) não há base legal no direito chileno para tal medida; (ii) o caso não se configura como coisa julgada fraudulenta; e (iii) a medida reparatória proposta seria de difícil implementação.

A Corte, por sua vez, entendeu que a aplicação da meia prescrição violou as garantias de investigação e punição de crimes de lesa-humanidade e determinou que a coisa julgada deveria ser revista. Como consequência, o Chile foi condenado a revisar ou anular as reduções de penas resultantes da aplicação desse mecanismo.

Coisa julgada

Apesar de reconhecer a necessidade de flexibilizar a coisa julgada, a Corte IDH poderia ter avançado mais no tema. Seria conveniente aprofundar a compreensão dos pressupostos para essa flexibilização e sua tipologia. Em razão disso, os juízes Rodrigo Mudrovitsch e Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot apresentaram um voto concorrente para esclarecer a aplicação do conceito de coisa julgada aparente no caso concreto.

No voto, foram abordados quatro pontos principais: (i) uma revisão do conceito de coisa julgada e sua relação com a proteção dos direitos humanos; (ii) uma recapitulação da jurisprudência da Corte IDH sobre o tema; (iii) a aplicação do conceito de coisa julgada aparente ao caso específico; e (iv) uma análise da interação entre direito penal e direitos humanos conforme os elementos apresentados à Corte IDH.

A coisa julgada aparente, conforme explorado pelos juízes no voto concorrente, refere-se a uma situação em que uma sentença, embora formalmente transitada em julgado, carece de legitimidade substancial devido a vícios graves no processo que a originou. Esse instituto tem sido usado pela Corte IDH para justificar a revisão de decisões nacionais que violam princípios fundamentais de direitos humanos.

Em certos contextos, a presunção de legitimidade das decisões internas deve ceder em favor de uma justiça material. Segundo o voto, a ausência de uma qualificação explícita como coisa julgada aparente no caso Vega González privou a jurisprudência interamericana de um importante refinamento teórico.

O voto propôs uma distinção entre duas categorias dentro da coisa julgada aparente: a coisa julgada fraudulenta e a coisa julgada aparente stricto sensu. A coisa julgada fraudulenta ocorre quando há manipulação direta do processo para beneficiar o acusado, como em casos de corrupção de testemunhas ou magistrados, falsificação de provas ou conluio entre o réu e agentes do sistema judicial.

Já a coisa julgada aparente stricto sensu abrange situações em que não há necessariamente fraude, mas onde a decisão é resultado de uma aplicação errônea de normas ou de vícios processuais graves, como a aplicação da prescrição em crimes imprescritíveis, levando a um resultado manifestamente injusto.

No caso Vega González, a aplicação da meia prescrição foi, segundo o voto, um exemplo clássico de coisa julgada aparente stricto sensu. Os juízes argumentaram que, ao aplicar o instituto da meia prescrição em crimes de lesa-humanidade, a Corte Suprema do Chile reduziu as penas de forma inconvencional, transformando o processo judicial em uma mera formalidade que não atendeu ao dever do Estado de investigar e punir tais delitos.

Esse uso da meia prescrição configura uma “pseudo-sentença”, uma decisão que, embora finalizada, não cumpre a função de proporcionar justiça às vítimas. Para os juízes, a Corte IDH deveria ter reconhecido explicitamente essa caracterização, fortalecendo o conceito de coisa julgada aparente no sistema interamericano.

A análise comparada também é um ponto central no voto. Os juízes destacam que o Tribunal Penal Internacional (TPI) e o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) já aplicam o conceito de vícios fundamentais para justificar a reabertura de casos em situações semelhantes. No TPI, o princípio da complementaridade permite a intervenção internacional quando as autoridades nacionais se mostram incapazes ou não dispostas a conduzir investigações e julgamentos de maneira adequada.

No TEDH, o artigo 4.2 do Protocolo nº 7 à Convenção Europeia permite a revisão de sentenças em casos de novos fatos ou de “vício fundamental”, como foi reconhecido no caso Mihalache vs. Romênia. Nesse precedente, o TEDH declarou que um processo finalizado poderia ser reaberto em prejuízo do réu caso vícios graves tivessem comprometido a decisão. Esse entendimento é semelhante ao princípio da coisa julgada aparente defendido pelos juízes Mudrovitsch e Ferrer Mac-Gregor.

Revisão

A importância de uma revisão do conceito de coisa julgada, conforme discutido no voto, vai além da resolução do caso concreto. Segundo os juízes, a aplicação do instituto é fundamental para assegurar que o direito penal cumpra seu papel de “escudo” dos direitos humanos, protegendo o acusado contra arbitrariedades e abusos do poder estatal, garantindo o respeito ao devido processo e à presunção de inocência.

No entanto, como “espada”, o direito penal pode ferir esses mesmos direitos quando institutos garantidores — como a coisa julgada, a prescrição e a anistia — são empregados de forma que favoreçam a impunidade em crimes de grande gravidade, como os de lesa-humanidade.

Nessa perspectiva, o conceito de coisa julgada aparente surge como uma ferramenta que busca preservar o equilíbrio entre o respeito à estabilidade das decisões judiciais e a necessidade de corrigir injustiças profundas e sistêmicas, especialmente em contextos de graves violações de direitos humanos.

Quando uma decisão transitada em julgado está viciada a ponto de legitimar um resultado injusto, como a proteção de perpetradores de crimes que, pela sua natureza, ofendem os princípios de justiça internacional, a coisa julgada aparente permite que essa decisão seja revista, reforçando o compromisso com a justiça substantiva.

Contudo, a relativização da coisa julgada apresenta desafios que demandam cautela. Por um lado, ela permite corrigir vícios graves, como a aplicação de dispositivos legais que promovem a impunidade, reafirmando o direito das vítimas à justiça e à reparação. Por outro lado, questiona um dos princípios fundantes do direito: a estabilidade das decisões judiciais.

A possibilidade de revisar sentenças transitadas em julgado pode afetar a segurança jurídica e abrir precedentes que enfraquecem a autoridade das cortes nacionais, além de suscitar temores de que essa flexibilidade seja aplicada de forma abusiva ou política.

A ausência de uma consolidação normativa do conceito de coisa julgada aparente, como proposto pelos juízes Mudrovitsch e Ferrer Mac-Gregor, ressalta a necessidade de um marco teórico mais robusto que delimite claramente as circunstâncias em que a revisão é justificada.

A sistematização de critérios, como a existência de vícios graves, a impunidade resultante e a conexão entre esses elementos, poderia mitigar os riscos de instabilidade jurídica, ao mesmo tempo em que garantiria que a justiça material prevaleça sobre formalismos processuais.

Desse modo, o caso Vega González traz contribuições importantes para o desenvolvimento do sistema interamericano, mas também revela uma lacuna na jurisprudência sobre os limites e pressupostos da coisa julgada aparente. Esse equilíbrio entre a estabilidade das decisões e a justiça material é essencial para que o direito penal efetivamente proteja os direitos humanos, sem sacrificar a previsibilidade e a integridade do sistema jurídico.

Autores

  • é professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo e juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. É co-responsável pela coordenação acadêmica do IX Fórum de Lisboa.

  • é estudante de Direito do Instituto de Direito Público de Brasília (IDP).

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