O Estado e o cidadão, sob o olhar do mestre (parte 1)
25 de novembro de 2024, 10h17
“A ciência que deduz da natureza e do fim do Estado a melhor organização dos poderes públicos, como meio de assegurar o império da justiça no seio da sociedade, e que determina os direitos e deveres do Estado para com o cidadão, e deste para com o Estado”, com essas palavras Pedro Autran, a pretexto de definir os contornos da disciplina, inicia o seu “Elementos de direito público universal” [1].
O conteúdo da primeira cadeira do início dos cursos jurídicos, então criados pela Lei de 11 de agosto de 1827, era dotado de uma amplitude descomunal. Englobava, tal como a sua denominação, o direito natural, público, análise da Constituição do Império, direito das gentes e diplomacia. Prosseguia durante o segundo ano letivo, juntamente com a cadeira de direito público eclesiástico [2].
Invencível, a realidade impunha o tratamento doutrinário em separado de partes do conteúdo da disciplina, cuja autonomia era — ainda é — inegável [3]. Por isso, Pedro Autran discorreu sobre os principais aspectos dos vínculos entre o Estado e os cidadãos.
A redução a escrito de suas ideias se deu sob a influência do Estado liberal de Direito. Assim, não poderia deixar de dispensar atenção à organização e harmonia dos poderes sociais [4], não antes sem deixar de enfatizar que o seu exercício se dá mediante a delegação da sociedade, pois pertencem a esta. Assim fez atento aos paradigmas do constitucionalismo francês de 1789 e 1791 e do norte-americano (Constituição de 1787), isolando-se da influência do princípio monárquico do Congresso de Viena (1815), que influenciou as Cartas Constitucionais francesas de 1814 e 1830 e o direito público prussiano do século 19.
Por essa razão, ao depois de acentuar que os poderes sociais envolvem os direitos de legislar (poder legislativo), de executar (poder executivo) e de julgar (poder judiciário), Autran enuncia os seus princípios gerais organizativos. O primeiro deles, dirigido à legislação, é o de que as leis de um Estado não são boas, nem adequadas à sua finalidade, a não ser quando conciliem os interesses de todos os segmentos da sociedade, realizando o interesse geral.
Para tanto, repele o legislativo indiviso, unicameral, pois a lei, para ser sábia, deve ser obra de muitas inteligências, conjurando, assim, a influência funesta e subversiva das paixões. Da mesma forma, o órgão legiferante há que se renovar periodicamente, total ou parcialmente, uma vez: “O progresso e o aperfeiçoamento das leis exigem, pois, como condição indispensável, que o órgão legislativo se renove de tempos a tempos” [5].
Noutro passo, acentua que a execução das leis para ser rápida, segura e vigorosa, há que ser confiada a uma pessoa física — cuja investidura pode ser eletiva ou hereditária, sendo esta preferível — que atua por intermédio de agentes que lhe são subordinados (ministros e agentes), de modo que o poder executivo reúna “a maior unidade, e por outro, isto é, quanto à administração, a maior divisão possível; e que, não obstante a amovibilidade dos órgãos ativos, a marcha do governo se conserva regular” [6].
Quanto ao judiciário, diz Autran que as leis nunca serão aplicadas aos casos concretos com imensa justiça quando os julgadores são dependentes dos particulares e dos órgãos dos demais poderes. Por isso, reprova a eleição dos juízes, “porque a imparcialidade dos julgamentos não se compadece com a dependência em que estaria o juiz do favor para continuar no emprego” [7].
Pela mesma razão, sustém que a boa administração da justiça requer que os juízes sejam distintos do poder executivo propriamente dito, bem assim independentes deste pela perpetuidade, a qual não é um favor, mas uma necessidade pública, um penhor de segurança aos direitos do cidadão” [8]. Antecipava, entre nós, a defensa da vitaliciedade, não consagrada pela então vigente Constituição de 1824 [9].
Irmã siamesa da separação de poderes, a harmonia destes não foi olvidada, expondo, para tanto, a necessidade de contrapeso das forças, porquanto uma “assembleia legislativa sem o veto do poder executivo, se tornaria despótica; um poder executivo, que não estivesse sujeito a nenhuma inspeção do corpo legislativo, deixaria de cumprir a lei; um poder judiciário, sobre cujos membros nenhuma inspeção pudesse exercer o poder executivo, que os institui, cometeria os maiores excessos de poder” [10].
Mas não só
A harmonia — para o autor — pressupõe também mecanismos intrínsecos, de modo que a cada poder é ínsito um elemento de ordem, consistindo, no poder legislativo, na divisão das câmaras; no poder executivo, a perpetuidade do chefe e a amovibilidade dos agentes; no poder judiciário, “o elemento de ordem está nos graus de instância, e na instituição de um tribunal supremo, para velar que a lei seja a regra do juiz, e não a sua razão” [11].
A despeito de compreender que as formas de governo são determinadas pelas circunstâncias peculiares de cada povo, Autran [12] confessa-se entusiasta da monarquia constitucional, estádio com o qual é possível afirmar que um povo chegou ao desideratum na ordem política, atingindo o mais elevado grau de civilização, pois resume todas as garantias de ordem e liberdade.
Trata-se, assim, de um governo composto, isto é uno e trino, de sorte que: “ Os três poderes, que compõem a soberania dividem-se, e cada um tem força própria para desempenhar a sua missão. Digo força própria, porque nenhum tira a sua força do outro, visto que cada um é independente em sua ação” [13].
Ocupa-se da lei fundamental do Estado [14] — que assim é por ser um complexo de disposições legais que determinam a natureza e a forma de governo de um povo, constituindo o direito constitucional positivo —, que também se denomina de constituição política, podendo fundar-se nos usos do povo (consuetudinária) [15] ou em princípios claramente formulados (escrita) [16].
Não escondeu, antes realçou, a superioridade desta sobre aquela, tendo em vista ser a escritura a melhor expressão do acordo entre os homens, sendo certo de que os direitos de quem governo e do povo nunca são bem definidos a não ser quando escritos, recordando o exemplo de Licurgo, o qual, por confiar as suas leis à memória dos espartanos, não encontrou imitadores nem mesmo entre os antigos.
A preocupação com o conteúdo de uma lei fundamental — e não somente com a existência de um documento sob tal nomenclatura — é patente quando o autor se volta à delimitação do que deve ser essencial à constituição escrita. De fato, acentuou Autran [17] ser imprescindível que esta contenha: a) a declaração dos direitos naturais do homem; b) a organização dos poderes públicos e de suas competências; c) as condições para o exercício dos direitos políticos.
De logo, vê-se, numa bipartição inerente às espécies de direitos fundamentais então reconhecidas, que os direitos ditos políticos se distinguem dos naturais porque estes decorrem das faculdades concedidas por Deus aos homens, enquanto que os políticos, por visarem o governo da sociedade, requerem a condição de capacidade, propiciando uma diversificação dentre o conjunto dos indivíduos [18].
Essa era a convicção predominante em tempos do Império, muito embora a inquietação política dos franceses já ultrapassasse o voto censitário com a Constituição de 1848 [19]. Por isso, Pimenta Bueno [20] elaborou uma tríade para classificar os direitos das pessoas, a compreender os:
a) direitos naturais ou individuais, pertencentes ao homem pelo só fato de ser homem;
b) direitos civis, bipartidos, sendo compostos dos direitos individuais garantidos pela lei civil e daqueles resultantes das instituições cíveis de cada nacionalidade;
c) direitos políticos, resultantes da criatividade das leis e das constituições políticas, verdadeiras criações das conveniências destas e não faculdades naturais.
O que singularizava tais categorias — afirmou Pimenta Bueno [21] — é que, quanto aos primeiros, por serem filhos da natureza, pertencem ao homem em face desta qualidade, apenas; enquanto que, no que diz respeito aos segundos, pertencem unicamente aos nacionais; já para a fruição dos terceiros, exigia-se mais do que ser humano ou nacional, devendo-se ter a capacidade ou a habilitação traçada pela lei política.
Mesmo considerando que os direitos naturais prescindam de forma legislativa, Autran ressalta a importância de sua consagração numa declaração de direitos, seja pela utilidade de apontar para os legisladores o espírito da constituição, seja para indicar as exceções cabíveis, porque “se estas fossem deixadas ao arbítrio do poder legislativo, a declaração dos direitos se tornaria ilusória”, de modo que “a mesma constituição, que formula os direitos individuais, indique também as exceções, para serem reguladas pelo poder legislativo ordinário conforme exigirem as circunstâncias” [22].
*esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).
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[1] Nova edição, correta e aumentada. Recife: Guimarães e Oliveira, 1860, p. 7. A edição original recua a 1848.
[2] Ver a redação do art. 1º da Lei de 11 de agosto de 1827, disponível em: www.planalto.gov.br.
[3] Anota Gláucio Veiga que essa cisão foi logo implementada quanto as aulas, tendo em vista que parte da matéria da cadeira, qual seja a relativa a direito público, das gentes e diplomacia, passou, a partir de 1829, a ser lecionada por Antônio José Coelho e Pedro Autran da Matta Albuquerque, ambos na condição de lentes substitutos (VEIGA, José Gláucio. História das ideias da Faculdade de Direito do Recife. Recife: Editora Universitária, 1980. Vol. I, p. 253).
[4] ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos de direito público universal. Nova edição, correta e aumentada. Recife: Guimarães e Oliveira, 1860, p. 14-30.
[5] ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos de direito público universal. Nova edição, correta e aumentada. Recife: Guimarães e Oliveira, 1860, p. 20. A lição pode ser justificada, em tempos atuais, com o reforço de Caio Mário, quando se reporta à lei do progresso social, salientando que o direito, pela necessidade de captar a evolução da sociedade, há que estabelecer novos preceitos, sob o argumento de que a lei nova traz a presunção de que é melhor e mais perfeita do que a antiga (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições do direito civil. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. Vol. I, p. 89).
[6] ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos de direito público universal. Nova edição, correta e aumentada. Recife: Guimarães e Oliveira, 1860, p. 23-24.
[7] ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos de direito público universal. Nova edição, correta e aumentada. Recife: Guimarães e Oliveira, 1860, p. 24.
[8] ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos de direito público universal. Nova edição, correta e aumentada. Recife: Guimarães e Oliveira, 1860, p. 25.
[9] De fato, embora o pórtico do art. 153 da Constituição Imperial solenizasse que os “Juízes de Direito são perétruos”, o art. 154 da Carta Imperial dispunha: “Art. 154. O Imperador poderá suspendel-os por queixas contra elles feitas, precedendo audiencia dos mesmos Juizes, informação necessaria, e ouvido o Conselho de Estado. Os papeis, que lhes são concernentes, serão remettidos á Relação do respectivo Districto, para proceder na fórma da Lei” (disponível em: www.planalto.gov.br). A garantia da vitaliciedade adveio com a República, conforme se vê da Constituição de 1891: “Art. 157 – Os Juízes federais são vitalícios e perderão o cargo unicamente por sentença judicial”.
[10] ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos de direito público universal. Nova edição, correta e aumentada. Recife: Guimarães e Oliveira, 1860, p. 28.
[11] ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos de direito público universal. Nova edição, correta e aumentada. Recife: Guimarães e Oliveira, 1860, p. 28. Quanto ao segmento judicial, a observação remete a um modelo que teve seu início, no direito europeu continental, com a lei francesa de 1837 que instituiu o Tribunal de Cassação, órgão ao qual cabia estabelecer a interpretação da lei a ser observada pelos demais juízes.
[12] ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos de direito público universal. Nova edição, correta e aumentada. Recife: Guimarães e Oliveira, 1860, p. 35, -38.
[13] ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos de direito público universal. Nova edição, correta e aumentada. Recife: Guimarães e Oliveira, 1860, p. 38.
[14] ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos de direito público universal. Nova edição, correta e aumentada. Recife: Guimarães e Oliveira, 1860, p. 40-42.
[15] Segundo Dallari, a constituição costumeira nasceu das disputas medievais pelo predomínio sobre terras e populações, com a afirmação de lideranças e costumes próprios de cada região (DALLARI, Dalmo de Abreu. A constituição na vida dos povos – Da Idade Média ao século XXI. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 45).
[16] Loewenstein realça o triunfo do universalismo da constituição escrita, iniciado com as constituições das então colônias americanas, seguida da Constituição de 1787, alcançando nas gerações posteriores a completa democratização do processo de poder político (LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la constitución. Barcelona: Ariel, 1962, p. 159-160. Tradução por Alfredo Gallego Anabitarte).
[17] ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos de direito público universal. Nova edição, correta e aumentada. Recife: Guimarães e Oliveira, 1860, p. 42.
[18] A esse respeito, interessante as palavras do autor: “Se o homem, pois, como ente livre, tem os mesmos direitos naturais que outro, como ente social não tem direito à igualdade dos direitos políticos. Na ordem civil, que não é senão a ordem natural, deve haver igualdade perfeita, que é o ideal da justiça, para o qual deve a sociedade caminhar; na ordem política, porém, é útil, necessária, e justa a hierarquia dos direitos, porque os homens diferem quanto à capacidade para as funções sociais, e entre pessoas desiguais a desigualdade é de justiça rigorosa” (ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos de direito público universal. Nova edição, correta e aumentada. Recife: Guimarães e Oliveira, 1860, p. 42). Autran insistiu na mesma compreensão em trabalho posterior (ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Reflexões sobre o sistema eleitoral. Recife: Tipografia Universal, 1862, p. 9 e 14-17).
[19] Mesmo ainda não aportando na cidadania feminina, a Constituição francesa de 04 de novembro de 1848 pioneiramente dispôs: “Art. 24. O sufrágio é direto e universal. O escrutínio é secreto (Art. 24. Le suffrage est direct et universal. Le scrutin est secret. Les constitutions de la France de la Révolution à la IVe République. Paris: Dalloz, 2009, p. 234).
[20] BUENO, José Antônio Pimenta. Direito público brasileiro e análise da Constituição do Império. In: KUGELMAS, Eduardo. Marquês de São Vicente – Coleção Formadores do Brasil. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 468.
[21] BUENO, José Antônio Pimenta. Direito público brasileiro e análise da Constituição do Império. In: KUGELMAS, Eduardo. Marquês de São Vicente – Coleção Formadores do Brasil. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 468-469.
[22] ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos de direito público universal. Nova edição, correta e aumentada. Recife: Guimarães e Oliveira, 1860, p. 43.
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