Controvérsias Jurídicas

Decisão polêmica confunde direito de voto com improbidade administrativa

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  • é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

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25 de novembro de 2024, 11h19

A 1ª Câmara de Direito Público do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), em julgamento de 5 de novembro de 2024, condenou, dentre outros agentes públicos, 27 vereadores da Câmara Municipal de Guarulhos por ato de improbidade doloso — violação genérica a princípios da administração pública (Lei nº 8.429/1992, artigo 11, caput). Isso porque os vereadores, em 2010, votaram o destombamento de uma casa declarada patrimônio cultural do município em 1999.

A opção política dos parlamentares manifestada por meio do seu direito constitucional ao voto foi considerada violação aos princípios constitucionais da administração. Na hipótese, não se comprovou nenhuma irregularidade na votação. O dolo foi presumido exclusivamente porque os julgadores discordaram do mérito da votação.

A sentença de primeiro grau corretamente havia julgado improcedente a demanda, justamente por considerar o voto mero exercício de função típica, cuja liberdade de manifestação não pode ser confundida com ação ímproba.

O acórdão reformou a sentença, entendendo ter havido dolo porque “as razões pelas quais o imóvel foi tombado eram públicas e notórias, de modo que os requeridos tinham plena ciência da relevância para a preservação da memória e do patrimônio do Município de Guarulhos (…) Assim, eventual destombamento deveria estar lastreado em motivos que revelassem a irrelevância daquele imóvel, seja na esfera arquitetônica, seja no âmbito da memória regional, sempre tendo em consideração a tutela do interesse público e não dos interesses privados e econômicos dos corréus proprietários do centro comercial”.

A decisão, embora reconhecesse que a votação parlamentar estava respaldada por parecer técnico favorável e por autorização do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico de Guarulhos, ainda assim afirmou, por pura dedução, que os vereadores teriam agido de modo imoral e desonesto. Tal dedução se deu exclusivamente pela discordância quanto ao mérito do destombamento.

Equívocos da decisão

A decisão incorreu fundamentalmente em dois equívocos: (1) presumiu dolo, o que equivale a adotar a responsabilidade objetiva; (2) aplicou dispositivo revogado pela nova Lei de Improbidade Administrativa, no caso, o artigo 11 em sua redação original, que previa a existência de ato de improbidade por violação genérica a princípios da administração pública. O Plenário do STF já decidiu que essa alteração benéfica retroage para alcançar os processos em andamento.

1º erro: presunção do dolo

O artigo 11, § 1º, da Lei de Improbidade, embora supérfluo, diante da obviedade de seu conteúdo, tem clara finalidade didática para casos como o presente, em que se emprega argumentação discursiva para criar ato de improbidade por presunção: “Nos termos da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, somente haverá improbidade na aplicação deste artigo, quando for comprovado na conduta funcional do agente público o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade” (destacamos).

O dispositivo não deixa margem para dúvidas: não existe ato de improbidade por dedução ou suposição, ou se prova o desvio de finalidade ou não existe a infração administrativa. Nisso consistiu o primeiro grave erro da decisão: em presumir que, da suposta fragilidade dos argumentos técnicos utilizados para autorizar o destombamento, decorreria inevitavelmente a conclusão de que os vereadores buscavam deliberadamente, através do voto, perseguir um fim ilícito.

Com efeito, não se produziu nenhuma prova no sentido de que os vereadores perceberam vantagem ilícita, mantiveram diálogos ou contatos suspeitos ou atuaram com desvio de finalidade. O direito trabalha com evidências concretas e não achismos ou presunções. A existência do dolo, no entendimento do acórdão, decorreu única e exclusivamente da discordância quanto ao mérito da questão.

Spacca

Não se está aqui a discutir se era caso de tombamento ou destombamento, mas se é possível deduzir dolo a partir da isolada análise do voto. A lei pode até ser declarada inconstitucional e o ato invalidado, mas isso não significa que a convicção do parlamentar manifestada por meio do voto tenha sido um ato de desonestidade. Não basta discordar do mérito da decisão, devendo ser comprovada, de forma clara e indubitável, a realização de algum ato ilícito que defina aquele ato de votar como ato ímprobo e não mero exercício de atividade parlamentar.

É preciso ressaltar que o direito constitucional de voto, atividade típica do Poder Legislativo, é regido pelo princípio da íntima convicção, sendo desnecessária a fundamentação no momento de votar. É certo que os projetos de lei submetidos a votação são acompanhados da exposição de motivos, mas ao manifestar sua vontade pela aprovação, o parlamentar não precisa se justificar. Ele aprova ou não o projeto. Para isso recebeu autorização constitucional.

Para responder por improbidade administrativa seria necessário comprovar que o vereador se enriqueceu ilicitamente negociando seu voto em troca de qualquer vantagem ilícita ou que atuou deliberadamente no intuito de produzir um dano ao patrimônio público. Caracterizar o mero exercício do voto como ato ímprobo a partir da análise de uma suposta fundamentação escassa é subverter o princípio da responsabilidade subjetiva e adotar a responsabilização por mera causalidade naturalística.

O acórdão até tentou, por meio de retórica jurídica criar um biombo dialético para disfarçar a adoção da responsabilidade objetiva, afirmando ter havido dolo, no entanto, para proceder a tal afirmação, recorreu à presunção e a métodos dedutivos, o que equivale a desprezar o princípio da responsabilidade subjetiva. Como bem fundamentou a sentença de primeiro grau ao julgar a ação improcedente, dolo não se confunde com mera voluntariedade, sendo essa a redação dos §§ 2º e 3º do artigoo 1º da LIA, respectivamente:

“Considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos artigos 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente”. “O mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa.

A decisão abre perigoso precedente para outras formas de manifestação que não tenham a concordância do órgão julgador, podendo ser aplicável até mesmo a uma decisão judicial escassa de fundamentação, afinal, se votar é função típica do Legislativo, julgar é a do Judiciário.

O STJ já firmou a tese de que “caso se entenda que o dolo está no resultado, pode-se dizer que todo resultado lesivo será automaticamente doloso; no entanto, certo é que o dolo está na conduta, na maquinação, na maldade, na malícia do agente, sendo isso o que deve ser demonstrado e o que não foi, no caso em apreço” (AgRg no REsp 968.447 PR 2007/0164169-0, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª T., DJe 18.05.2015)”.

No mesmo sentido, de que não se pode confundir improbidade com mera ilegalidade: REsp 1.512.831/MG, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 13/12/2016, DJe 19/12/2016; AgRg no REsp 1.500.812/SE, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 28/5/2015; REsp 1.512.047/PE, Rel. Ministro Herman Benjamin, 2ª T, DJe 30/6/2015.

É importante ter em mente que, ainda que a Lei de Improbidade não detenha conteúdo penal, as esferas penal e a administrativa poderão interagir, em especial quando seus efeitos forem punições de equivalente severidade. Nesse ponto é que surge o direito administrativo sancionador, para assegurar que o castigo de natureza administrativa somente possa ser aplicado, mediante o estabelecimento das mesmas garantias que precedem a punição criminal.

Não é direito penal, mas assegura as mesmas garantias. Como lembra Fabio Medina Osório, “a improbidade é uma patologia de gravidade ímpar no contexto do direito administrativo sancionador, eis que suscita reações estatais bastante severas; por isso mesmo, sua punição, no devido processo legal que lhe cabe, exige obediência a regras e princípios do direito punitivo, marcadamente de direito administrativo sancionador[1].

Deste modo, não é qualquer ilegalidade que a configura. A imputação administrativa por improbidade só pode ser aplicada se a conduta preencher os requisitos de: (a) tipicidade formal, (b) conteúdo lesivo capaz de vulnerar o interesse público; (c) dolo, entendido como a vontade livre, consciente e inequívoca de agir para produzir algum fim ilícito.

O ato de improbidade possui hoje a mesma carga sancionadora de um ilícito penal, impondo ao agente público idêntica nódoa à sua honra e decoro. O agente público ímprobo carrega um fardo de infâmia que o acompanhará por toda a vida, sem contar a privação muitas vezes completa de seu patrimônio e perda de seu trabalho, no caso a função pública.

Pelo fato de não ser considerado formalmente crime, não pode retirar do acusado o rol de proteção de alguns institutos solidamente edificados no bojo do direito penal, portanto, de toda uma ordem protetiva dos direitos e garantias individuais, que fornecem o conteúdo material do Estado democrático de Direito.

Nesse aspecto, a exigência de conteúdo material para a existência da improbidade torna-se imperiosa para evitar uma resposta punitiva desproporcional por parte do Estado, conforme se trate de penalidade criminal ou pena por improbidade.

O ato de improbidade exige, portanto, três requisitos: TIPICIDADE FORMAL (estar formalmente definido em lei) + TIPICIDADE MATERIAL (grave vulneração da ordem jurídica) + DOLO ESPECÍFICO (vontade deliberada de agir desonestamente querendo burlar a lei). Somente se preenchidos todos esses três requisitos, será possível falar em fato típico penal ou ato de improbidade.

Nesse sentido, Rafael de Oliveira Costa e Renato Kim Barbosa: “A caracterização do ato de improbidade administrativa depende, a partir do advento da Lei n. 14.230/2021, da presença do elemento subjetivo dolo na conduta perpetrada pelo sujeito ativo[2]. Não basta, portanto, a voluntariedade do agente ou o mero exercício de função típica ou o desempenho de competências públicas, sem comprovação efetiva (e não mera dedução).

2º erro: Não cabe mais condenação por violação genérica ao artigo 11 da LIA

Além de presumir o dolo, a decisão e incorreu em outro erro grave. Os dispositivos nos quais os vereadores foram incursos não estão mais previstos como ato de improbidade, uma vez que o art. 11 da LIA teve sua redação alterada para eliminar a tipificação genérica, devendo tal modificação retroagir de acordo com a jurisprudência pacífica do STF [3] e do STJ [4].

O simples ato de votar nunca foi e nunca será improbidade administrativa, mas atualmente, não há sequer a possiblidade de tentar enquadrá-lo formalmente como tal. É que foi revogada a antiga redação do artigo 11, que continha uma previsão genérica de duvidosa constitucionalidade, no sentido de que qualquer violação a princípio constitucional da administração seria ato de improbidade.

Essa redação deu margem a todo tipo de manipulação retórica, sendo inadmissível um tipo de improbidade com tamanha amplitude. Qualquer interpretação de que um ato administrativo supostamente teria violado um princípio já dava margem para considerá-lo ato de improbidade. Como já tivemos a oportunidade de escrever:

“…o art. 11 trata de considerar ato de improbidade administrativa a violação a princípios, cuja vagueza e abstração torna demasiadamente perigosa a abertura interpretativa do tipo em comento. Dizer que configura ato de improbidade qualquer violação a princípio da Administração Pública implica em criar fórmula tão abrangente, que retiraria qualquer segurança jurídica o jurisdicionado. Bastaria, por exemplo, o autor da ação interpretar diferentemente a incidência de um princípio para já ter como configurada infração merecedora de repressão com base na LIA. Assim, por exemplo, um prefeito que deseje, com base em previsão orçamentária, destinar verba para incentivar o artesanato local em vez de aplicar toda a verba na área da saúde, poderia incorrer em ato de improbidade com base na subjetiva e personalista aplicação do princípio da moralidade ao caso concreto. Do mesmo modo, a interpretação de uma lei específica em desacordo com o entendimento do Ministério Público poderia caracterizar ofensa ao princípio da legalidade. A construção de um canil público insuficiente para abrigar todos os cães abandonados em um Município, poderia atentar contra o princípio da eficiência. Havia enorme insegurança jurídica na forma da redação anterior, em boa hora alterada.[5]

Conclusão

Por essa razão, necessária a reforma da decisão pelo STJ ou STF a fim de que não permaneça como critério hermenêutico capaz de confundir voto com improbidade administrativa dolosa, a partir da mera discordância com seu conteúdo. Por outro lado, a decisão revela a tendência cada vez presente de interferência do Poder Judiciário em atividade típica do Legislativo e Executivo.

Diz a CF que todo poder emana do povo e em seu nome será exercido por meio de representantes legitimamente eleitos. Quem tem legitimidade para fazer opções políticas são os eleitos, ou seja, os membros do Poder Legislativo e os chefes do Executivo, uma vez que foram eles que receberam delegação de poder por meio do voto popular.

O Ministério Público e o Poder Judiciário, assim como os Tribunais de Contas, possuem legitimidade técnica, cabendo-lhes avaliar se a atuação administrativa ou política confrontou a lei ou a Constituição.

Não lhes cabe a invalidação de um ato apenas por discordarem de seu mérito ou, o que é ainda mais grave, a punição de um parlamentar ou de um administrador público pelo mesmo motivo. Neste caso, o órgão jurisdicional ou de controle estariam, sem autorização constitucional, substituindo-se ao agente político para, desprovidos de mandato popular, tomar para si decisões de caráter discricionário delegadas exclusivamente a quem foi eleito para legislar ou administrar.

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[1] OSÓRIO, Fabio Medina. Improbidade Administrativa. Observações sobre a Lei, v. 8, p. 92, 1998.

[2] COSTA, Rafael de O.; BARBOSA, Renato K. Nova Lei de Improbidade Administrativa: De Acordo com a Lei n. 14.230/2021. Grupo Almedina (Portugal), 2022, p. 69-70,

[3]  STF, Pleno, ARE 843989, rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe 09/12/2022; STF, Pleno, ARE 803568, AgR segundo EDV-ED, rel. p/ Acórdão Min Gilmar Mendes, DJe de 06/09/2023.

[4]  REsp n. 1868137/PR, Rel. Min. Sérgio Kulina, DJ 23/10/2023.

[5] CAPEZ, Fernando. Nova Lei de Improbidade Administrativa, Limites Constitucionais. SP: Saraiva, 3ª ed, 2003, p. 177).

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

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