A ficção do regime único do funcionalismo: o STF e a ADI 2.135
24 de novembro de 2024, 8h00
Versando sobre regime jurídico dos servidores da Administração Pública direta, autárquica e fundacional, após mais de 20 anos de decisão cautelar prolatada na ADI 2.135 que suspendeu a eficácia do caput do artigo 39 da Constituição de 1988 — em sua redação pós-Emenda Constitucional n. 19/98 – o Plenário do STF fixou entendimento em sentido diametralmente oposto à cautelar suspensiva, validando o preceito constitucional que levou à revogação do denominado “regime jurídico único” (j. em 06.11.2024).
O sentido da norma, agora restaurado no “espírito” da Reforma Administrativa da época, passa a permitir oficialmente que entes federados adotem uma multiplicidade de regimes jurídicos para regulamentar as relações que detêm com seus servidores públicos, não mais exigindo-se que a instituição do regime conhecido como “estatutário” fosse tido como o único válido e possível.
Inclusive nesta semana, divulgada pesquisa nacional do Datafolha, “oito em cada dez brasileiros defendem que os funcionários públicos no país possam ser demitidos em caso de má performance na função, e 71% são favoráveis à aprovação de uma reforma administrativa que mude a forma de avaliar o trabalho dos servidores de acordo com seu desempenho”. [1]
Parece-nos sintomático, portanto, que a decisão final da ADI 2.135 ocorra em um cenário em que são fortes os clamores por cortes de despesas e gastos/ajustes ficais e por nova reforma administrativa.
Sem prejuízo disso, parece-nos oportuno resgatar a trilha de declaração da constitucionalidade do “regime jurídico plúrimo”, buscando apresentar alguma prospecção sobre a temática.
Com a edição da EC nº 19/98 deu-se nova redação ao artigo 39 da Constituição, passando da redação original do artigo 39 , “a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas” para “a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios instituirão conselho de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores designados pelos respectivos Poderes”.
Crise do Estado
A reforma administrativa, como foi designada a EC 19, tinha como fundamento a “crise do Estado que esta[va] na raiz do período de prolongada estagnação econômica que o Brasil experimentou nos últimos 15 anos, de 1983 a 1998. Nas suas múltiplas facetas, esta crise se manifestou como crise fiscal, crise do modo de intervenção do Estado na economia e crise do próprio aparelho estatal”, conforme sua exposição de motivos. Isso no contexto de 1998, em que instalara no país uma verdadeira “Fuga para o Privado” como resolução de todos os problemas.
Com base na sobredita reforma constitucional de 1998 que visava uma suposta eficiência estatal foi editada a Lei nº 9.962, de 22 de fevereiro de 2000, que disciplinou o regime de emprego público do pessoal da Administração federal direta, autárquica e fundacional, permitindo até mesmo a transformação dos atuais cargos em empregos, como previsto no seu § 1º do seu artigo 1º.
A reforma caminhava a passos largos e as bases de redução de amplitude do regime estatutário estavam fundadas, possibilitando a convivência de dois regimes de trabalho aplicáveis aos servidores públicos: o estatutário e o celetista, pois antes só se poderia haver para cada ente federal, no âmbito da administração direta, autárquica e fundacional, um só único regime.
Relembremos que as agências reguladoras, autarquias especiais de regulação e fiscalização, foram o primeiro teste do novo modelo de subversão ao regime estatutário. Com base na Lei nº 9.986, de 18 de julho de 2000, que estabeleceu no artigo 1º: “As Agências Reguladoras terão suas relações de Trabalho regidas pela Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5452, de 01 de maio de 1943, e legislação trabalhista correlata, em regime de emprego público”.
Em dezembro de 2000, o primeiro teste de flexibilização do RJU passou pelo STF, mais precisamente na Ação Direta de Inconstitucionalidade, ADI nº 2.310-DF, em 2000, revendo o regime celetista a ser aplicado aos servidores destas entidades, pois, no entendimento da Alta Corte, tais servidores exercem função que constitui atividade típica do Estado, com o qual é incompatível o regime celetista:
Prescindir, no caso, da ocupação de cargos públicos, com os direitos e garantias a eles inerentes, é adotar flexibilidade incompatível com a natureza dos serviços a serem prestados, igualizando os servidores das agências a prestadores de serviços subalternos, dos quais não se exige, até mesmo, escolaridade maior, como são serventes, artífices, mecanógrafos, entre outros (…) Em suma, não se coaduna com os objetivos precípuos das agências reguladoras, verdadeiras autarquias, embora de caráter especial, a flexibilidade inerente aos empregos públicos, impondo-se a adoção da regra que é a revelada pelo regime de cargo público, tal como ocorre em relação a outras atividades fiscalizadoras – fiscais do trabalho, de renda, servidores do Banco Central, dos Tribunais de Contas, etc. (ADI 2.310, Rel. Min. Marco Aurélio, decisão monocrática proferida em 19/12/2000).
Nesse sentido, em 2004, a União foi obrigada a solucionar o problema do seu novo ente regulador diante da decisão do STF (ADI nº 2.310-DF, de 2000) com a edição da Lei nº 10.871, que dispôs “sobre a criação de carreiras e organização de cargos efetivos das autarquias especiais denominadas Agências Reguladoras”.
Já em 2007, o Plenário do STF suspendeu a vigência do texto alterado (o artigo 39 da CF/88) pela EC nº 19, por meio de medida cautelar, restaurando a redação original, por meio da ADI nº 2.135. Os autores da ação, os partidos PT, PDT, PCdoB e PSB, alegaram que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) não havia sido aprovada em dois turnos por 3/5 dos votos dos parlamentares na Câmara e no Senado, violando o devido processo legislativo para a modificação constitucional. Por conta do efeito da inconstitucionalidade por arrastamento, a Lei nº 9.962, de 2000, ficou a reboque.
Ocorre que durante esses 17 anos, ainda que a redação original do artigo 39 tenha sido restaurada, o regime jurídico único nem sempre foi um cânone aos olhos do STF.
Em 2020, na ADI nº 5.615, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República em 2016 para questionar leis estaduais de São Paulo que, em 2008 (Lei Complementar 1.074) e 2013 (Lei Complementar 1.202), criaram empregos públicos na Universidade de São Paulo com a adoção do regime celetista, sendo que o regime majoritário na administração bandeirante era o estatutário, nos termos da Lei nº 10.261, de 28 de outubro de 1968, que “dispõe sobre o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São Paulo”, o legislador paulista, mesmo com o retrovisor da medida cautelar na ADI nº 2.135 (de 2007), um ano antes, resolveu criar em terreno bandeirante o regime jurídico duplo.
O fundamento da ADI em tela era de que haveria uma violação ao artigo 39 da Constituição, uma vez que, na visão da PGR, a supra referida lei geral a instituição de regime jurídico único estatutário na contratação dos servidores públicos.
No voto, o relator da sobredita ADI, ministro Alexandre de Moraes, entendeu até mesmo pela possibilidade da adoção do regime celetista para as autarquias:
Nos seus incisos (do art. 39 da CF/88, particularmente nos incisos I, II e III, o texto constitucional traz algumas regras a respeito da ocupação de cargos eletivos por servidores, estabelecendo que eles devem afastar-se de seus cargos, empregos ou funções públicas (incisos I e II) ou, havendo compatibilidade de horários, perceberão as vantagens de seu cargo, emprego ou função, sem prejuízo da remuneração do cargo eletivo (inciso III). Assim, quando o legislador constituinte estabeleceu que servidores de autarquias devem se afastar, ou verificar a compatibilidade de horário, de seus cargos, empregos ou funções, por ocasião de exercício de mandato eletivo, percebo que a Constituição possibilitou a existência do regime jurídico celetista dentro de uma estrutura autárquica.
Para o eminente ministro “a ausência da lei instituidora de um único regime de servidores na administração direta, autárquica e fundacional, apesar de se mostrar como situação constitucionalmente desejável, não pode censurar as normas que estipularem um ou outro regime enquanto perdurar essa situação”. Tal solução de admitir a duplicidade de regimes no estado de São Paulo teve o crivo do Plenário do Supremo.
Portanto, novos ventos sopravam sobre o entendimento do regime jurídico único.
Nesta toada, em 2020, o Plenário começou a julgar o mérito da ADI nº 2.135, tendo a relatora, a ministra Carmen Lúcia, votado pela inconstitucionalidade da alteração promovida pela EC 19, de dezembro de 1998.
Sob o vetor de Zéfiro, em 2021, o ministro Gilmar Mendes abriu divergência, concluindo que não houve violação do processo legislativo. Segundo o Ministro Gilmar, o texto foi aprovado em segundo turno na Câmara, mas apenas em ordem diferente da redação em primeiro turno, o que configurou apenas um deslocamento do dispositivo. Para ele, “modificar o lugar de um texto de dispositivo contido em uma proposição legislativa não é suficiente para desfigurá-la”, firmando entendimento. Acompanharam o entendimento do Ministro Gilmar, os ministros Nunes Marques, Flávio Dino, Cristiano Zanin, André Mendonça, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli, tornando o voto vencedor.
Futuras contratações
De todo modo, a decisão só valerá para futuras contratações, sem a possibilidade de mudança de regime dos atuais servidores. Contudo, acarreta o ressurgimento, com todos os efeitos, da Lei nº 9.962, de 2000, que pode, diante da ventania da flexibilização e “pretensa eficiência e modernização’, converter ocupantes de cargos públicos em empregados ao sabor do regime governante do momento.
Para quem achar exagerada esta conclusão, deve-se recordar do artigo 243 da Lei nº 8112, de 1990, que, da noite para o dia, transformou empregos em cargos públicos:
Art. 243. Ficam submetidos ao regime jurídico instituído por esta Lei, na qualidade de servidores públicos, os servidores dos Poderes da União, dos ex-Territórios, das autarquias, inclusive as em regime especial, e das fundações públicas, regidos pela Lei nº 1.711, de 28 de outubro de 1952 – Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União, ou pela Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, exceto os contratados por prazo determinado, cujos contratos não poderão ser prorrogados após o vencimento do prazo de prorrogação.
1º Os empregos ocupados pelos servidores incluídos no regime instituído por esta Lei ficam transformados em cargos, na data de sua publicação.
Este foi o primeiro desafio ao artigo 37 logo na largada da Nova República em que recentemente (junho de 2023) o relator, ministro Gilmar Mendes, não conheceu da ADI nº 2.968, proposta pela PGR em face sobredita previsão legislativa, por ofensa à regra prevista no artigo 37, II, da Constituição, que exige concurso para investidura em cargos públicos.
Finalmente, parece-nos que a decisão final da ADI 2.135 pelo STF é realmente mais consentânea com a Constituição de 1988 (modificada pela EC n. 19/98), uma vez que sempre foram plúrimos os diferentes vínculos possíveis que envolviam servidores públicos (estatutário), empregados públicos (celetista) e pessoal transitório (regime temporário), para além de inúmeras situações em que a Administração pública igualmente acabava contratando serviços para si junto à iniciativa privada (terceirização administrativa), os quais obviamente sempre envolveram a intermediação de mão de obra particular.
Para além disso, a flexibilização do regime de contratação da Administração Pública poderá inclusive nos fazer testemunhar em breve a livre conversão de cargos em empregos e vice-versa, sem as amarras de uma cientificidade jurídica que justifica as fórmulas normativas e jurisprudenciais a serem adotadas, para abrir espaço ao pragmatismo jurídico dos novos tempos.
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