PEC da Segurança Pública, intenções e possíveis resultados
24 de novembro de 2024, 8h05
O Ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública divulgou seu Projeto de Emenda Constitucional, destinado a alterar os artigos 21, 22, 23, 24 e 144 da Carta Magna, atribuindo à União a competência para estabelecer a política nacional de segurança pública e defesa social, competência privativa para legislar sobre normas gerais de segurança pública, defesa social e sistema penitenciário, criar a polícia ostensiva federal, alterar competências legislativas para tratar da matéria e temas correlatos.[i] Louvável a iniciativa, visto que a segurança pública tornou-se um dos maiores problemas da sociedade brasileira.
A Constituição de 1988, sob sonhos de um país democrático, socialmente justo e economicamente forte, dedicou à segurança pública apenas um artigo e parágrafos (art. 144). Para os direitos e garantias individuais foi destinado também um artigo, mas com 79 incisos, além dos parágrafos (art. 5º).
O tempo se encarregou de demonstrar que a realidade não era tão bela e, para ficar em um só exemplo, basta caminhar pelas ruas das cidades de grande ou médio porte para constatar o número de pessoas morando embaixo de pontes ou marquises, em um chocante estado de degradação. Vejamos as mudanças pretendidas.
Centralização do sistema único na União
Introduz-se no art. 21 da Constituição os incisos XXVII e XXVIII, o primeiro criando uma política nacional de segurança pública e o Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social e o segundo atribuindo à União a coordenação do sistema.
A mudança leva o que está previsto na Lei 13.675, de 2018,[ii] que criou a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS) e instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), para a Constituição. Põe-se em dúvida a necessidade, já que a lei é minuciosa, revela preocupação com princípios, diretrizes, metas de avaliação, acompanhamento público da atividade policial, transparência e outras medidas, como o Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, órgão em plena atividade, como se pode constatar no site do MJSP.[iii]
Não está funcionando bem? Se a resposta for positiva, não seria mais simples propor a reforma da lei? Será necessário torná-la norma constitucional, dificultando futuras alterações, em tema que a cada dia se renova?
A PEC pretende inovar na competência da polícia federal e da polícia ostensiva federal, introduzindo no art. 22 da CF, que trata da competência para legislar, mais dois incisos. O XXII, tratando da competência da polícia federal, da polícia ostensiva federal e da polícia penal federal e o inc. XXXI, com normas gerais de segurança pública, defesa social e sistema penitenciário. Vejamos.
Polícia Federal
A competência da polícia federal está prevista no art. 144, § 1º da CF. A nova redação dada pela PEC altera o inc. I para:
I – apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União, inclusive em matas, florestas, áreas de preservação, ou unidades de conservação, ou ainda de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, como as cometidas por organizações criminosas e milícias privadas, segundo se dispuser em lei.
A competência pretendida merece reparos. Atribuir competência à PF para investigar crimes em “matas, florestas, áreas de preservação, ou unidades de conservação” é medida aparentemente louvável, porque protege o meio ambiente. Mas esqueceu-se que para a PF poder apurar uma infração penal praticada em matas, elas deveriam estar previstas nos crimes da Lei 9.605/98. E não estão. Os tipos penais ambientais referem-se apenas a florestas (arts. 39, 30-A, 39, 40, 41, 42, 44, 48 e 51) ou plantas de ornamentação (art. 49).
Ainda, ao atribuir, genericamente, à PF, competência para apurar crime contra áreas de preservação ou unidades de conservação, passa à esfera federal um crime que pode ter sido praticado em um parque estadual ou municipal, inclusive em área urbana de um município. Além de desnecessária nestas hipóteses, concluída a investigação a competência será da Justiça Estadual, porque tais hipóteses não se enquadram na competência dos juízes federais (art. 109 da CF). Faltou um ambientalista na comissão.
No que toca à parte final do inc. I, a competência para a PF apurar infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, a inclusão merece aplausos por ser adequada e atual.
Polícia ostensiva federal
Certamente o ponto mais polêmico da PEC é a conversão da Polícia Rodoviária Federal em Polícia Ostensiva Federal. A PRF, realmente, já tem e precisa ter atribuições que vão além da fiscalização das rodovias. É sabido que sua atividade já colabora com os órgãos de segurança na prevenção e repressão de diversos crimes, em especial o tráfico de entorpecentes. Possui eficiente setor de inteligência.
A PEC introduz um art. 2º-A ao art. 144, § 2º da CF, cujo inc. I atribui à POF a proteção de bens, serviços e instalações federais. A iniciativa, certamente motivada pelo episódio de 8 de janeiro passado, pode gerar dúvidas ou dívidas quando se destinar a municípios. Por exemplo, em Santos há o prédio da Alfândega (antiga denominação). Não se tem notícias de problemas com a proteção de tal bem. Se aprovada a PEC, será criado um caro corpo de membros da POF para cuidar do imóvel? No inc. II prevê-se o auxílio da POF quando houver solicitação de um Estado ou do Distrito Federal, requerida por seus governadores. A burocracia necessária à ação da autoridade máxima estadual pode gerar a perda do objeto. A pensar.
Aspectos importantes da segurança a serem lembrados
A preocupação do MJSP, indiscutivelmente, é válida. Todavia, há diversos aspectos importantes para a vida dos cidadãos e a autonomia do Estado. Se o tema segurança está em estudo, cumpre aqui mencioná-los, inclusive para que sejam avaliados pelo Ministério e, quiçá, objeto de iniciativas de propostas legislativas.
Polícia Municipal. A PEC não fez referência a esta polícia, chamada por guarda na Constituição. No entanto, é ela quem se encontra próxima à vida dos munícipes, atendendo-os nos casos mais prementes. Cerceada pela referência constitucional à proteção de seus bens, serviços e instalações, extrapola frequentemente esta previsão, pois seus agentes não podem recusar ajuda a alguém que lhes pede socorro por fato que está ocorrendo (v.g., ladrões no interior da casa). Agem os denominados guardas com risco de serem processados por abuso de autoridade, sem qualquer possibilidade de negar apoio a quem os procura. Uma boa medida seria reconhecer a importância da Polícia Municipal e dar-lhe atribuições mais claras.
Inquérito Policial. O IPL foi criado em 1871 e, por óbvio, é algo excessivamente formal e burocrático para a atualidade. Estudar e propor a sua substituição, em crimes menos complexos, por medidas mais ágeis e informais, seria um grande passo a favor da segurança pública.
Acordos na esfera policial. Vivemos a época dos acordos, que entraram até no serviço público. O que era inimaginável há três ou quatro décadas, hoje é uma realidade. Entre servidores públicos e a autoridade disciplinar administrativa é possível formalizar um Termo de Reajustamento de Conduta nas transgressões disciplinares de menor potencial ofensivo.[iv] Se assim é, já é tempo de permitir-se à Polícia Judiciária atuação neste sentido, dispensando-se demorados inquéritos investigativos. Fluvio C. O. Garcia sustenta tal possibilidade, mencionando em obra jurídica, especificamente, as vantagens em acordos de não persecução penal (ANPP).[v]
Organizações criminosas. O termo mais adequado seria facções e não organizações, para distinguir as de maior periculosidade daquelas destinadas a pequenas fraudes, que atuam de forma menos ambiciosa (v.g., união de pessoas para fraudar a cobrança de multas de trânsito). As facções assumiram um papel próximo ao de um poder paralelo que, por vezes, resolve problemas com maior agilidade e por isso são procuradas pelas pessoas mais carentes. Dominam bairros, morros, determinam toque de recolher e, veladamente, fazem acordos com o poder público. Isto para não falar de apropriação de território, como se deu no Rio de Janeiro, ou de eleição de candidatos, a fim de apropriar-se do Estado. O silêncio da PEC a respeito merece ser readequado, de forma a estimular medidas de contenção. Por exemplo, reconhecer os atos de facções criminosas, em determinadas situações, como terrorismo, e criar dispositivos processuais penais para o cumprimento das penas de seus integrantes, como ocorre na Itália.
Conclusão
A PEC a ser enviada ao Congresso teve o grande mérito de trazer o tema segurança pública à pauta de discussões. Já passou da hora dele ser discutido e aperfeiçoado, inclusive na Academia. O caminho está aberto para aqueles que se preocupam com o Brasil.
[i] Disponível em: file:///C:/Users/Usuário/Documents/PEC%20DA%20SEGURANÇA/Anteprojeto-PEC-da-Seguranca-Publica.pdf. Acesso em 23 nov. 2024.
[ii] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13675.htm. Acesso em 23 nov. 2024.
[iii] Gov.br. MJSP reinstala Conselho Nacional de Segurança Pública e nomeia membros. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/mjsp-reinstala-conselho-nacional-de-seguranca-publica-e-nomeia-membros. Acesso em 23 nov. 2024.
[iv] Estado de Goiás. Orientações – termo de Ajustamento de Conduta. Disponível em: https://espacocolaborador.economia.go.gov.br/Arquivos/Guia%20de%20Orienta%C3%A7%C3%B5es%20CGE%20-%20Cartilha%20TAC.pdf. Acesso em 23 nov. 2024.
[v] GARCIA, Flúvio Cardinelle Oliveira. O papel da Polícia Judiciária no Acordo de Não Persecução Penal (ANPP). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024.
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