Direito do Agronegócio

Reforma tributária, combustível do futuro e desafios

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  • é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) professor da FGV Direito SP e Ibet sócio tributarista Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

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22 de novembro de 2024, 8h00

Reforma tributária, biocombustíveis e sustentabilidade

No artigo anterior desta coluna, trouxemos considerações gerais a respeito da Reforma Tributária sobre o consumo e sua conexão com a cadeia dos biocombustíveis, dada a sua relevância para o setor do agronegócio [1].

Naquele texto, enfatizamos a previsão constitucional do artigo 225, § 1º, VIII [2], que concede um tratamento favorecido e diferenciado para os biocombustíveis, em comparação aos combustíveis fósseis, estando, assim, em plena harmonia com o novo princípio geral tributário da defesa do meio ambiente (artigo 145, § 3º).

Trouxemos, ainda, os dispositivos do PLP 68/2023, que regulamentam a reforma tributária e disciplinam de forma muito breve o regime de tributação dos combustíveis, possuindo poucas diretrizes e regras que nos permita reconhecer que o tratamento diferenciado e favorecido está, por completo, concretizado.

Daí porque, afirmamos “a política fiscal voltada à tributação dos biocombustíveis, garantindo um regime diferenciado e favorecido ainda depende do aperfeiçoamento, mediante inserção de critérios e diretrizes em referido projeto de lei complementar, além de posteriores atos do Comitê Gestor e do Poder Executivo”.

Alertamos, naquela ocasião, que referida Reforma Tributária e legislação devem “agir em harmonia com as políticas já existentes de fomento e incentivo destes produtos, com o caso do RenovaBio, previsto na Lei n. 13.576/2017, bem como a denominada “Lei dos Combustíveis do Futuro”, conforme Lei n. 14.993/2024, sob pena de já surgir desatualizada e incompatível com o regime diferenciado e favorecido que há de ser dado, por determinação constitucional, para tais combustíveis”.

Reforma tributária, RenovaBio e Lei do Combustível do Futuro: desafios

Ao se analisar a estrutura da tributação do IBS e CBS, notamos que muitos são os desafios para a adequação de referido regime com a necessidade de fomento e incentivo dos biocombustíveis em geral, a fim de dar o tratamento favorecido previsto no texto constitucional.

Spacca

Podemos começar pelo RenovaBio, previsto na Lei nº 13.576/2017, que cuida da Política Nacional de Biocombustíveis, que tem por finalidade, de um lado contribuir com a redução das emissões de gases causadores do efeito estufa, conforme Protocolo de Paris e, dentro desta perspectiva, fomentar e incentivar a segurança energética do país por meio de energia renovável, notadamente, os biocombustíveis.

Entre as medidas visando o cumprimento deste texto normativo, temos o CBIOS — crédito de descarbonização —, o qual representa um ativo financeiro ambiental, resultante de uma equação relacionada ao volume de produção de biocombustível e respectiva nota de eficiência energética, o qual é negociado na bolsa — B3 — ou mercado privado e deve ser adquirido por aqueles do setor de combustíveis fosseis que precisam atender metas de descarbonização. [3]

Na atualidade, a tributação quanto ao recebimento dos CBIOS, especialmente, pelos emissores primários — produtores de biocombustíveis — , é altamente controvertida, na medida em que a Lei nº 13.576/2017, somente disciplina a tributação do IR e CSLL, por meio do artigo 15-A [4], deixando uma “lacuna” a respeito do impacto fiscal para PIS/Cofins, Funrural, Senar, entre outros. [5]

Com a reforma tributária, ao menos, até o momento, o tema não recebeu o tratamento adequado, pois, poderá sofrer uma tributação ainda mais onerosa com o IBS e CBS, contrariando o propósito estabelecido na Constituição e em tais Programas de Sustentabilidade, como bem advertem Ricardo Varrichio e Fernando Giacobbo:

O texto em tramitação no Senado é silente em relação à introdução dos CBIOs em regimes diferenciados de tributação, em total dessintonia com as políticas públicas constitucionais que estimulam um meio ambiente equilibrado e o princípio tributário constitucional “da defesa do meio ambiente” como anteriormente apresentado. Aliás, onde hoje há somente tributação no âmbito federal (embora discutível em diversos aspectos), passaria também a ser fato gerador para tributação pelos estados e municípios por meio do IBS.
Em outras palavras, a reforma tributária, como está, apresenta um grande desincentivo para que as empresas de produção de biocombustíveis invistam ainda mais recursos em tecnologias de ponta para propiciar a transição energética”. [6]

Esta legítima preocupação se dá, como exposto, por inexistir um adequado tratamento à referida política dos biocombustíveis, como a questão do CBIOS, mas, também, pelo fato de que, se tais operações como ativo financeiro de natureza ambiental forem tributados pela regra geral, poderão sofrer uma carga fiscal que, a depender da previsão de alíquota, chegará ao percentual de 27,5%, sem contar ainda o IR-Fonte de 15% e eventual exigência de “Funrural” e Senar no montante de 2,85%.

Equivale dizer: uma receita que, em tese deveria fomentar a atividade de produção e modernização de combustíveis renováveis e sustentáveis, irá sofrer uma carga tributária de aproximadamente 45,35%! Há evidente contradição e falta de razoabilidade!

Os desafios não se restringem ao RenovaBio, pois, existem outras políticas públicas voltadas à sustentabilidade energética, cabendo destacar a recente Lei n. 14.993/2024, denominada de “Lei do Combustível do Futuro”, a qual “Dispõe sobre a promoção da mobilidade sustentável de baixo carbono e a captura e a estocagem geológica de dióxido de carbono; institui o Programa Nacional de Combustível Sustentável de Aviação (ProBioQAV), o Programa Nacional de Diesel Verde (PNDV) e o Programa Nacional de Descarbonização do Produtor e Importador de Gás Natural e de Incentivo ao Biometano; altera as Leis nºs 9.478, de 6 de agosto de 1997, 9.847, de 26 de outubro de 1999, 8.723, de 28 de outubro de 1993, e 13.033, de 24 de setembro de 2014; e revoga dispositivo da Lei nº 10.438, de 26 de abril de 2002”.

Segundo artigo 1º esta Lei:  (i) — institui o Programa Nacional de Combustível Sustentável de Aviação (ProBioQAV), o Programa Nacional de Diesel Verde (PNDV) e o Programa Nacional de Descarbonização do Produtor e Importador de Gás Natural e de Incentivo ao Biometano; (ii) — altera os limites máximo e mínimo do teor de mistura de etanol anidro à gasolina C comercializada ao consumidor final e do teor de mistura de biodiesel ao diesel comercializado ao consumidor final; (iii) — dispõe sobre a regulamentação e a fiscalização das atividades de captura e de estocagem geológica de dióxido de carbono e de produção e comercialização dos combustíveis sintéticos; (iv) — integra iniciativas e medidas adotadas no âmbito da Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio), do Programa Mobilidade Verde e Inovação (Programa Mover), do Programa Brasileiro de Etiquetagem Veicular (PBEV) e do Programa de Controle de Emissões Veiculares (Proconve).

Trata-se de uma relevante legislação que busca, por diversas diretrizes, fomentar políticas públicas e a atuação privada na cadeia dos biocombustíveis, com o objetivo de concretizar a sustentabilidade, sobretudo, sob o viés ambiental.

A Lei nº 14.993/2024, todavia, não traz qualquer previsão voltada a disciplinar os efeitos fiscais para este setor e referidas operações e, da mesma forma, o PLP 68/2023, o que confirma a preocupação e os desafios fiscais que serão enfrentados, em especial, para se cumprir o tratamento favorecido e diferenciado em face dos combustíveis fósseis.

Por exemplo, a Lei prevê no artigo 12, o Programa Nacional do Diesel Verde (PNDV), traçando diversos direcionamentos voltados a “incentivar a pesquisa, a produção, a comercialização e o uso energético do diesel verde, estabelecido em regulamento da ANP, na matriz energética brasileira”.

Para se ter uma ideia dos inúmeros desafios, o óleo combustível renovável denominado de óleo vegetal hidrotratado (HVO), que seria um diesel verde, que tem como matéria-prima produtos vegetais, como a macaúba, segundo a Receita Federal tem sua classificação fiscal atual na NCM 2710.19.29, conforme Solução de Consulta Cosit nº 98.052/2022:

“ASSUNTO: CLASSIFICAÇÃO DE MERCADORIAS Código NCM: 2710.19.29 Mercadoria: Mistura constituída, em teor superior a 99%, de hidrocarbonetos parafínicos, alifáticos, saturados e não aromáticos, com tamanho de cadeia predominantemente entre C6 e C20 (EC número 942- 445-1), obtida por hidrogenação de óleos vegetais e gorduras animais, consistindo num óleo análogo ao de petróleo, na forma de um líquido incolor, utilizado principalmente como óleo combustível renovável, comercialmente denominado óleo vegetal hidrotratado (HVO). Dispositivos Legais: RGI 1 (Nota 2 do Cap. 27), RGI 6 e RGC 1 da NCM constante da TEC, aprovada pela Res. Gecex nº 272, de 2021, e da Tipi, aprovada pelo Dec. nº 10.923, de 2021, e subsídios extraídos das Nesh, aprovadas pelo Dec. nº 435, de 1992, e atualizadas pela IN RFB nº 1.788, de 2018, e alterações posteriores.”

Para se notar a complexidade e grande contradição, esta classificação fiscal está no Capítulo que congrega “Combustíveis minerais, óleos minerais e produtos da sua destilação; matérias betuminosas; ceras minerais”. Portanto, um combustível renovável vegetal e sem qualquer elemento fóssil ou mineral, atualmente, é classificado em uma posição da Tipi como se fosse equiparado a um combustível fóssil, sendo este aspecto relevante pois, a partir deste NCM, podemos ter diversos reflexos fiscais. E estando na mesma posição de combustíveis fósseis, sofrerá para fins fiscais consequências semelhantes.

Bem por isso, o alerta nesta reforma tributária a respeito da necessidade de se atentar, verdadeiramente, para a imposição constitucional do tratamento diferenciado e favorecido dos biocombustíveis, sob pena de se tornar letra morta, apesar da boa vontade de algumas legislações de políticas públicas que visam incentivar o setor.

E, na mesma linha, tais preocupações se estendem a outros combustíveis renováveis, como é o caso do Combustível Sustentável de Aviação (Sustainable Aviation Fuel — SAF), tido como aquele alternativo ao aeronáutico de origem fóssil, produzido a partir de quaisquer matérias-primas e processos que atendam a padrões de sustentabilidade, conforme definição da Organização de Aviação Civil Internacional (International Civil Aviation Organization — Icao), que possa ser utilizado puro ou em mistura com o combustível de origem fóssil, conforme as especificações técnicas das normas aplicáveis, e que promova benefícios ambientais quando considerado o seu ciclo de vida completo. (artigo 6º, XXXI, Lei nº 9.478/97).

Tal qual o diesel verde, para o SAF também existe grande dificuldade e insegurança quanto à classificação fiscal, o que nos revela claramente a necessidade de se atentar a estes aspectos tributários, com o objetivo de diferenciar dos combustíveis fósseis e, por conseguinte, atribuir um diferencial competitivo como preconiza a Constituição.

Vale lembrar, por exemplo, que para o biodiesel, atualmente, temos a classificação fiscal específica na Tipi 3826.00.00, Ex 01, tido inclusive como um produto não tributado (NT)-, tal como o etanol (NCM 2207.10.90 Tipi-NT).

Considerações finais

Estas breves ponderações revelam claramente a necessidade de a legislação atual e, principalmente, aquela que disciplinará a reforma tributária (PLP 68/23), estar mais atenta ao adequado tratamento fiscal favorecido a ser dado aos biocombustíveis ou combustíveis renováveis, fim de se cumprir o propósito imposto pelo artigo 225, § 1º, VIII, da Constituição, quanto à sustentabilidade e o princípio tributário da defesa do meio ambiente.

________________________

[1] aqui

[2] “VIII – manter regime fiscal favorecido para os biocombustíveis e para o hidrogênio de baixa emissão de carbono, na forma de lei complementar, a fim de assegurar-lhes tributação inferior à incidente sobre os combustíveis fósseis, capaz de garantir diferencial competitivo em relação a estes, especialmente em relação às contribuições de que tratam o art. 195, I, “b”, IV e V, e o art. 239 e aos impostos a que se referem os arts. 155, II, e 156-A.   “

[3] aqui

[4] “Art. 15-A. A receita das pessoas jurídicas qualificadas conforme o inciso VII do caput do art. 5º desta Lei auferida até 31 de dezembro de 2030 nas operações de que trata o art. 15 desta Lei fica sujeita à incidência do imposto sobre a renda exclusivamente na fonte à alíquota de 15% (quinze por cento).    (Incluído pela Lei nº 13.986, de 2020)§ 1º A receita referida no caput deste artigo será excluída na determinação do lucro real ou presumido e no valor do resultado do exercício, mas as eventuais perdas apuradas naquelas operações não serão dedutíveis na apuração do lucro real.    (Incluído pela Lei nº 13.986, de 2020)§ 2º O disposto no § 1º deste artigo não impede o regular aproveitamento, na apuração do lucro real das pessoas jurídicas referidas no caput deste artigo, das despesas administrativas ou financeiras necessárias à emissão, ao registro e à negociação dos créditos de que trata o inciso V do caput do art. 5º desta Lei, inclusive aquelas referentes à certificação ou às atividades do escriturador de que tratam os incisos I e VIII do caput do art. 5º e os arts. 15 e 18 desta Lei. (Incluído pela Lei nº 13.986, de 2020)§ 3º O disposto no caput e no § 1º deste artigo aplica-se por igual a todas as demais pessoas físicas ou jurídicas que realizem, sucessivamente, operações de aquisição e alienação na forma do art. 15 e com o registro de que trata o art. 16 desta Lei, salvo quando aquelas pessoas se caracterizarem legalmente como ‘distribuidor de combustíveis. (Incluído pela Lei nº 13.986, de 2020)”.

[5] aqui; aqui

[6] aqui

Autores

  • é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), professor da FGV Direito SP e Ibet e sócio tributarista do escritório Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

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