Opinião

Crianças e tecnologia: das implicações do consumo à criação de conteúdo

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24 de novembro de 2024, 11h25

Criança do tablet[1]: esse tem sido o termo usado para descrever crianças que cresceram rodeadas por dispositivos eletrônicos e expostas a um alto consumo de mídia digital, como assistir a vídeos no YouTube e em outros aplicativos, bem como interagir em redes sociais e plataformas de entretenimento.

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Essa utilização massiva de telas é o que chamamos de “tempo de tela passivo”, especialmente em plataformas como TikTok, Kwai e YouTube, onde o usuário apenas assiste ao conteúdo, sem estímulo cognitivo. Diferentemente, os videogames são considerados uma forma de “tempo de tela ativo”, pois exigem interação e raciocínio.

Muitos pais recorrem a esses dispositivos para distrair os filhos em momentos de inquietação e até mesmo birra. Porém, essa prática tem gerado diversas consequências desastrosas para as crianças.

É o que o Instituto Defesa Coletiva expõe por meio de duas ações civis públicas: uma contra a Meta [2] e outra contra o TikTok e o Kwai [3], que são algumas das maiores plataformas de vídeos curtos da atualidade. A petição inicial demonstra esse problema de saúde pública com base em diversos estudos acadêmicos.

Segundo a psicóloga Manuela Santo, pesquisadora da UFRGS, assistir repetidamente a vídeos nas redes gera um ciclo de liberação de dopamina no cérebro das crianças, criando uma dependência semelhante à de vícios e aumentando a necessidade de doses cada vez maiores para manter a mesma sensação de satisfação [4].

Dados pessoais e conteúdo impróprio

Além do risco da dependência digital, as ações abordam preocupações com a privacidade dos usuários, denunciando a venda indireta de dados pessoais.

Spacca

Outra questão crítica são os conteúdos impróprios que frequentemente aparecem nessas plataformas, expondo crianças a materiais que podem ser considerados danosos, como conteúdos sexualizantes ou de assédio.

Nesse sentido, as ações solicitam medidas rigorosas de proteção, como: a proibição de contas para menores de 14 anos até que mecanismos de controle sejam implementados; a vinculação obrigatória das contas de menores às dos pais, entre outros.

Em caso de descumprimento, pede-se uma multa diária de R$ 100 mil, além do pedido de indenização de R$ 1,5 bilhão em danos morais.

O Instituto também propõe a desativação permanente da função de “autoplay” para contas infantis, permitindo que a reprodução de vídeos seja controlada manualmente, o que inibiria o consumo desenfreado pelas crianças.

Influenciadores mirins

Nessa discussão, oportuno destacar que, além de considerarmos as crianças como usuárias dessas plataformas e consumidoras de conteúdo, existe um problema ainda não abordado: a questão dos influenciadores mirins.

É cada vez mais comum que os pais incentivem seus filhos a brincar e produzir vídeos, transformando-os em criadores de conteúdo. Essa prática é extremamente preocupante sobre impactos cognitivos sobre as crianças, como a dificuldade em lidar com o cotidiano, incluindo a frustração, e a necessidade de aprimorar suas habilidades de interação social [5].

Nesse sentido, o documentário “Estrela Mirim”, da atriz e cantora Demi Lovato, aborda as dificuldades da fama enfrentadas por ex-astros da Disney, que lidaram com crises influenciadas pela internet, pela exposição e por questões financeiras [6]. Nos depoimentos, artistas como Drew Barrymore e Kenan Thompson relatam suas experiências sobre as condições de trabalho em sets de filmagem. Ainda conta como Ryan Kaji, que iniciou sua carreira no YouTube aos 3 anos de idade, se tornou um dos criadores de conteúdo mais bem-sucedidos financeiramente da plataforma.

Vale ressaltar que, recentemente, a Califórnia se tornou o terceiro estado americano a implementar leis de proteção financeira para crianças influenciadoras digitais, seguindo Illinois e Minnesota [7]. Embora o contexto seja internacional, é plenamente possível refletir sobre um cenário semelhante no Brasil, como é o caso de Larissa Manoela, que recentemente revelou que todo o seu dinheiro era gerenciado pelos pais, deixando-a com acesso limitado a quase nada [8].

Regulamentação da exploração comercial da imagem

Atualmente, no Brasil, o Projeto de Lei 2259/2022 [9] é o único em discussão que visa regulamentar a exploração comercial da imagem de crianças menores de 16 anos em plataformas online. Uma das propostas é a obrigatoriedade de que a renda gerada por essas crianças seja depositada em uma conta bancária acessível apenas quando o menor atingir a maioridade. No momento, o projeto está em tramitação na Câmara dos Deputados, aguardando o parecer do relator na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família (CPASF).

Portanto, a era digital demanda uma vigilância cuidadosa por parte dos pais, das instituições e da sociedade em geral em relação aos efeitos da hiperexposição das crianças às telas. Conforme estabelecido no artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é uma responsabilidade compartilhada entre a família, a comunidade, a sociedade e o poder público assegurar, com prioridade absoluta, os direitos fundamentais de crianças e adolescentes.

 


[1] Mark Travers. “Psicólogo Ensina Como Lidar Com ‘Criança Do Tablet.’” Forbes Brasil, 2024. Disponível: forbes.com.br/forbes-tech/2024/01/psicologo-ensina-a-lidar-com-crianca-do-tablet/. Acesso em: 04 de novembro de 2024.

[2] Processo n° 5237762-32.2024.8.13.0024 – 1ª Vara Cível da Infância e da Juventude da Comarca de Belo Horizonte

[3] Processo n° 5268508-77.2024.8.13.0024 – 1ª Vara Cível da Infância e da Juventude da Comarca de Belo Horizonte

[4] Agência O Globo. “Como o TikTok Atua No Cérebro e Vicia Jovens Em Seus Vídeos Curtos.” Exame, 2022. Disponível em: exame.com/ciencia/como-o-tiktok-atua-no-cerebro-de-jovens-com-videos-curtos-e-personalizados/. Acesso em: 04 de novembro de 2024.

[5] Fuentes, Patrick. “Influencers Mirins: Exposição Infantil Na Internet Pode Gerar Impactos Psicológicos.” Jornal Da USP, 2021. Disponível em: jornal.usp.br/atualidades/influencers-mirins-exposicao-infantil-na-internet-pode-gerar-impactos-psicologicos/. Acesso em: 05 de novembro de 2024.

[6] Disney+. “Assistir a Demi Lovato Apresenta: Estrela Mirim: Disney+.” Disponível em: www.disneyplus.com/pt-br/movies/demi-lovato-apresenta-estrela-mirim/3soJc8cMK2Zp. Acesso em: 05 de novembro de 2024.

[7] Katie Kindelan. California becomes latest state to require parents to save earnings for child influencers. ABC News, 2024. Disponível em: abcnews.go.com/GMA/Family/parenting-influencers-speak-new-law-designed-protect-kids/story?id=111580202. Acesso em: 05 de novembro de2024.

[8] Carlos Henrique Dias. “Larissa Manoela Consegue Sair Da Empresa Que Mantinha Com Os Pais.” G1, 2023. Disponível em: g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/11/06/larissa-manoela-consegue-sair-da-empresa-que-mantinha-com-os-pais.ghtml. Acesso em: 05 de novembro de 2024.

[9] Camara dos Deputados. PL 2259/2022. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2333956. Acesso em: 05 de novembro de 2024.

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