Opinião

Prós e contras a proibição do uso de celular na escola, segundo a legislação

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22 de novembro de 2024, 6h32

O uso de celulares em ambiente escolar tem se tornado um tema de grande relevância na sociedade contemporânea, especialmente diante das novas dinâmicas de ensino e socialização digital. Recentemente, a Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) aprovou um projeto de lei que proíbe o uso de aparelhos eletrônicos, como celulares e tablets, nas escolas públicas e privadas durante todo o período escolar.

Rovena Rosa/Agência Brasil

Esta medida tem gerado um debate intenso sobre seus potenciais benefícios e desafios, principalmente quando analisada sob o prisma da legislação brasileira, incluindo a Constituição, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) dentre outros dispositivos legais abaixo descritos.

Fundamentação jurídica da proibição do uso de celulares nas escolas

A Constituição, em seu artigo 205, estabelece que “a educação é um direito de todos e dever do Estado e da família, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Nesse contexto, o uso indiscriminado de celulares nas escolas pode ser visto como um fator que prejudica o desenvolvimento integral dos estudantes, interferindo em sua concentração e aprendizado.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), no artigo 12, incisos IX e X, confere às instituições de ensino a responsabilidade de promover medidas de conscientização, prevenção e combate a todas as formas de violência, inclusive o bullying e estabelecer ações de promoção da cultura da paz. A partir dessa perspectiva, a restrição do uso de celulares pode ser interpretada como uma medida preventiva para evitar o cyberbullying e a exposição dos estudantes a conteúdos inapropriados.

As instituições de ensino têm o dever legal de promover um ambiente seguro e saudável, livre de publicações que possam comprometer o desenvolvimento integral dos estudantes. Dessa forma, cabe às escolas, às famílias e ao Estado colaborarem para a implementação e fiscalização dessas políticas, garantindo que o direito à educação seja plenamente respeitado.

Adicionalmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no artigo 4º, destaca o dever de assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à educação, à cultura e ao respeito. Diante disso, limitar o uso de dispositivos móveis nas escolas pode ser uma forma de proteger os direitos dos estudantes ao garantir um ambiente de ensino focado no aprendizado e na interação social.

Benefícios da proibição

A decisão de proibir o uso de celulares durante o horário escolar pode ser fundamentada pelo objetivo de melhorar o foco e a concentração dos alunos. Diversos estudos mostram que a simples presença de dispositivos móveis pode ser uma distração significativa, prejudicando a atenção e o desempenho acadêmico. Além disso, o uso excessivo de celulares pode levar à dependência digital, afetando a saúde mental dos estudantes.

Spacca

O ECA, em seu artigo 17, assegura o direito à inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, incluindo a preservação da imagem, da identidade e da autonomia. Nesse sentido, a proibição pode ser vista como uma medida de proteção à saúde mental e física dos jovens, ao reduzir a exposição a notificações constantes e ao estímulo de redes sociais, que frequentemente provocam ansiedade e distração e, consequentemente, redução dos índices de aproveitamento das aulas.

O artigo 227 da Constituição atribui à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar à criança e ao adolescente um ambiente que promova o desenvolvimento saudável. A regulamentação do uso de dispositivos eletrônicos nas escolas alinha-se a este princípio constitucional, garantindo um espaço mais propício ao aprendizado e à socialização.

A proibição do uso de celulares nas escolas pode ser diretamente correlacionada aos incisos baixo citados do artigo 227, que estabelece as obrigações da família, da sociedade e do Estado de garantia, com absoluta prioridade, os direitos fundamentais de crianças e adolescentes, tais como educação, saúde, dignidade e respeito.

Direito à educação

O uso de celulares nas salas de aula pode prejudicar o direito à educação ao desviar a atenção dos estudantes e comprometer sua capacidade de concentração. Ao proibir o uso de celulares, as escolas buscam criar um ambiente mais focado e propício ao aprendizado, garantindo que o direito à educação seja assegurado de forma plena.

Direito à saúde

Embora o uso de celulares não tenha os mesmos efeitos físicos diretos do consumo de substâncias como o cigarro, ele pode ter um impacto significativo na saúde mental dos jovens. Uma exposição prolongada às redes sociais e à internet pode levar ao aumento da ansiedade, do isolamento social e até ao cyberbullying, afetando qualidades à saúde psicológica dos estudantes.

Direito ao lazer

O recreio e os intervalos nas escolas são períodos fundamentais para a socialização, lazer e interação entre os estudantes. No entanto, o uso excessivo de celulares nesses momentos pode limitar as interações presenciais, contribuindo para o isolamento dos alunos. A proibição do uso de celulares durante esses períodos visa a estimular atividades lúdicas, como brincadeiras e conversas, que são essenciais para o desenvolvimento social e emocional das crianças.

Direito a dignidade e respeito

O uso de celulares nas escolas pode, em muitos casos, levar ao compartilhamento inadequado de informações, exposição de colegas e até ao cyberbullying, situações que violam os direitos à dignidade e ao respeito. Ao regulamentar ou proibir o uso de dispositivos eletrônicos, o Estado cumpre seu papel de proteger os alunos contra essas práticas, garantindo um ambiente escolar seguro e respeitoso.

Direito à responsabilidade e liberdade

Embora a liberdade seja um direito fundamental garantido pelo artigo 227, essa liberdade deve ser exercida com responsabilidade, especialmente no contexto escolar, onde o uso de celulares pode interferir nos direitos dos outros alunos ao aprendizado e ao bem-estar. A regulamentação do uso de celulares nas escolas não visa restringir a liberdade dos estudantes, mas sim equilibrá-la com a responsabilidade de preservação do ambiente educacional e do bem-estar coletivo.

Lacunas e desafios do projeto de lei

Apesar dos benefícios apontados, o projeto de lei apresenta desafios significativos em termos de sua implementação. A LDB, em seu artigo 12, inciso X, estabelece que as escolas têm o dever de “estabelecer estratégias de gestão democrática do ensino público na educação básica”, o que inclui o envolvimento da comunidade escolar no processo de definição de normas. Assim, para que a proibição do uso de celulares seja eficaz, é necessário que haja um programa de educação digital contínuo entre educadores, pais e estudantes para garantir que a medida seja adaptada às realidades de cada escola.

Além disso, o artigo 13 do Código Penal, que trata da omissão penalmente relevante, pode ser aplicado no contexto da gestão escolar. Caso o diretor da escola não implemente programas de combate ao bullying ou outras formas de violência decorrentes do uso inadequado de dispositivos eletrônicos, ele pode ser considerado corresponsável pelos crimes que ocorrem em razão dessa omissão. Portanto, é crucial que os gestores escolares estabeleçam políticas claras para o uso de celulares e adotem medidas preventivas para proteger os direitos dos estudantes, seguindo todas as diretrizes do artigo 4 da Lei do Bullying (13.185/15).

Outro ponto importante é que o projeto de lei não define mecanismos claros para a fiscalização e sanções para escolas que não cumprirem as novas regras. Isso pode resultar em uma aplicação desigual, o que prejudica a eficácia da medida.

Neste sentido, tramita na Alesp um projeto de lei, de autoria da deputada estadual Solange Freitas, que precisa ser analisado para disciplinar o tema.

A LDB exige que as instituições de ensino adotem medidas de gestão e controle, mas sem uma regulamentação detalhada, pode haver dificuldades na implementação prática.

Importância da educação digital nas escolas públicas e particulares

A proibição isolada do uso de celulares pode não ser suficiente para enfrentar os desafios do mundo digital. A inclusão de programas de educação digital nas escolas é essencial para ensinar os alunos a utilizarem a tecnologia de forma responsável. Isso é especialmente relevante à luz do artigo 205 da Constituição, que estabelece que a educação deve preparar o indivíduo para o exercício da cidadania (isso inclui a cidadania digital).

A educação midiática pode proporcionar aos estudantes as habilidades necessárias para navegar no ambiente digital de forma crítica e segura, promovendo o uso consciente das redes sociais e prevenindo problemas como o cyberbullying.

É importante destacar que o ECA, em seu artigo 53, garante às crianças e adolescentes o direito de acesso ao ensino que “leve em consideração as condições peculiares de cada faixa etária”. Portanto, é fundamental que as escolas adaptem suas políticas ao contexto social e digital atual, utilizando a tecnologia como uma ferramenta pedagógica, em vez de simplesmente proibi-la.

A análise dos prós e contras da proibição do uso de celulares nas escolas revela que, embora a medida possa trazer benefícios significativos em termos de concentração, foco e proteção ao ambiente escolar, sua implementação deve ser cuidadosamente planejada. O respeito às diretrizes estabelecidas pela Constituição, LDB, Código Penal, Código Civil, Lei do Bullying e ECA é essencial para garantir que a proibição seja aplicada de forma justa e eficaz.

Em última análise, a combinação de restrições ao uso de dispositivos móveis com programas de educação digital que sigam as diretrizes da PN de cibersegurança (Decreto nº 11.856/2023) pode representar uma abordagem mais equilibrada. Isso não apenas promoverá um ambiente de aprendizado mais focado, mas também preparará os alunos para lidar com os desafios do mundo digital, alinhando-se aos princípios constitucionais de promoção da cidadania e do desenvolvimento integral das crianças e adolescentes.

Enquanto a proibição pode ser um passo inicial para mitigar os problemas causados pelo uso excessivo de celulares, é fundamental que o poder público e as escolas adotem uma postura proativa, envolvendo a comunidade escolar e promovendo a educação digital responsável, garantindo um ambiente mais inclusivo e preparado para os desafios contemporâneos.

Autores

  • é advogada, mestre e doutoranda pela PUC/SP, professora universitária e pesquisadora em cyberbullying e violência digital e presidente da Associação SOS Bullying.

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