Prescrição intercorrente, honorários e incentivo ao litígio
24 de novembro de 2024, 8h00
A 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça julgou, no último dia 9 de outubro, o Recurso Especial nº 2.046.269/PR, afetado como paradigma sob o Tema Repetitivo nº 1.229, cuja controvérsia submetida para julgamento foi “definir se é cabível a condenação ao pagamento de honorários advocatícios na exceção de pré-executividade acolhida para extinguir a execução fiscal, ante o reconhecimento da prescrição intercorrente, prevista no artigo 40 da Lei nº 6.830/1980.”
A resolução da questão culminou na fixação da seguinte tese:
“À luz do princípio da causalidade, não cabe fixação de honorários advocatícios na exceção de pré-executividade acolhida para extinguir a execução fiscal em razão do reconhecimento da prescrição intercorrente, prevista no art. 40 da Lei n. 6.830/1980.”
O objetivo deste artigo é demonstrar que a conclusão no sentido do descabimento de imposição de honorários advocatícios sucumbenciais nos casos em que há o acolhimento de exceção de pré-executividade com resistência da Fazenda Pública, extrapolou a questão posta para apreciação sob a sistemática dos recursos repetitivos, bem como não se mostra a interpretação melhor concatenada com o propósito normativo de fixação dos honorários sucumbenciais e tampouco acompanha recentes entendimentos do próprio STJ.
Da extrapolação (ou da desconsideração) dos limites do caso concreto à luz do que restou afetado
A afetação de um recurso para o julgamento sob a sistemática dos repetitivos, regulamentada entre os artigos 1.036 a 1.040 do Código de Processo Civil/2015, não desnatura os limites objetivos da tutela recursal. A pretensão, singularmente considerada, com todas as características a ela inerentes, continua a ser a mesma, o que se dá sob a sistemática do julgamento de recursos repetitivos é a construção de uma razão que vinculará casos posteriores que propaguem controvérsias idênticas ou suficientemente assemelhadas daquela materializada no acórdão paradigma.
Como se admite (em verdade espera-se que essa seja a regra), com a afetação de mais de um processo é possível termos essa ampliação da matéria a ser enfrentada, em detrimento à posta no caso em concreto, mas isso a depender da decisão de afetação, até mesmo para que tenhamos a publicidade necessária do que será julgado nessa sistemática, a garantir a participação de terceiros interessados na resolução transubjetiva de tal questão.
Especificamente no Tema 1.229/STJ, a decisão de afetação, proferida em 01 de fevereiro de 2023, sinalizava que a controvérsia posta estaria limitada a conflitos em que não houvesse resistência da Fazenda quanto a incidência da prescrição intercorrente. [1]
Quando se extrapola os limites do(s) caso(s) concreto(s), à luz do que restou afetado de forma explícita em prévio pronunciamento, há todo um desrespeito ao que se espera dessa sistemática de precedentes, em especial a já mencionada participação da sociedade, na colaboração de um melhor desfecho à controvérsia (nesse sentido o art. 1.038 do CPC à luz do artigo 1.037, I, do mesmo Diploma Processual) [2].
Neste específico julgado constata-se que a tese objetiva estabelecida extrapolou a questão afetada, ao reconhecer que em casos nos quais há oposição (resistência) à exceção de pré-executividade posteriormente acolhida, descabe a fixação de honorários sucumbenciais em desfavor da Fazenda Pública. Veja-se o que afirma o Relator em seu voto:
“Assim, a constatação da prescrição no curso da execução fiscal, pelo juiz da causa, mesmo após a provocação por meio da apresentação de exceção de pré-executividade pelo executado, inviabiliza a atribuição ao credor dos ônus sucumbenciais, de acordo com os princípios da sucumbência e causalidade, sob pena de indevidamente beneficiar a parte que não cumpriu oportunamente com a sua obrigação. Cabe pontuar que essa conclusão deve ser admitida mesmo que a exequente se insurja contra a alegação do devedor de que a execução fiscal deve ser extinta com base no art. 40 da LEF. Ou seja, se esse fato superveniente – prescrição intercorrente – for a justificativa para o acolhimento da exceção de pré-executividade, não há falar em fixação de verba honorária.” (grifos nossos)
Nem a tese estabelecida, tampouco as razões determinantes do acórdão, poderiam debruçar-se sobre matéria outra que não a do (des)cabimento de condenação em honorários advocatícios sucumbenciais quando há concordância (expressa ou implícita) da União com o pedido, eis que foi essa controvérsia afetada.
Do incentivo à manutenção do litígio
Ainda que inexistente o problema narrado acima (desrespeito à técnica de julgamento na sistemática dos repetitivos), cremos que o Superior Tribunal de Justiça não empregou a interpretação mais adequada ao enunciar a impossibilidade de condenação da Fazenda Pública ao pagamento de honorários sucumbenciais em caso de acolhimento da exceção da pré-executividade que veiculasse pretensão anulatória do débito fiscal sob o fundamento de ocorrência de prescrição intercorrente, por ela resistida.
Isso porque, uma vez transcorrido o lapso temporal e os requisitos estabelecidos no artigo 40 da Lei de Execuções Fiscais, surge para o devedor a pretensão, ainda que incidentalmente no bojo da execução fiscal, de obter o reconhecimento da ocorrência da prescrição intercorrente. Não se pode negar que ao devedor é assegurado, pelo ordenamento jurídico, o direito subjetivo de fulminar pretensão executiva pela omissão reiterada em longo período de tempo pelo titular do crédito, sendo a exceção de pré-executividade o instrumento processual apto para essa arguição.
Quando a Fazenda Pública resiste a essa pretensão, instaura-se uma relação litigiosa acerca deste específico ponto que, ao ser resolvida pelo Estado-Juiz, resultará em um quadro vencedor-vencido. Essa pretensão, inquestionavelmente resistida, ainda que incidental, é independente do direito ao exercício da execução que restou fulminado, configurando a sucumbência que dá ensejo ao pagamento de honorários pelo vencido (Fazenda Pública) aos patronos do vencedor (contribuinte).
Ao excluir a previsão de condenação em honorários de sucumbência nestes casos, nega-se vigência ao artigo 85, § 1º, do Código de Processo Civil/2015, mas não só, promove-se um incentivo à manutenção dos litígios.
Não há como negar que os honorários de sucumbência exercem uma função indutora do comportamento voltado à não judicialização [3], cenário reforçado pelas regras postas no Código de Processo Civil atual e, ainda, encampada pelos Tribunais Superiores, impondo um ônus ou um bônus ao jurisdicionado que, embora prejudicado pela decisão, não promove recursos infundados ou com baixa perspectiva de modificação.
O próprio STJ, no julgamento do Tema Repetitivo nº 1.076 [4], promovido por sua Corte Especial, reconhece essa função atribuída atualmente aos honorários de sucumbência [5], como demonstra a seguinte passagem do voto do relator ministro Og Fernandes:
“É certo que os honorários sucumbenciais desempenham também um papel sancionador. A par de remunerar o advogado, funcionam “como elemento de punição em virtude de haver sido adotada determinada conduta geradora da necessidade de acionamento da atividade jurisdicional” (MELLO, Rogerio Licastro Torres de. Honorários advocatícios: sucumbenciais e por arbitramento. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2019. p. 65.). Os advogados devem lançar, em primeira mão, um olhar crítico sobre a viabilidade e probabilidade de êxito da demanda antes de iniciá-la. Em seguida, devem informar seus clientes com o máximo de transparência, para que juntos possam tomar a decisão mais racional considerando os custos de uma possível sucumbência. Promove-se, dessa forma, uma litigância mais responsável, em benefício dos princípios da razoável duração do processo e da eficiência da prestação jurisdicional.”
A decisão do Tema Repetitivo nº 1.229, além do problema processual descrito inicialmente, mostra-se incompatível com os postulados da eficiência da máquina judiciária e do desincentivo à judicialização, que engloba a discordância com pleitos formulados durante o curso do processo (como é exemplo o de reconhecimento da prescrição intercorrente).
A Fazenda Pública, sabedora de que não haverá ônus para si, valer-se-á de todos os meios e recursos possíveis, mesmo quando forem frágeis os seus argumentos, sempre que compelida a se manifestar sobre a perda do seu direito executivo por provocação do executado.
Conclusão
Nem sempre a decisão que aparenta ser a mais “justa” é, de fato, compatível com o ordenamento jurídico, especialmente porque há disposição determinando a condenação do vencido (artigo 85 já citado).
Ao decidir dessa forma, o STJ fomenta o conflito, ainda que endoprocessual, na contramão do pilar da desjudicialização e, o que é pior, de vários julgados de sua lavra, voltados à redução do acervo processual e, por conseguinte, recursal existente, inoperável e infrutífero, especialmente quando há clara pretensão resistida justificadora do ônus sucumbencial.
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[1] “O recurso especial discute o cabimento de condenação da Fazenda Pública ao pagamento de honorários advocatícios, em decorrência da declaração de prescrição intercorrente na execução fiscal, sem que a exequente tenha oferecido resistência.
No caso, extrai-se dos autos controvérsia jurídica multitudinária ainda não submetida ao rito dos repetitivos, com relevante impacto jurídico e econômico…” (STJ. REsp 2.046.269/PR. Ministro Presidente da Comissão Gestora de Precedentes Paulo de Tarso Sanseverino. DJe 08/02/2023).
[2] Art. 1.038 (CPC). O relator poderá:
I – solicitar ou admitir manifestação de pessoas, órgãos ou entidades com interesse na controvérsia, considerando a relevância da matéria e consoante dispuser o regimento interno;
II – fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e conhecimento na matéria, com a finalidade de instruir o procedimento;
Art. 1.037 (CPC). Selecionados os recursos, o relator, no tribunal superior, constatando a presença do pressuposto do caput do art. 1.036 , proferirá decisão de afetação, na qual:
I – identificará com precisão a questão a ser submetida a julgamento;
[3] “…o estímulo fruto dos honorários sucumbenciais alcança tanto o devedor quanto o credor. Seu objetivo imediato é diminuir a litigiosidade, isto é, impondo um ônus financeiro àquele que irá perder a demanda forço este (quando ciente das poucas chances que tem) a não resistir à pretensão do outro, evitando a judicialização do conflito.
Note-se que deste objetivo imediato (de redução da judicialização de conflitos) há outro reflexo, mediato, voltado ao adimplemento da obrigação (nos moldes dos estímulos listados no tópico anterior), se aquele que deixar de resistir à pretensão for o devedor. Se, porém, quem deixar de resistir à pretensão for o credor, então o efeito mediato será o reconhecimento da inexistência (ou do desaparecimento) daquela obrigação, por fator diverso do pagamento.” (CASTRO, Danilo Monteiro de. O encargo legal do Decreto-lei n. 1.025/1969 e sua (in)compatibilidade com o sistema jurídico vigente, em especial após as inovações do CPC/2015. In: CONRADO, Paulo Cesar; e ARAUJO, Juliana Furtado Costa [Coords.]. Inovações na cobrança do crédito tributário. 2ª Ed., São Paulo, RT, 2021, p. 392/393).
[4] Os recursos especiais que formaram o entendimento objeto desse tema foram: 1.906.618, 1.906.623, 1.877.883 e 1.850.512, julgados em 16/03/2022.
[5] Além do julgado, há exemplos claros no próprio CPC, como a redução da verba honorária no caso de imediato pagamento da execução por quantia certa (Art. 827, § 1º), a isenção das custas e a redução dos honorários no caso do imediato cumprimento do mandado monitório (Art. 701, § 1º) e, pela via contrária, a majoração da verba sucumbencial em caso de derrota na pretensão recursal (Art. 85, § 11).
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