O Brasil como narcoestado e o lugar do poder
23 de novembro de 2024, 7h02
Um debate importante para qualquer desdobramento em Teoria Crítica — caso do Grupo de Pesquisa “Teoria Crítica do Constitucionalismo” (FDV/CNPq) — envolve o estabelecimento de um diagnóstico do tempo presente. Apenas a partir daí é possível ensaiar saídas — à melhor luz da nossa forma de organização social e política — para bem viver.
Pois bem. Não faz muito fomos todos surpreendidos pela execução de um homem no movimentado aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. A vítima — que manteve ligações com o PCC — era delatora de uma série de práticas e contextos envolvendo a organização criminosa, justamente conhecida não apenas pelo elevado grau de violência de suas ações, mas sobretudo pela influência — ao longo já de algumas décadas — em nossa cotidianidade, inclusive na política.
Um narcoestado?
Há quem defenda esse posicionamento, e o episódio recente seria bom exemplo para corroborar essa perspectiva. Afinal, o terminal do aeroporto mais movimentado do Brasil é, também, um dos lugares mais protegidos e vigiados do país. Se até então a violência parecia uma espécie de prerrogativa das periferias, se as execuções do crime organizado — sabidas de há muito por todos nós — estavam restritas aos morros e às vielas estreitas das grandes metrópoles, agora ela avança a espaços que, entre muitos limites, podem ser entendidos como privilegiados.
Não pretendemos — com esse lamentável exemplo — explorar as miudezas desse assassinato em específico, mas apontar para alguns desdobramentos envolvendo a crise da democracia brasileira, entabulando, assim, o nosso “diagnóstico do tempo presente”. Para isso, partimos de uma premissa norteadora: “o poder não pode ser erradicado”.
Essa perspectiva, talvez enigmática para alguns, sintetiza o fundamento que sustenta – entre seus muitos desdobramentos — o pensamento do filósofo político francês, já falecido, Claude Lefort. Para ele, a democracia — surgida como “invenção” — aparece após o Antigo Regime modificando a forma de exercício do poder. Verticalizado até então, ou seja, canalizado na ideia de unidade, o poder passa – com a invenção democrática — a ser exercido horizontalmente, ou seja, passa a ser partilhado. O que isso significa? Basicamente, que o poder, mesmo nas democracias, não se erradica. Ele muda de mãos. Mas permanece.
Daí surgem outras premissas associadas: se o poder nas democracias permanece, então podemos pensar numa espécie de “poder sem rosto”, ou no “lugar do poder” como um “lugar vazio”, porque esse viés pressupõe-se uma espécie de transitoriedade em quem o exerce. Mas, ainda assim, o poder está ali. Presente. Não se dissolve. Nem se erradica. É impossível.
Quem bebe dessa mesma água é a cientista política belga Chantal Mouffe. Para ela, a eliminação do poder também não é possível, eis que ele é própria dimensão ontológica do político.
Assim, com esse start, Mouffe entabula uma série de críticas aos modelos deliberativos de democracia, em especial, a Habermas e Rawls, justamente porque o fundamento desses paradigmas é baseado no consenso, suprimindo o dissenso e, portanto, sufocando o conflito inerente — porque o poder horizontalizado também não pode ser erradicado — nas democracias.
Há uma série de críticas à proposta de Mouffe, muitas delas dando conta de que o agonismo sequer seria um modelo, mas, sim, uma espécie de ação ou mesmo uma postura. Há aqueles ainda que, com dúvidas, interrogam se as polarizações políticas de traço afetivo no Brasil já não seriam razões suficientes para abandonar o pensamento da cientista política belga como prática efetivamente possível.
A discussão, claro, é válida, batendo à porta de nossas urgências mais cotidianas, mas o ponto que converge para o início do nosso argumento — o Brasil como narcoestado — é: se de fato o poder não pode ser erradicado, é possível imaginá-lo, no vácuo da representatividade — um dos gargalos da crise da democracia — nas mãos do crime organizado?
Talvez essa perspectiva — que pode ser assentada como um efetivo diagnóstico do tempo presente — possa ser ainda melhor percebida nos “serviços” das milícias nos grandes conglomerados urbanos, como o transporte alternativo (que serve aos bairros da periferia), a distribuição de gás, a instalação de ligações clandestinas de TV a cabo ou, ainda, a proibição de furtos e roubos nas áreas controladas pelo PCC (como se essas práticas criminosas não fossem previstas pelo Código Penal Brasileiro).
Para encerrar
A execução que dá suporte a esse sucinto argumento corrobora para a tese de que espaços deste inerradicável poder — até então nas mãos do Estado — transitam para grupos criminosos? Enfim, a partir destas provocações sobre o lugar do poder com Mouffe e Lefort, é possível pensar o Brasil já como um narcoestado?
As respostas ficam com os leitores desta ConJur…
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