AMBIENTE JURÍDICO

O aquecimento global e o retrocesso no desenvolvimento humano

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23 de novembro de 2024, 12h30

O mundo vive em tempos de desigualdade e inconsistências que vão além das paredes e salas climatizadas da COP 29, em Baku, no Azerbaijão. À medida que o planeta aquece, parece irônico que as deliberações para desacelerar as mudanças climáticas estejam ocorrendo em um país que é um dos maiores produtores de petróleo do mundo. E as dificuldades não são poucas, os interesses econômicos da indústria carbonizada se mostram o maior desafio para a diplomacia climática, assim como o pensamento utilitarista da maioria das nações e players. O aquecimento global e a poluição gerada pelos gases de efeito estufa, além de afetarem a fauna e a flora, são a causa de evidentes retrocessos para o desenvolvimento humano. Não pairam dúvidas de que bilhões de pessoas já sofrem as consequências do avanço da Era do Antropoceno.

Neste ano de 2024, apenas tomando como exemplo as enchentes no Estado do Rio Grande do Sul, não foram poucos os desastres e catástrofes climáticas que afetaram diretamente os quatro pilares conceituais do desenvolvimento sustentável: a- o ambiental; b- o humano; c- o de boa governança; d-  o econômico. Esses desastres, no aspecto humano, afetaram as populações mais vulneráveis e pobres do globo. No início do ano, os sinais já não eram bons, pois o mês de janeiro foi o mais quente da história das medições. Em fevereiro, uma seca sem precedentes  atingiu a África do Sul, acabando com as plantações de milho que alimentam o povo e a economia do país. Os danos ao gado de subsistência ficaram evidentes com a morte de milhares de cabeças. Quase 30 milhões de pessoas pobres foram atingidas pela fome, que foi exacerbada pelo ciclo climático natural do El Niño, que aumentou ainda mais as temperaturas.[1]

Os recordes de calor chegaram não apenas ao solo, mas também aos oceanos em março, seguindo a tendência dos últimos dois anos. Neste mês, a temperatura média global da superfície do mar atingiu uma alta de 21,07 graus Celsius, causando a morte de peixes e algas.[2] Os efeitos desse fenômeno não foram desprezíveis, como demonstrado pelo notável branqueamento ocorrido na Grande Barreira de Corais da Austrália[3], onde estão alojados 400 tipos de corais que são o único alimento para milhares de espécies de peixes. Este, aliás, é bom registrar,  foi o quarto maior evento de branqueamento já registrado na história.

O mundo com um todo experimentou o abril mais quente já registrado, o 11º em uma série de meses que quebrou recordes de temperatura. [4]Uma onda de calor se espalhou por partes do sul e sudeste da Ásia, com temperaturas nunca antes sentidas. Milhões de crianças ficaram fora da escola em virtude do calor em Bangladesh, Índia e Filipinas.[5] Ondas de calor tomaram conta de regiões da Índia, representando algumas das maiores ameaças a saúde e a vida dos trabalhadores que labutam ao ar livre. Foi criado por um sindicato, que representa trabalhadores informais,  por exemplo, um programa de seguro climático para vendedores de frutas e catadores de lixo que chegou a pagar pequenas quantias em dinheiro às mulheres que perderam dias de trabalho por causa das altas temperaturas.[6] Neste mesmo mês, todos aqui no Brasil  observaram os piores incêndios florestais em duas décadas no Pantanal. O fogo incinerou mais de um milhão de hectares. Tudo causado pelos desmatamentos e secas, exacerbados pelas mudanças climáticas.[7] Espécies raras, e em extinção, foram atingidas diretamente no Pantanal e isto é gravíssimo, pois esta é a maior área úmida tropical do mundo.

No mês de julho o furacão Beryl atingiu nações caribenhas, incluindo Granada, Jamaica, São Vicente e Granadinas. A Europa, por sua vez, teve o agosto mais quente já registrado, em meio a um verão escaldante. Estas altas temperaturas aumentaram a seca e os riscos de incêndio. Aliás, um  incêndio florestal desceu a colina em direção a histórica Atenas. Uma reserva natural no norte de Roma ardeu em chamas e as azeitonas murcharam em seus galhos no sul da Itália.[8]  É bom que se diga que a Europa, outrora desmatada nos tempos medievais, está a aquecer mais do que qualquer outro continente.[9]

No Chade e na Nigéria, uma região onde primeiramente conflitos políticos já haviam expulsado as pessoas das suas casas, as inundações agora deslocaram centenas de milhares de pessoas e destruíram as plantações gerando escassez de alimentos e ampliando as tensões políticas. O furacão Helene causou grandes estragos no Sul dos Estados Unidos. Quase 230 pessoas morreram, o que o transformou no furacão mais mortal a atingir o território continental dos Estados Unidos, desde o furacão Katrina, em 2005.[10]

Em Valência, na Espanha, houve um  dilúvio extraordinário. Um ano de chuva caiu no período de oito horas. A cidade registrou 202 mortes. A indignação popular se espalhou contra os funcionários do governo provincial por não enviarem alertas de evacuação em tempo hábil demonstrando a inoperância dos planos anticatástrofe climática do governo.[11] A cidade de Nova York, por sua vez, emitiu um raro alerta de seca enquanto o nordeste dos Estados Unidos enfrentou uma temporada de outono excepcionalmente sem chuvas. Incêndios florestais eclodiram em toda a região, enquanto as folhas de outono se transformaram em gravetos, inclusive no célebre Central Park.

Em suma, todos estes registros, somados ao Emissions Gap 2024, deixam claro que a ciência precisa ser respeitada e o aquecimento global combatido para que o próprio princípio da dignidade da pessoa humana não seja violado. No âmbito do direito climático nunca estiveram tão em voga os princípios da precaução, da prevenção, do desenvolvimento ecologicamente sustentável e do poluidor pagador que precisam ser levados a sério pelo Estado Socioambiental de Direito, pois este deve ser o garantidor de um meio ambiente e de uma vida saudável para as presentes e futuras gerações.

[1] https://fews.net/southern-africa/alert/august-2024#:~:text=Since%20November%202023%2C%20FEWS%20NET,suppliers%2C%20South%20Africa%20and%20Zambia.

[2] https://climate.copernicus.eu/march-2024-10th-consecutive-record-warm-month-globally

[3] https://icriforum.org/gbr-bleaching-2024/

[4] https://climate.copernicus.eu/copernicus-global-temperature-record-streak-continues-april-2024-was-hottest-record#:~:text=THE%20ORIGINAL%20IMAGE-,April%202024%20%E2%80%93%20Surface%20air%20temperature%20and%20sea%20surface%20temperature%20highlights,high%20set%20in%20April%202016.

[5]https://www.bbc.com/news/articles/c1wxjj3g965o?at_link_type=web_link&at_link_origin=bbcweather&at_format=video&at_link_id=B1C2DBD4-02EC-11EF-A960-BB8667CE2619

[6] https://www.nytimes.com/2024/06/25/climate/heat-insurance-cooling-app.html

[7] https://www.climate.gov/news-features/understanding-climate/global-climate-summary-august-2024#:~:text=The%20August%20global%20surface%20temperature,of%20record%2Dhigh%20global%20temperatures.

[8] https://www.oliveoiltimes.com/production/italys-severe-drought-damages-olive-trees-ahead-of-harvest/133390

[9] https://wmo.int/news/media-centre/europe-experiences-widespread-flooding-and-severe-heatwaves-2023#:~:text=European%20climate%20in%20a%20warming,%2C%20JRA%2D55%2C%20ERA5.&text=For%20the%20year%20as%20a%20whole%2C%20the%20average%20sea%2Dsurface,/UKMCAS%20and%20C3S/ECMWF.

[10] https://apnews.com/article/hurricane-helene-death-toll-asheville-north-carolina-34d1226bb31f79dfb2ff6827e40587fc

[11] https://www.nytimes.com/2024/11/01/climate/spain-valencia-floods.html

Autores

  • é juiz federal, professor do PPG e Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Escola Superior da Magistratura Federal. Pós-doutor, doutor e mestre em Direito, visiting scholar pela Columbia Law School e pela Universität Heidelberg, integrante da IUCN World Comission on Environmental Law (WCEL), vice-presidente do Instituto O Direito Por um Planeta Verde e ex-presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil).

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