Jurisprudência de ocasião e insegurança: da (i)legalidade da prisão de Robinho
23 de novembro de 2024, 6h05
Leio que o Supremo Tribunal Federal retomou o julgamento do Habeas Corpus impetrado em favor do ex-jogador Robinho, atualmente cumprindo pena privativa de liberdade em razão de uma sentença criminal por estrupo proferida pela Justiça italiana. O paciente foi condenado, no país estrangeiro, a cumprir pena de nove anos de reclusão. O Superior Tribunal de Justiça homologou a sentença, determinando que a execução da pena fosse iniciada imediatamente.
No acórdão proferido pelo tribunal superior, nos autos do HDE 7.986, ficou decidido que o ex-atleta, brasileiro nato, deve ser obrigado a cumprir pena no Brasil em razão da sentença estrangeira. Pela decisão, os ministros ainda fixaram o regime inicial fechado. O crime teria sido praticado no ano de 2013, mas, quando a sentença foi proferida, ele já havia retornado ao Brasil.
Foi decidido que a decisão não viola “o direito fundamental contido no artigo 5º, LI, da CF, pois não há entrega de brasileiro nato condenado criminalmente para cumprimento de pena em outro país”. Foi decidido ainda que a Lei nº 13.445/2017, em seu artigo 100, autoriza a transferência da execução da pena imposta no exterior tanto a brasileiros quanto a estrangeiros, a fim de evitar a “impunidade”.
Argumentou-se também que a lei mencionada, embora aprovada em 2017, aplica-se aos fatos anteriores à sua vigência, “por se tratar de norma de cooperação internacional em matéria penal”. Além disso, segundo o ministro relator, “o sistema de contenciosidade limitada adotado pelo Brasil em matéria de homologação de sentença penal estrangeira impede a rediscussão do mérito da ação penal”.
Finalmente, entendeu o tribunal que permitir a transferência de cumprimento da pena “representa uma maior efetividade dos princípios da razoável duração do processo, evitando a incidência do bis in idem. A sentença italiana, desta forma, foi homologada, com o “cumprimento imediato da pena”, tendo o regime fechado sido aplicado pelo próprio STJ.
Ressalvado e destacado todo o respeito de que a corte de justiça é digna, nenhum dos argumentos se sustenta.
De proêmio, diversamente do que afirmado no acórdão, a autorização para que o brasileiro nato cumpra pena imposta no exterior, à margem da legislação brasileira, de fato não é extradição, mas tem efeito similar. Isso porque, no final das contas, o brasileiro nato pode ser submetido à justiça de outro país. E o que é pior: sem que se possa rediscutir o mérito da condenação.
Esse posicionamento, a par de outros sérios problemas, representa uma grave violação à soberania nacional. Ora, como pode um tribunal estrangeiro condenar um brasileiro nato sem que o Poder Judiciário nacional possa sequer questionar, por exemplo, o regime de produção e valoração das provas?
Trata-se, me parece, de indevida intromissão de um Estado estrangeiro em assuntos internos do Brasil. Se amanhã uma liderança política qualquer for “condenada” criminalmente no exterior, o Judiciário nacional deverá tão somente determinar o cumprimento da pena, ainda que isso envolva severos reflexos políticos internos?
Brasil não pode se prestar a um papel tão subalterno
Ademais, tenho para mim que a aplicação da Lei nº 13.445/2017 ao caso é absolutamente fora de propósito, ainda que se considere possível sua retroatividade (com o que não concordamos, conforme exposto abaixo). Para o acórdão, tanto brasileiros natos quanto naturalizados podem ter a execução de sua pena “transferida”, de acordo com o disposto no artigo 100 da lei mencionada.
Ocorre que não é isso que se extrai da leitura da lei, já em seu primeiro artigo, o qual afirma dispor “sobre os direitos e os deveres do migrante e do visitante”. Pela literalidade da lei — ou seja, sequer é necessário um esforço interpretativo — ela não se aplica a brasileiros natos, só a migrantes e visitantes, os quais podem ser, no máximo, brasileiros naturalizados.
Mas não é só
O próprio artigo 100, utilizado pelos ministros para homologar a sentença estrangeira, dispõe que a autoridade competente poderá solicitar ou autorizar a transferência da execução da pena “nas hipóteses em que couber solicitação de extradição executória”. O artigo 82, por sua vez, lista as hipóteses em que “não se concederá a extradição”. E a primeira hipótese de proibição, conforme inciso I, é: “o indivíduo cuja extradição é solicitada ao Brasil for brasileiro nato”.
Em suma, o artigo 100 e todo o restante da chamada “Lei de Imigração” somente se aplicam a migrantes ou visitantes, já que, por expressa previsão legal, brasileiros natos estão excluídos, tanto do pedido de extradição quanto do de transferência da execução da pena.
Não bastasse, o inciso V do parágrafo único do mesmo artigo 100 estabelece como requisito para a “transferência” pretendida a existência de “tratado ou promessa de reciprocidade”, algo inexistente entre Brasil e Itália. Quer dizer, a Justiça italiana não está obrigada a cumprir decisões judiciais proferidas no Brasil.
Ainda que se imaginasse a possibilidade de aplicação da Lei de Imigração a hipóteses como a discutida, o caso do jogador Robinho estaria excluído, uma vez que a lei foi proferida posteriormente ao fato imputado. Por se tratar de lei que aumenta o jus puniendi estatal, fácil concluir que não se aplica a fatos anteriores, pois representa situação mais prejudicial ao réu. É o tipo de lei que não pode retroagir (artigo 5º, XL, CF).
Além do mais, a impossibilidade da transferência da execução da pena, sob nenhuma ótica, equivale a “impunidade”, como sustentado pelo ministro relator. A legislação brasileira não coaduna com a impunidade nesse tipo de caso, motivo pelo qual previu, no Código Penal, como se devem tratar crimes cometidos por brasileiros natos no exterior.
O artigo 7º do código prevê a aplicação da lei brasileira a crimes praticados no estrangeiro, por brasileiro (inciso II, “b”), desde que presentes as condições do parágrafo segundo [1]. Note-se que o próprio parágrafo segundo veda a possibilidade de bis in idem, outro argumento destacado pelo ministro, visto que impede a aplicação da lei brasileira se o agente tiver cumprido pena no exterior. Isso significa que, somente se ele já tiver cumprido a pena no estrangeiro é que se poderia falar em bis in idem, jamais na hipótese discutida.
Caberia às autoridades brasileiras — Polícia Federal, Ministério Público e Poder Judiciário — adotarem as medidas cabíveis para iniciar as investigações, propor a ação penal (se for o caso), processar o feito e proferir uma sentença, seja condenatória, seja absolutória. No primeiro caso, confirmada a condenação, deveria o réu ser submetido ao cumprimento da pena. É o que manda a lei nacional. Assim, não se poderia falar em bis in idem, porquanto o duplo processo (quanto necessário) é muito diferente da “dupla punição”, esta sim proibida.
Afora isso, o princípio em comento (proibição do bis in idem) é uma garantia à pessoa condenada criminalmente contra possíveis ações arbitrárias do Estado. No pedido formulado contra o jogador, um princípio de contenção do poder punitivo foi utilizado para prejudicá-lo, algo que não se não pode admitir.
Outros argumentos do ministro também merecem comentários, ainda que breves
No voto há exemplos de “tratados multilaterais entre Brasil e Itália que cuidam expressamente da transferência de execução penal”, como o Tratado de Viena (sobre crime de tráfico de entorpecentes), a Convenção de Palermo (sobre organizações criminais transnacionais) e o Tratado de Mérida (sobre crimes de corrupção). Segundo o relator, ainda que esses acordos não tratem do crime de estupro, podem ser aplicados por analogia, conforme autoriza o artigo 3º do Código de Processo Penal.
É dizer, o ministro do STJ, de maneira expressa, reconheceu a viabilidade de ser aplicada a analogia in malam partem em direito penal (embora tenha citado o CPP, é nítido que se trata de norma penal), algo totalmente rechaçado pela unanimidade da doutrina. Data maxima venia, o precedente aberto com esse argumento é dos mais perigosos; uma agressão frontal ao princípio da legalidade estrita que deve reger o sistema penal.
Outra questão surpreendente foi a determinação de “cumprimento imediato da pena”, antes do trânsito em julgado da decisão, e a fixação do regime inicial, o que nunca havia sido feito pelo STJ. Por que, para esse caso, não se deve respeitar o princípio da “presunção da inocência”? E por que determinar o regime de cumprimento da pena, algo de competência do juízo da execução criminal? São perguntas de difícil resposta.
Assim, ressalvada mais uma vez a devida vênia, era de se esperar que o Supremo Tribunal Federal cumprisse seu papel, e fizesse valer a legislação e a soberania nacionais. A gravidade do crime e suas supostas consequências não podem ser justificativas para o afastamento do ordenamento jurídico. Um tribunal nunca deixa de ser respeitado porque cumpre a lei vigente em seu país, ainda que suas decisões sejam contramajoritárias. O que gera “descrédito” ao Judiciário é atropelar a legislação para finalidades outras.
A midiatização de decisões judiciais é outra mazela com a qual a comunidade jurídica — e também a não jurídica — precisa urgentemente se debruçar. A pressão que atualmente sofrem juízes e outros integrantes do sistema de justiça alcançou patamares nunca antes vistos, em boa parte decorrente da polarização política que vem crescendo a níveis avassaladores no Brasil e no mundo.
Os juízes frequentemente se veem envoltos em discussões pouco (ou nada) jurídicas, como acerca da necessidade de se “combater o crime”, “combater o machismo”, “combater o racismo”, “combater o golpismo”, combater mais outras centenas de mazelas. Mas antes — muito antes — de querer combater o que quer que seja, os juízes devem fazer respeitar e cumprir as leis do país, com destaque principal à Constituição. Sem isso, não há como combater nada.
A defesa da democracia, que há muito se pretende estimular, passa necessariamente pela consciência de que o papel das instituições é garantir a correta, adequada e justa aplicação dos direitos fundamentais do cidadão. A partir do momento em que o Poder Judiciário — ou qualquer outro Poder — se coloca no direito de ignorar o ordenamento para uma finalidade qualquer – por mais nobre que seja — o que se terá é um ceticismo cada vez maior da sociedade, com consequências imprevisíveis.
Para exigir respeito, urge que as “instituições” primeiramente se deem o respeito. Cumprir a lei, ainda que segmentos ou grupos sociais sintam-se contrariados e façam barulho, é a missão constitucional do Poder Judiciário. Sem isso, não há que se falar em justiça.
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[1] § 2º – Nos casos do inciso II, a aplicação da lei brasileira depende do concurso das seguintes condições: (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984)
a) entrar o agente no território nacional; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984)
b) ser o fato punível também no país em que foi praticado; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984)
c) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984)
d) não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984)
e) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 1984)
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