Voltaire antissemita, liberdade de expressão e censura
24 de novembro de 2024, 7h05
Repercutiu, e não teria como não repercutir, a decisão proferida pelo ministro Flávio Dino no Recurso Extraordinário com Agravo 1.513.428, no qual ele determina a retirada de circulação de obras jurídicas com conteúdo homofóbico, misógino e preconceituoso. Determina, em suma, a censura de tais obras.
Que os indigitados trechos das obras proibidas são realmente de conteúdo extremamente homofóbico, preconceituoso, ofensivo, denotadores de uma personalidade realmente perturbada e até mesmo indicador de uma mentalidade bem involuída, não há como negar. São trechos realmente deprimentes. Mas o fato é que, se esses trechos não puderem existir, tampouco o seu oposto o poderá, vale dizer, ou a liberdade de expressão deve existir para que se publique tudo, ou o Estado deve instaurar uma perene, implacável e onipresente perseguição à palavra escrita e falada.
Como diz Voltaire, a liberdade de escrever e falar não tem como não trazer à tona senão todos os discursos, ideias e opiniões, com todos os riscos e proveitos inerentes a essa liberdade: “Em geral, faz parte do direito natural valer-se da pluma, tal como nos valemos da língua, com todos os seus perigos, riscos e acasos.
Conheço muitos livros que enfadaram, não conheço nenhum que tenha causado algum mal real.” [1] A liberdade de expressão existe em razão de algo mais sagrado, e que constitui a essência do homem: o seu pensamento. “O homem é visivelmente feito para pensar”; “Toda a dignidade do homem está no pensamento”, disse bem Pascal [2].
Aquele que pretenda negar a liberdade de expressão em “certos casos” nega a própria liberdade do homem de pensar, nega a dignidade humana mesma, pois como diz Benjamin Constant, o homem “tem necessidade de expressar seus pensamentos. Ele próprio, o pensamento, por vezes só é real quando expresso”. [3] Portanto, indagar “quais pensamentos o homem pode expressar?” já é dizer “quais pensamentos o homem pode ter?”, e aí o Estado se encontraria na posição de negar a própria dignidade humana, eis que teria de proibir no homem a faculdade de pensar.
Investir contra qualquer tipo de opinião
O chavão “a liberdade de expressão não é absoluta” permite ao Estado investir constante e ininterruptamente contra qualquer tipo de opinião e instaurar a validez de toda e qualquer censura, pois se, em cada momento que o Estado censurar uma determinada obra ou publicação ele se valer desse chavão, não há como refutar que houve violação à liberdade de expressão, pois ela pode ser relativizada. Por essa via, nenhuma censura poderia ser considerada violadora da liberdade de expressão. Daí ter se valido o ministro de uma “inofensiva” justificativa: “Eu apenas apliquei um precedente desta Corte.”
Refere-se ele ao precedente do Caso Ellwanger (HC 82424), famoso caso antissemitismo aqui no Brasil. Ocorre que, se realmente se devesse aplicar o precedente em toda a sua extensão e rigor, a Suprema Corte teria de se ver censurando e recolhendo os livros de ninguém menos… do que o próprio Voltaire! De fato, o iluminista francês, grande apóstolo da tolerância e da liberdade, tinha um lado pouco conhecido: era bastante antissemita. A prestigiada editora Martins Fontes tem uma coleção chamada “Projeto Voltaire vive”, que contém uma coleção de obras do filósofo francês, sobre filosofia, religião, política e outros temas. Reproduzamos aqui alguns trechos que saíram da pluma de Voltaire. Em “Deus e os homens”, lê-se:
“Vejo apenas que viveram na Palestina como árabes vagabundos, durante vários séculos, atacando todos os seus vizinhos um depois do outro, saqueando tudo, destruindo tudo, não poupando nem sexo, nem idade, ora vencedores, ora vencidos, amiúde escravos. Essa vida vagabunda, essa sequência contínua de assassinatos, essa alternativa sangrenta de vitórias e derrotas, esses tempos tão longos de servidão ter-lhe-ão permitido aprender e escrever e ter uma religião fixa?
(…).
Não se pode duvidar, portanto, de que, segundo os livros dos próprios judeus, sua religião era muito incerta, muito vaga, muito pouco estabelecida, tal como devia ser, enfim, num pequeno povo de bandoleiros errantes, que viviam unicamente de rapinas.”[4]
Estes são de “O túmulo do fanatismo” [5]:
“Os judeus, que escreveram o Gênesis, não passam, pois, de imitadores; (…). Suas rapsódias demonstram que pilharam todas as suas ideias dos fenícios, caldeus e egípcios, assim como pilharam os seus bens sempre que puderam. O próprio nome Israel foi tomado dos caldeus, como confessa Fílon na primeira página do relato de sua missão junto a Calígula; e seríamos muito imbecis em nosso Ocidente se pensássemos que tudo o que esses bárbaros do Oriente roubaram era propriedade deles!”
Quem diria! Veja que estamos tratando de uma das figuras mais respeitáveis que a humanidade já conheceu, e, nada obstante, estes ofensivos trechos saíram de sua pena. Se vivesse atualmente, Voltaire seria enquadrado no precedente Ellwanger. Aliás, vive até hoje, afinal, trata-se do “Projeto Voltaire vive”, não? Trata-se de manter as suas ideias vivas e vigorosas! Mas e agora? Estas particulares ideias de Voltaire, reproduzidas acima, devem ser censuradas? Não! E dizer isso não significa que concordo com Voltaire nisso que eu não quero ver censurado.
Posicionamento contra a censura
Quando alguém se posiciona contra a censura, os autoritários gostam de fazer crer que, ipso facto, se é então a favor daquilo que está sendo censurado, ou seja, se você é contra a censura de livros ditos homofóbicos, você é a favor da homofobia; se você se posiciona contra a censura de livros ditos antissemitas, você é antissemita. Essa é uma maneira tosca e superficial de se enxergar o fenômeno. Na verdade, não se é contra a censura porque se defende a ideia censurada.
É precisamente o contrário: adota-se a posição contra a censura tão somente porque ela é um meio inepto de se combater a ideia ou opinião ruim, odioso, preconceituosa. Em outras palavras, a pessoa que é contra a censura não é a favor da ideia censurada senão que é decididamente contrária a ela, e entende que para melhor combatê-la, denunciá-la, expô-la como ideia errada, ruim, odiosa… ela deve ser conhecida, para poder ser exposta como tal, como ideia ruim, odiosa, errada, preconceituosa.
Dito de outro modo, se eu aqui me posiciono contra a censura dos livros do Voltaire, ou de trechos deles, não é porque endosso os trechos acima citados, mas porque desejo que esse Voltaire seja conhecido e refutado.
É inclusive, vejam só, uma forma exemplar e contagiante de se prestigiar a própria liberdade de pensamento e de expressão, e então dizer: eu discordo de Voltaire! Não existe maior homenagem à liberdade de pensamento e à liberdade de expressão do que pensar e se expressar! Logo, pode-se até mesmo suspeitar que o ato de recorrer à censura para interditar a liberdade de pensamento é para o censor uma confissão implícita de que ele não costuma fazer uso da sua própria… Entre discordar de Voltaire, refutando-o e mostrando ao público que esse grande pensador está errado, para isso fazendo o uso dessa mesma liberdade de pensamento e expressão que ele se valeu, ou censurá-lo, a pessoa medíocre não hesita em trilhar por esta última via.
Ser contra a censura é ser a favor de algo melhor para combater discursos odiosos, racistas e preconceituosos: a liberdade de pensar e se expressar em sentido contrário. Existe, assim, um meio que dispensa autoritarismo, dispensa leis, recursos do Estado, processos, perseguição, censura, recolhimento de livros, um meio simples que repousa na mais tranquila e rigorosa observância da liberdade, vale dizer, da própria liberdade de expressão, como bem ensinou Benjamin Constant: “Se for do interesse de um indivíduo difundir máximas ruins, será do interesse de milhares de outros refutá-las”. [6]
A liberdade de pensamento e de expressão está aí: utiliza-se dela quem quer. Não é monopólio das pessoas “com ideias ruins”. Podemos então nos valer do próprio Voltaire para refutá-lo, quando ele diz: “Se um livro os desagrada, refutem-no; se os enfada, não o leiam.” [7] Refutemos Voltaire antissemita; ou, em não querendo ou não podendo refutá-lo, desprezemo-lo. As duas opções atingem o mesmo fim: enfraquecem-no nesse ponto em que ele não merece ser prestigiado. Os livros censurados pelo ministro seriam muito melhor combatidos se se combatesse antes as ideias nos quais eles foram impressas: e ideias só são destruídas por ideias melhores.
Petição de princípio
Ademais, o desejo de censurar ideias e opiniões erradas ignora uma tenebrosa petição de princípio, pois dar a alguém o poder de determinar quais são as ideias erradas e censurá-las como tais consiste de fato em uma petição de princípio, já que esse alguém encarregado de censurar as ideias erradas pode ele próprio estar errado, como lembra Constant:
“Os homens aos quais se outorga o direito de julgar opiniões são tão suscetíveis quanto outros ao engano e à corrupção, e o poder arbitrário com que são investidos pode ser utilizado contra as verdades mais necessárias da mesma forma que contra os erros mais fatais.” [8]
Logo, aqueles que defendem a censura, mais do que defender que as ideias erradas devem ser proscritas, defendem antes a ideia de que existem pessoas com a graça da infalibilidade do julgamento do certo e do errado, como ponderou Bentham:
“Onde se encontrará esse gênio raro, essa inteligência superior, esse mortal acessível a toda verdade e inacessível a todas as paixões, a quem confiar esse direito de comando supremo sobre todas as produções da mente humana? Teria um Locke, ou um Leibniz, ou um Newton, a presunção de se encarregar desse direito?” [9]
Portanto, de duas, uma: ou esses gênios existem, e eles são em número de onze e usam uma capa preta enquanto decidem o que deve ou não ser censurado; ou não existem semelhantes criaturas, e assim o único repouso seguro do certo e errado é o irrestrito e franco uso da liberdade de expressão do pensamento, para que, concomitantemente, ideias ruins e boas caminhem juntas, estas última combatendo aquelas em um ambiente de transparência e respeito às limitações humanas, que exigem esse contínuo e lento progresso do saber humano fundado nessa liberdade sagrada.
A pretexto de combater ideais ruins, estaremos entregando a um grupo de mortais o poder sobre o próprio progresso da humanidade, pois como alertou Bentham, a censura não conhece limites precisos: “Quanto ao mal que poderia resultar da censura, é impossível avaliar-se, já que é impossível dizer-se onde ela pára. Ela representa nada menos que o perigo da interrupção de todo o progresso intelectual humano em todos os ofícios.” [10]
[1] Dicionário filosófico…, p. 1.100.
[2] PASCAL, Blaise. Pensamentos, Trad. Christian Lesage, São Paulo: Kírion, 2023, p. 97 e 176.
[3] CONSTANT, Benjamin. Princípios de política aplicáveis a todos os governos, Trad. Joubert de Oliveira Brízida, Rio de Janeiro: Topbooks, 2007, p. 741.
[4] VOLTAIRE. Deus e os homens, Trad. Eduardo Brandão, São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 53 e 59.
[5] VOLTAIRE. O túmulo do fanatismo, Trad; Claudia Berliner, São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 27.
[6] Princípios de política aplicáveis a todos os governos…, p. 744.
[7] Dicionário filosófico…, p. 1.101.
[8] Princípios de política…, p. 194.
[9] The works of Jeremy Bentham, Volume 1, Edinburgh: Simpkin & Marshal Co., 1843, p. 538.
[10] Idem.
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