Como começar a ler Ronald Dworkin
23 de novembro de 2024, 8h00
Ronald Myles Dworkin é um dos mais importantes autores para compreender o fenômeno jurídico contemporâneo. Dworkin foi aluno de outro grande jurista o britânico H.L.A. Hart que sucedeu na cátedra de Jurisprudence em Oxford. E foi justamente partindo de uma forte crítica às suas ideias (em especial ao Positivismo) que Dworkin construiu sua teoria do Direito.
Mas este não é mais um artigo apenas discutindo as ideias de Dworkin e sim um artigo para traçar um guia de leitura para iniciantes, estudantes de graduação, iniciantes no mestrado, profissionais e curiosos acerca do tema. Ronald Dworkin foi um intelectual público conhecido por suas posições políticas progressistas, pela sua escrita ferina e pelo seu impacto em decisões judiciais de grande relevância, sendo frequentemente citado por altas cortes ao redor do mundo, por filósofos morais e estudantes de ética. Para entender o pensamento deste autor alguns passos são necessários.
Teoria inaugura algo novo que se opõe ao positivismo jurídico e ao jusnaturalismo
O seu interpretativismo não é uma escola derivada do positivismo jurídico ou do jusnaturalismo e sim um terceiro fenômeno que inaugura uma abordagem original do Direito. Uma abordagem interpretativa.
Para Dworkin, o conceito de direito não é algo naturalmente dado (jusnaturalismo) ou algo puramente convencionado (juspositivismo), e sim o resultado de um saber compartilhado histórica e intersubjetivamente e que se manifesta em uma dimensão prática essencialmente interpretativa.
Quais são as críticas de Dworkin a H.LA. Hart e quais as consequências para a teoria da decisão judicial?
As críticas de Dworkin à teoria de Hart centram-se, inicialmente, em três principais pontos (aquilo que ele considera o “esqueleto” do positivismo jurídico):
(i) O Direito é um conjunto de regras válidas que podem ser identificadas por um teste de pedigree (tese das fontes sociais);
(ii) O conjunto dessas regras é coextensivo com o Direito, o que significa que se um determinado caso não estiver claramente coberto por uma regra, haverá um espaço para a discricionariedade do intérprete;
(iii) Dizer que alguém tem uma “obrigação jurídica” significa que seu caso se enquadra em uma regra válida.
Dworkin opõe-se a essas premissas ao identificar que o direito não se limita a um conjunto de regras, havendo outros padrões normativos que já operariam na prática jurídica. O exemplo clássico utilizado pelo autor é o Caso Riggs vs. Palmer (1889), que tratava sobre o direito à herança de Elmer Palmer, que havia assassinado o avô para evitar a alteração de seu testamento.
O direito estatutário estadunidense não tinha qualquer regra que impedisse Elmer Palmer, enquanto herdeiro testamentário, de receber a herança. Ainda assim, o Tribunal de Apelações de Nova York decidiu que Elmer não tinha direito à herança, a partir do fundamento de que “ninguém pode se beneficiar da própria torpeza”.
Dworkin observa que o fundamento da decisão decorreria da interpretação do todo coerente do direito, revelando a existência de um padrão normativo diferente da regra: o princípio, que conflitaria com as teses positivistas, na medida em que: não poderia ser sempre reconhecido por um teste de “pedigree”; determinaria a decisão judicial mesmo em “casos difíceis”; justificaria a existência de uma obrigação jurídica, mesmo onde não havia regra. Para o autor, os princípios enunciam uma razão que conduz um argumento em certa direção, possuindo duas dimensões: ajuste institucional (fit) e justiça substantiva (value).
E ao identificar a existência de outros fundamentos jurídicos, Dworkin defende que o juiz não está autorizado a decidir discricionariamente nos casos em que não há regra aplicável. Isso porque os princípios seriam igualmente vinculantes aos agentes públicos, devendo guiar suas decisões.
Há aqui uma exigência de que a decisão judicial, que expressa a coerção estatal, represente uma resposta correta, baseada na melhor justificativa da prática jurídica como um todo. Sua teoria, então, é incompatível com a discricionariedade do intérprete, ou com qualquer outra abertura para que ele introduza, como fundamentação da decisão, a sua própria preferência particular.
Dworkin critica a discricionariedade do positivismo e fecha (jamais abre) as possibilidades de decisão com seus princípios
Quem sustenta que Dworkin faz com que os princípios tornem o Direito algo abstrato e sem determinação se equivoca. Vamos citar aqui o famoso exemplo dos cães na plataforma.
Bom, digamos que em uma certa cidade existe uma plataforma marítima, nesta plataforma há uma placa colocada pelo município que afirma:
- São proibidos cães na plataforma.
Um guarda impede a entrada de um Golden Retriever com base na regra, aplicando-a de forma objetiva.
Agora, considere:
- Um cego com um cão-guia.
- Uma pessoa com um urso adestrado.
No primeiro caso, princípios como igualdade e inclusão justificam a entrada do cão-guia, mostrando que a regra deve ser interpretada além de sua literalidade. No segundo, a coerência exige que o urso também seja barrado, pois a regra visa proteger segurança e higiene, princípios aplicáveis independentemente da espécie.
Dworkin argumenta que decisões jurídicas não podem ser arbitrárias nem puramente discricionárias. Para ele, interpretar o direito exige harmonizar regras e princípios, assegurando justiça e integridade ao sistema.
Por isso, ao propor o direito como integridade, Dworkin identifica que direitos e obrigações decorrem das decisões institucionais do passado não só quando estiverem explicitados em regras, mas também quando forem exigidos pelos princípios que justificam tais decisões e que se projetam a partir do caso concreto, os quais funcionam como um “fechamento hermenêutico” para a interpretação.
Assim, a proposta dworkiniana para o Direito como integridade não busca uma mera coerência formal com o passado e sim uma consistência principiológica.
Para Dworkin o Direito deve ter coerência e integridade
Para Dworkin, coerência e integridade são elementos da igualdade política (igual consideração). Em uma democracia na qual todos os membros de uma comunidade são iguais enquanto seres humanos e devem ser tratados com igual respeito e consideração pelo Estado, isso significa que todo cidadão tem direito a uma resposta correta (adequada ao direito como um todo), não havendo espaço para voluntarismos do tipo “decido conforme minha consciência” ou qualquer outra arbitrariedade por parte do julgador.
Assim, a coerência deve ser entendida como o ajuste que as circunstâncias fáticas devem guardar com os elementos normativos do direito, bem como a consistência lógica que o julgamento de casos semelhantes deve guardar entre si. Significa que os juízes devem decidir casos semelhantes de maneira semelhante, por uma questão de isonomia.
Integridade, por sua vez, significa que um simples artigo da lei não pode contrariar os valores fundamentais de um sistema jurídico. O Direito não é uma norma solta, mas a sua integridade de sentidos e princípios. É a exigência de que os juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do Direito, numa perspectiva de ajuste substancial.
Dworkin pensa uma teoria da adjudicação jurídica
Ou seja, uma teoria da Decisão. Dworkin afirma que existem maneiras corretas e maneiras incorretas de decidir questões jurídicas. Nesse sentido, fica evidente a inviabilidade de uma teoria do direito puramente descritiva, na medida em que, os argumentos jurídicos que compõem a teoria do direito são inevitavelmente normativos.
Assim, a sua abordagem descreve o que é o Direito como os positivistas, mas também cria padrões para explicar como os juízes devem decidir. Essa última característica foi bastante negligenciada pelos Positivistas. Há, no cerne de sua teoria, o enfrentamento do problema da (in)determinação do direito – precisamente aquilo que o positivismo havia afastado de sua esfera de atenção.
(Re)contextualizando as ideias
Dworkin é conhecido por uma trajetória intelectual marcada por uma evolução clara de suas ideias, que se reflete em suas obras e no impacto que causou na filosofia do direito e na teoria política. Em seus primeiros trabalhos, especialmente em Taking Rights Seriously (1977), Dworkin concentra-se em uma crítica ao positivismo jurídico, particularmente à visão de H.L.A. Hart.
Ele argumenta que o direito não se limita a um sistema de regras, mas inclui também princípios, que possuem peso e orientam as decisões jurídicas, especialmente nos casos difíceis. Esses princípios, ao contrário das regras, não são aplicados de forma binária e servem como fundamentos para garantir que os direitos individuais funcionem como trunfos contra a vontade da maioria. Nessa fase, Dworkin apresenta o conceito do juiz Hércules, uma figura idealizada capaz de encontrar a melhor resposta para cada caso ao combinar direito e moralidade.
Com o amadurecimento de seu pensamento, Dworkin avança para uma concepção mais ampla do direito em Law’s Empire (1986). Ele desenvolve a ideia do direito como integridade, propondo que o sistema jurídico deve ser entendido como uma prática interpretativa em que juízes e juristas buscam coerência moral e integridade na aplicação das normas.
Nesse modelo, decidir casos jurídicos não é apenas uma questão de aplicar regras preexistentes, mas de construir uma narrativa coerente entre o passado e o presente, conectando os princípios e normas do sistema jurídico em uma espécie de “romance em cadeia”. O juiz Hércules reaparece aqui como um intérprete ideal, cuja tarefa é garantir que cada decisão contribua para a integridade do direito como um todo.
Nos últimos anos de sua carreira, Dworkin amplia ainda mais o escopo de suas reflexões, buscando integrar filosofia moral, política e jurídica em um sistema unificado (recomendamos prudência ao começar o seu estudo direto por essa fase mais complexa). Em Justice for Hedgehogs (2011), ele defende a tese da unidade do valor, afirmando que os valores éticos, morais e jurídicos estão interligados e não podem ser compreendidos isoladamente.
Ele rejeita o relativismo moral, insistindo na objetividade dos valores e na necessidade de dignidade e respeito como princípios fundamentais para guiar tanto a moralidade quanto o direito e a política. Essa última fase reflete uma visão madura e abrangente, na qual Dworkin busca articular uma teoria que conecte justiça distributiva, igualdade e os fundamentos éticos que sustentam as sociedades democráticas.
A trajetória de Dworkin revela um pensamento em constante aprofundamento, começando com (1) uma crítica ao positivismo jurídico, passando pela (2) elaboração de uma teoria interpretativa centrada na integridade do direito e (3) culminando em uma filosofia ética abrangente que unifica os valores fundamentais. Essa evolução demonstra seu compromisso em compreender o direito não apenas como um sistema técnico, mas como um empreendimento moral e político, profundamente interligado às aspirações humanas por justiça e dignidade.
Por quais bibliografias devemos começar?
Este texto foi escrito apenas à título de ser o primeiro passo, portanto, para os próximos passos recomendamos algumas bibliografias:
Com um autor tão complexo é recomendável começar por fontes secundárias. Gilberto Morbach possuí um livro que trata muito bem do assunto: Entre o Positivismo e o interpretativismo [1], Francisco Motta também domina o assunto em Ronald Dworkin e a decisão jurídica [2], o Dicionário de hermenêutica do professor Lenio Streck possui uma série de verbetes fantásticos sobre o interpretativismo de Dworkin [3], verbete Ronald Dworkin do Dicionário de Filosofia do Direito da editora Unisinos [4], a Stanford encyclopedia possui um belo verbete sobre “legal interpretativism” redigido por Nicos Stavropoulos [5] que estudou com Dworkin. Uma bibliografia extremamente completa mas muito complexa é a biografía intelectual de Dworkin escrita por Stephen Guest [6].
Para quem é adepto dos vídeos recomendamos — além de vídeos do próprio Dworkin — o brilhante curso ministrado no YouTube pelo professor da UFRJ André Coelho [7].
De sobremodo indicamos um texto de um destes que subscrevem (Francisco) com Ziel Lopes e com ninguém menos do que o professor Lenio Streck chamado: O que é isto: O interpretativismo de Ronald Dworkin. O texto foi aprovado e deve ser publicado em dezembro na Revista de direito da defensoria pública do estado do Rio de Janeiro.
Mas se você quiser se aventurar direto no autor comece com textos mais acessíveis que resumem suas principais ideias. Isso ajudará você a entender o contexto antes de mergulhar em obras mais densas. O mais recomendável é “Levando os Direitos a Sério” [8] (Taking Rights Seriously, 1977).
Esse livro é o ponto de partida clássico. Aqui, Dworkin apresenta sua crítica ao positivismo jurídico e defende que os direitos não podem ser reduzidos a regras criadas por um legislador. Ele introduz a noção de princípios jurídicos, que orientam os juízes em casos difíceis.
Lembrando que o livro é uma união de artigos que possuem relação entre si mas que não seguem uma linha reta, por isso leia especialmente os capítulos sobre a diferença entre regras e princípios e sobre o papel dos direitos na interpretação jurídica. Dworkin possui trabalhos em várias áreas e possui algumas diferentes fases, é aconselhado começar pelos seus primeiros trabalhos, aqui temos uma cronologia dos principais trabalhos de Ronald Dworkin.
Conhecer as ideias de Dworkin é fundamental não apenas para entender a filosofia jurídica contemporânea, mas também para desenvolver uma visão crítica e fundamentada sobre o papel do direito em uma sociedade democrática. Sua abordagem oferece respostas robustas para questões como: como juízes devem decidir? Qual é o papel da Constituição? E como reconciliar direito e justiça?
Ao estudar Dworkin [9], você estará não apenas ampliando seu conhecimento jurídico, mas também refinando sua capacidade de enfrentar os dilemas concretos da prática jurídica com coerência e integridade.
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[1] Morbach, Gilberto. Entre o Positivismo e o Interpretativismo: A terceira via de Jeremy Waldron. Salvador: Juspodium: 2018.
[2] Motta, Francisco Borges. Ronald Dworkin e a decisão jurídica. Salvador Juspodium:2021.
[3] Streck, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica. 50 verbetes fundamentais sobre teoria do Direito. São Paulo: Casa do Direito, 2022.
[4] RONALD DWORKIN. In: Barreto, Vicente; Streck, Lenio Luiz (org.). Dicionário de Filosofia do Direito. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006.
[5] Stavropoulos, Nicos, “Legal Interpretivism”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2021 Edition), Edward N. Zalta (ed.), <https://plato.stanford.edu/archives/spr2021/entries/law-interpretivist/>.
[6] Guest, Stephen. Ronald Dworkin. São Paulo: Elsevier, 2010.
[7] Canal do Youtube de André Coelho: https://www.youtube.com/@andrecoelho1857. Recomendamos cautela com outros vídeos principalmente vídeos de cursos preparatórios.
[8] DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério (Taking Rights Seriously). São Paulo: Martins Fontes, 2011.
[9] O professor Lenio Streck inclusive tem como um de seus méritos adaptar as ideias de Dworkin à realidade brasileira em suas principais obras como Verdade e Consenso e Hermenêutica jurídica e(m) crise. Sendo Dworkin um dos autores que mais influenciou o seu pensamento,
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