Escuta ilegal

Grampo contra Youssef pode invalidar provas em outros casos da “lava jato”

 

23 de novembro de 2024, 9h50

A confirmação dos grampos ilegais na cela do doleiro Alberto Youssef e o fim do sigilo das escutas podem acabar repercutindo em outros processos da “lava jato”, segundo especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

doleiro Alberto Youssef

Toffoli levantou sigilo de grampo na cela de Youssef

Youssef foi preso na primeira fase da “lava jato”. A delação do doleiro, fechada em setembro de 2014, implicou políticos, empresários e agentes públicos e foi a responsável por impulsionar os demais processos que seriam abertos pelos procuradores do Ministério Público Federal de Curitiba.

À época, o doleiro foi apontado como o principal operador de um esquema de desvio na Petrobras. A delação implicou executivos da UTC Engenharia, Camargo Corrêa, Queiroz Galvão, OAS, entre outros. 

Segundo o constitucionalista Georges Abboud, uma das consequências possíveis da decisão do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, que levantou o sigilo da escuta contra Youssef é a anulação de provas. Isso porque a delação, agora sob risco, foi um dos pilares da “lava jato”.

“Entre as tantas consequências que podem advir desses novos fatos, duas parecem, no momento, as mais importantes. Em primeiro lugar, uma nova onda de anulação de provas e condenações pelo STF, e, em segundo, um olhar mais rígido com relação às investigações internas levadas a cabo pelo MPF”, disse à ConJur.

Professor de Direito Penal, Eduardo Appio também considera a possibilidade de a delação cair e afetar outros processos da “lava jato”. Appio foi juiz na 13ª Vara Federal de Curitiba após Sergio Moro deixar o posto de magistrado. 

“Se a delação de Youssef eventualmente cair, talvez outras delações, em tese, sejam afetadas. Não se sabe como o STF irá decidir”, disse. 

Não são só casos recentes os afetados: no último dia 14, o Supremo manteve a condenação do ex-presidente Fernando Collor a oito anos e dez meses de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

A corte entendeu ter ficado provado que Collor recebeu R$ 20 milhões de propina para conseguir que a construtora UTC obtivesse contratos com a BR Distribuidora. Boa parte das provas do caso se baseia na delação de Youssef.

Árvore envenenada

A constitucionalista Vera Chemim explica que caso constatado em uma apuração que o investigado ou acusado foi prejudicado por condutas da polícia, do Ministério Público ou do juiz, as provas podem ser consideradas ilícitas e isso levar a a invalidação de provas, aplicando-se a teoria dos frutos da árvore envenenada. A medida, no entanto, não deve ocorrer de forma generalizada.

“A análise in abstracto (ou seja, teoricamente, sem qualquer referência a fatos) permite afirmar que existe alguma possibilidade de provas que decorram de prova considerada ilícita serem também reconhecidas como ilícitas e provocarem a nulidade do processo que envolva pessoas nesse sentido”, explicou. 

Há, no entanto, limitações. Isso porque, diz, há provas que podem ser consideradas como totalmente independentes das declaradas como ilícitas.

“A Constituição Federal de 1988 é clara nesse sentido, ao expressar claramente no Inciso LVI do seu artigo 5º, que ‘são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos (derivadas da prova ilícita)’. Na mesma direção, o caput e os § § 1º, 2º do artigo 157 do Código de Processo Penal, especialmente o 2º que ‘considera fonte independente aquela (prova) que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal (quando se trata de ação penal), seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova’”, prossegue.

A advogada criminalista Flávia Rahal diz não ser possível falar em anulação em cadeia no caso Youssef. Conceitualmente, no entanto, afirmou, se a delação for anulada, há, sim, a possibilidade de isso afetar outros processos.

“É possível que haja uma afetação porque a delação do Youssef está no nascedouro da operação ‘lava jato’ e sua eventual anulação pode trazer consequências para outras ações penais dela decorrentes”, explicou.

Regime do poder visível

Segundo o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello, presidente da corte entre 1997 e 1999, dar publicidade aos grampos ilegais corrige uma distorção comum em tempos de “lava jato”, que era privilegiar o mistério em vez de efetivar o princípio constitucional da publicidade.

“Tenho por absolutamente correta e necessária a decisão com que o Ministro Dias Toffoli deu concreta efetivação ao princípio constitucional da publicidade! Sempre enfatizei, em julgamentos proferidos no Supremo Tribunal Federal, que os estatutos do poder numa República fundada em bases democráticas não podem privilegiar o mistério, porque a supressão do regime visível de governo — que tem na transparência a condição de legitimidade dos próprios atos — sempre coincide com tempos sombrios e com o declínio das liberdades fundamentais!”, disse o ministro à ConJur.

Leia a seguir a íntegra da manifestação do ministro Celso de Mello:

Tenho por absolutamente correta e necessária a decisão com que o Ministro Dias Toffoli deu concreta efetivação ao princípio constitucional da publicidade!

Sempre enfatizei, em julgamentos proferidos no Supremo Tribunal Federal, que os estatutos do poder numa República fundada em bases democráticas não podem privilegiar o mistério, porque a supressão do regime visível de governo — que tem na transparência a condição de legitimidade dos próprios atos — sempre coincide com tempos sombrios e com o declínio das liberdades fundamentais!

Nos modelos políticos que consagram a democracia — que é, por excelência, o regime do poder visível — não há espaço possível reservado ao mistério, como autorizadamente adverte Norberto Bobbio!

A decisão do Ministro Toffoli, ao acertadamente levantar o sigilo do HD em questão, após tantas idas e vindas, revela-se de significativa importância, pois, segundo entendo, o estatuto político brasileiro — que rejeita o poder que oculta e que não tolera o poder que se oculta — consagrou a publicidade como expressivo valor constitucional, incluindo-o, tal a magnitude desse postulado, no rol dos direitos, das garantias e das liberdades fundamentais!

Sem sigilo

Na quinta-feira (20/11), Dias Toffoli, do STF, levantou o sigilo do grampo ilegal da PF na cela de Youssef. O HD com os áudios gravados foi ocultado de investigações durante dez anos. Delegados da PF não obedeceram a ordem dos juízes Eduardo Appio e Luiz Antônio Bonat que determinaram a entrega do HD. Mas não foram apenas os delegados e os procuradores do MPF que sonegaram as provas da ilegalidade.

Na verdade, o HD estava acautelado na própria 13ª Vara Federal de Curitiba — o que os servidores da vara esconderam dos juízes, do Conselho Nacional de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. O HD, que teve 26 arquivos apagados, com 210 horas de gravações, só foi liberado quando assumiu o comando da vara o juiz Guilherme Borges.

Há indícios de que existe uma versão integral, em que foram filtrados ruídos — já que os áudios originais são precários. O material que finalmente foi entregue à defesa neste ano, em sua maior parte, é quase inaudível.

O então juiz Sérgio Moro foi quem arquitetou, desde o início, o plano para esconder da Justiça o crime dos delegados. Ele recebeu o HD, mas, oficialmente, devolveu-o à PF. Em vez de abrir inquérito (que abriria espaço para a defesa acompanhar o caso), Moro abria sindicâncias, a que só a quadrilha lavajatista teria acesso.

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