EMBARGOS CULTURAIS

O livro Bambino a Roma, de Chico Buarque

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24 de novembro de 2024, 8h03

Talvez formalmente classificado como uma reminiscência afetiva, Bambino a Roma é um passeio pela infância do autor. Inegável que o leitor do pai de Chico, Sérgio Buarque de Holanda, abocanha mais algumas informações sobre o legendário escritor de Raízes do Brasil. Há tão pouco material biográfico do pai de Chico. Contento-me com algumas intervenções de Antonio Candido, que o conheceu.

Arnaldo Godoy

Em algumas páginas do livro é como se víssemos por uma fresta momentos de um escritor sobre quem sabemos tão pouco. No livro, Chico conta que seu pai saía para jantar com sua mãe todas as sextas-feiras. Nesse dia, Chico buscava pizza para os irmãos, colocando-as, quentinhas, contra o peito, enquanto pedalava pela cidade, que parece tão bem conhecer. Imaginem o menino Chico carregando pizzas pelas ruas de Roma. Com humor, ele registra que está preparado para outra profissão, na hora da dificuldade…

O leitor é conduzido a uma adolescência muito pouco ingênua na garupa de uma bicicleta niquelada, com pneus brancos. A bicicleta está na capa do livro, editado pela Companhia das Letras. Um novo livro de Chico Buarque, penso, é sempre rotineiramente bom. E, como percebemos na maioria de seus livros, é muito tênue a fronteira entre a ficção e a realidade. Essa justaposição de memórias e elementos fictícios provoca no leitor uma constante reflexão: até que ponto estamos lendo a vida de Chico ou a vida de uma personagem inventada por ele?

Há uma galeria de jovens estrangeiros convivendo na Escola Internacional, frequentada pelo autor. A Itália ainda era fortemente marcada pelo fim da guerra; quem sabe, com exceção da pontualidade dos trens, as memórias do tempo de Mussolini eram amargas. O livro marca uma descrição juvenil na forma e adulta no conteúdo: é uma leitura fácil, mas cheia de alusões e inquietações. Cada descrição e experiência do jovem Chico carrega um peso emocional que transcende a simples narrativa de uma infância distante, ecoando a complexidade da construção de uma identidade em um ambiente estrangeiro.

Sem nenhum exagero, Chico Buarque me remeteu a Holden Caulfield, o herói anti-herói norte-americano de O apanhador no campo de centeio. O Chico bambino já era cético, irreverente, tomando decisões inesperadas, mas que parecem decisões que eu mesmo teria tomado. No meu caso, a identificação do leitor com o autor é quase permanente. Assim como Holden, Chico navega em um mundo de contradições, tentando entender sua posição e pertencimento. Essa busca por identidade e autenticidade faz de Bambino a Roma uma leitura universal e ao mesmo tempo brasileira, mesmo com seu pano de fundo italiano.

O conflito com a identidade brasileira, reiterado inúmeras vezes, indica uma ambiguidade que prenunciava o karma de A banda, aquela linda canção de quem estava à toa na vida, quando seu amor lhe chamou para ver a banda passar cantando coisas de amor. O exílio, seja físico ou emocional, percorre a obra de Chico como uma linha tênue, e Bambino a Roma não é diferente. O autor busca nas suas memórias italianas um contraponto à brasilidade que carrega, com todas as suas complexidades.

O autor é politicamente engajado, ainda que seu engajamento seja oscilante, como pode se intuir da opinião de quem o conhece, nos vários esboços biográficos que há. Se válido esse postulado, o leitor tem um livro de memórias e não de ficção, ao contrário do que se lê na capa, logo abaixo do título. No entanto, o leitor não pode trair o autor: é ele quem afirmou, logo abaixo do título, que é ficção. Essa oscilação entre ficção e realidade provoca um desconforto receptivo no leitor, que se questiona sobre a veracidade das lembranças e o papel da memória na construção da narrativa. Esse desconforto, no entanto, é o gancho aliciante da leitura.

O lado Holden Caulfield de Chico é explicitado em aventuras esparsas, em devaneios sexuais juvenis, a exemplo da obsessão com a professora de italiano de seu pai. E há um escabroso episódio do assédio de um professor logo no início do livro: memória ou ficção? A sutileza com que Chico constrói esses momentos faz com que o leitor transite entre o riso e a angústia, sem nunca ter certeza se está dentro de uma memória real, ou de uma memória metafórica carregada de poesia.

A viagem de ida para a Itália é um itinerário de tremendo estranhamento. Chico vomita no sapato, no navio, na cabine de segunda classe. Vomitou a viagem toda. A estada na Itália acentua uma ambiguidade permanente do autor. O menino se apaixonou pela pasta das cozinheiras sardas, ao mesmo tempo em que se esquecia do feijão preto, lembrança gastronômica que o remetia à cozinheira do Brasil. Essa duplicidade nas referências culturais alimenta o conflito de identidade que perpassa o livro: estar entre dois mundos, sem se sentir completamente pertencente a nenhum deles.

Chico observava que não havia negros na Itália. A constatação é problemática na parte final do livro. Chico já não é mais o bambino, retornava a Roma na condição de autoexilado, protagonizando o criminoso que retornava para o local do crime. Elementar. Queria rever a cidade da infância.

No fim dos anos 60, Roma já era outra cidade. E hoje, passados quase mais sessenta anos, Roma é ainda uma outra cidade. Essa forma de mudança permanente é que fazia de Roma a cidade predileta de Sigmund Freud. Roma, argumentava o médico de Viena, era como nossa consciência, formada de camadas e de subcamadas de construções, de restos, de pontos abandonados, de novas construções.

O bambino Chico estava em Roma quando soube do suicídio de Getúlio Vargas. Viu uma manchete estampada no jornal. Correu para casa. Por alguns dias, se sentiu no centro das atenções. Seu pai era avesso a Getúlio, porém preocupava-se com a tormenta que se abatera no país. Brasileiros, quando saímos do Brasil, ainda nos carregamos. Essa presença do país natal, mesmo quando distante fisicamente, permeia as reflexões de Chico ao longo da narrativa.

Bambino a Roma é uma saborosa narrativa em 29 capítulos que enfatiza a seletividade da memória, porque somos, talvez mais do que vivemos, aquilo que nos lembramos.

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