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O processo penal acusatório entre o Brasil e a Itália (parte 1)

Autores

  • é professor titular aposentado de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná professor do programa de pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) professor do programa de pós-graduação em Direito da Univel (Cascavel) especialista em Filosofia do Direito (PUC-PR) mestre (UFPR) doutor (Università degli Studi di Roma "La Sapienza") presidente de honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória advogado membro da Comissão de Juristas do Senado que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP (hoje Projeto 156/2009-PLS) advogado nos processos da "lava jato" em um pool de escritórios que em conjunto definiam teses e estratégias defensivas.

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  • é doutorando em Direito Público na Università degli Studi di Roma 'La Sapienza'.

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22 de novembro de 2024, 8h00

Considerações de método

Spacca

Embora o Brasil e a Itália sejam diferentes nos aspectos histórico, social e cultural, os formantes do modelo jurídico brasileiro — isto é, a legislação, a jurisprudência, a doutrina e as práticas — sofreram influências variáveis dos formantes do modelo jurídico italiano, especialmente no período do Estado Novo (1937-1945). No entanto, gradualmente, no âmbito do processo penal, a circulação do modelo italiano no Brasil foi diminuindo, dando lugar ao modelo dos Estados Unidos e de outros países da América Latina, como o Chile.

Com este texto, espera-se não apenas ilustrar até que ponto o processo penal brasileiro imitou o italiano daquela época, reconhecendo seu prestígio e eficiência — aqui entendida como efetividade punitiva, como era pensado —, mas também ressaltar a decadência, nas últimas décadas, da circulação do modelo jurídico italiano de processo penal no Brasil.

Formante legislativo

O atual Código de Processo Penal brasileiro, de 1941, é ideologicamente próximo e em muitos aspectos semelhante ao Código Rocco, de 1930. A proximidade ideológica é fruto do período autoritário que produziu ambos os códigos e pode ser vista na declaração do ministro da Justiça de Getulio Vargas, Francisco Campos, feita na exposição de motivos do código, na qual ele usou as palavras do ministro da Justiça de Mussolini, Alfredo Rocco, como uma espécie de discurso oracular que mistificava a autoridade — característica presente tanto no Brasil quanto na Itália daquele tempo — e justificava o endurecimento do processo penal para reprimir a criminalidade. Isso indica a fonte de inspiração do código brasileiro que, como toda imitação, obviamente, distancia-se em certa medida do modelo imitado.

Mas isso não elimina o fato de que ambos os regimes buscavam no processo penal um instrumento dócil aos poderosos, resultando na escolha estrutural de um modelo de processo misto, isto é, uma forma particularmente hipócrita de processo inquisitório, parafraseando Paolo Ferrua [1].

Como na Itália aconteceu com o Código Rocco, as tentativas de reformar parcialmente o CPP de 1941 foram frustradas: os textos são lidos no contexto em que se inserem, e não é surpreendente que as novidades fossem fagocitadas pelo modelo vigente para conformá-las ao regime jurídico que existia antes delas: na Itália, antes do novo código de 1988; e no Brasil de hoje, vê-se, para usar a metáfora de Franco Cordero, hircocervos [2] legislativos. No entanto, entre Brasil e Itália, as diferenças mais relevantes são o inquérito policial e a separação das carreiras entre promotores de justiça e juízes, isto é, entre o Ministério Público e o Poder Judiciário.

A primeira, de origem mais antiga, resulta da sobrevivência, no ordenamento, de uma escolha propriamente brasileira feita em 1871 e que permanece, com poucas alterações, até hoje. Seria o correspondente brasileiro aos antigos ritos de istruzione dos italianos, que produz, no procedimento preliminar, autos destinados a confluir integralmente na fase de instrução e julgamento do processo, desvalorizando fortemente o contraditório. Em suma, em vez de ser usado para a formação das provas declarativas, em seu lugar atua-se sobre os atos pré-constituídos e, portanto, sobre a prova já formada unilateralmente pela autoridade investigadora na fase preliminar do procedimento.

Até aqui, tudo é muito semelhante entre o Brasil e a Itália do código Rocco: o aspecto determinante da diferença entre o modelo brasileiro e o antigo modelo italiano é que quem conduz a fase preliminar não é um juiz de instrução, protegido por garantias profissionais, como inamovibilidade e independência, mas sim um delegado de polícia, vulnerável às influências do Poder Executivo, ou melhor, dos três poderes, o que é inadmissível.

A segunda é uma diferença mais recente, posterior ao código de 1941, consolidada pela Constituição da República de 1988, que garante ao Ministério Público brasileiro uma estrutura de garantias, independência financeira e funcional para o exercício profissional. Administrativamente, é um órgão do Poder Executivo, e seu chefe, tanto nos estados quanto na União, é escolhido, a cada quatro anos, pelo chefe do governo. No entanto, isso não significa que ele não possa agir contra o mesmo governador de estado ou presidente da república que o nomeou, pois possui todas as garantias necessárias para fazê-lo.

Por outro lado, não se tem na Constituição, como os italianos, ou em qualquer disposição infraconstitucional [3], a obrigatoriedade da ação penal, mas isso não significa que o exercício da ação penal seja arbitrário, uma vez que a conformidade com a legalidade impõe um dever, cujo exercício é controlado e cuja violação cria situações subjetivas de dever para apurar o ocorrido e, eventualmente, punir quem for reconhecido como responsável. Contudo, a legalidade é inócua se aqueles que devem controlar os atos, de acordo com as hipóteses legais previstas no ordenamento jurídico, não o fazem como deveriam: e este é o ponto em que se passa do formante legislativo para o formante jurisprudencial.

Formante jurisprudencial

Tentando justificar a excepcional longevidade das Ordenações Filipinas no Brasil, Enrico Tullio Liebman — que lecionou na Universidade de Milão e foi determinante para o pensamento jurídico brasileiro — identificou uma característica importante do modelo jurídico do Brasil, ou seja, a atitude da doutrina e da jurisprudência perante a lei escrita, quando disse: «[…] um menor apego ao texto legislativo do que têm os juristas europeus, e uma interpretação mais livre de suas disposições, no esforço de encontrar uma solução satisfatória para cada caso concreto, com amplo recurso ao direito comparado e à doutrina estrangeira.

Uma sensibilidade mais fresca para o que é justo substitui muitas vezes a menor inclinação para a construção dogmática [4]. Isso, ao mesmo tempo que ajuda a entender a referência feita a Rocco por Francisco Campos, é um fato do qual deve-se ter consciência, pois a característica identificada constitui uma faca de dois gumes: considerar o que alguém entende como justo como razão válida para se afastar da legalidade é uma aposta arriscada na qual, normalmente, quem perde é o cidadão.

O menor apego ao texto legislativo por parte dos juízes e da doutrina constitui um problema para a efetividade dos direitos: a experiência do processo penal brasileiro é mais do que suficiente para demonstrá-lo, como, por exemplo, a decisão arbitrária do STF nas ADIs nº 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, que deu novos textos, por vezes contra legem, à grande parte das disposições introduzidas pela lei nº 13.964/2019, referentes ao processo acusatório, ao juiz das garantias, ao modelo de duplos autos e ao regime jurídico do arquivamento.

Por um lado, os juízes, apegados às tradições inquisitórias e às tendências corporativas, veem as novidades legislativas em matéria processual penal como um trauma — como também observava Franco Cordero na Itália do código Rocco em seus últimos dias — e, aplicando um mecanismo de defesa conhecido pelos psicólogos, eliminam o fator de perturbação fingindo que a novidade já estava presente no ordenamento e a ajustam conforme a necessidade de manter a estrutura original. Por outro lado, para explicar o processo penal e suas circunstâncias, a doutrina age frequentemente de maneira apologética em relação à jurisprudência, dando mais importância às decisões do que às disposições legais e às normas a elas relacionadas.

Como se legitimar uma jurisprudência cada vez mais criativa não bastasse, parte da doutrina desempenha um papel insidioso para a possibilidade de uma reforma acusatória em conformidade com a disciplina constitucional do Brasil: indecorosamente brincando com as palavras, muitos na doutrina definem o código de processo penal brasileiro, inspirado no código Rocco (no qual os autos do processo são formados pela mera acumulação de atos que o juiz do julgamento pode considerar como adequado na sentença), como acusatório. Isso é uma afronta à inteligência.

Talvez, na esteira de Liebman, possa-se interpretar essa falta de apego ao texto da lei escrita, na doutrina e na jurisprudência, como uma das razões mais relevantes para a excessiva longevidade do CPP. Enfim, manipula-se pela interpretação, mas quase sempre contra os réus, o que não é um bom sintoma. Quando se vai para as camadas mais altas da sociedade, tende-se a encontrar na lei, máxime na constituição, uma barreira; e se faz extravagâncias contra legem. Foi que o que se passou na “lava jato”.

Práticas

Nas práticas, em geral, as influências italianas já não são tantas. Viu-se, na operação “lava jato”, que ela foi determinante para a infeliz sorte política do país nos últimos anos. Os magistrados que a conduziram (em particular o ex-juiz Sergio Moro), procediam de forma declaradamente inspirada na Mani Pulite e, justamente por isso, eram, de certo modo, previsíveis em suas ações e aos observadores mais atentos.

Como se disse: a legalidade é inócua se aqueles que devem controlar os atos, de acordo com as hipóteses legais existentes no ordenamento jurídico, não o fazem como deveriam. Ora, os tribunais não realizaram o controle devido a tempo; e o que resta da “lava jato” hoje é a difundida desconfiança na Justiça penal. A “lava jato”, pois, não deveria ser exemplo para nada; a não ser que se queira mostrar como não se deve conduzir uma persecução penal.

Considerações conclusivas

Portanto, os formantes do modelo jurídico brasileiro sofreram influências variáveis dos formantes do modelo jurídico italiano. O tempo verbal empregado, infelizmente, torna-se cada vez mais adequado. Embora ainda se possa perceber as influências italianas nos formantes legislativos, gradualmente os italianos dão lugar aos estadunidenses e aos demais países da América Latina, que também possuem sistemas acusatórios.

Assim, nas imitações brasileiras, o protagonismo italiano está em declínio: cada vez mais tem-se a impressão que as pessoas preferem ir estudar nos Estados Unidos e não na Itália. O rumo do destino brasileiro torna-se cada vez mais particular. O hircocervo legislativo do Brasil está cada vez mais estranho e imprevisível; mas continua a serviço dos poderosos que controlam os seus mecanismos.

 

[*] apontamentos parciais das conferências proferidas no evento La circolazione del modello giuridico italiano in Brasile: dialoghi interdisciplinari. Università degli Studi di Milano, 16 de setembro de 2024.

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[1] Tradução livre de um trecho de FERRUA, Paolo. Franco Cordero e il processo accusatorio, conferência apresentada no congresso “Tra diritto, letteratura e storia: per Franco Cordero”, na Università degli Studi di Torino, em 12 outubro de 2023.

[2] Trata-se de um animal mitológico composto pela mistura de uma cabra e um cervo. A metáfora se encontra em: CORDERO, Franco. Procedura penale. 9º ed. Milano: Giuffrè, 1987, p. 1125-1126.

[3] Salvo no art. 30, do Código de Processo Penal Militar. Mesmo assim, a doutrina brasileira faz um grande esforço para afirmar a obrigatoriedade da ação penal no país, identificando as mais variadas fontes legislativas como fundamento. Para uma descrição do regime jurídico da ação penal no Brasil e de como se entende a obrigatoriedade da ação penal no Brasil, v. CUNHA SOUZA, Bruno. Escassez, Eficiência e Ação Penal Pública: entre a obrigatoriedade e a oportunidade no exercício da ação. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2023, p. 113-157.

[4] Tradução de, «[…] un minore attaccamento al testo legislativo di quanto non abbiano i giuristi europei, e una più libera interpretazione delle sue disposizioni nello sforzo di trovare una soluzione soddisfacente per ogni caso concreto, con largo ricorso al diritto comparato e alla dottrina straniera. Una più fresca sensibilità per ciò che è giusto sostituisce spesso la minore inclinazione alla costruzione dogmatica» LIEBMAN, Enrico Tullio. Problemi del processo civile. Napoli: Morano, 1962, p. 500.

Autores

  • é professor titular aposentado de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da UFPR (Universidade Federal do Paraná). Professor do programa de pós-graduação em Ciências Criminais da PUC (Pontifícia Universidade Católica) do Rio Grande do Sul. Professor do programa de Pós-graduação em Direito da Univel (Cascavel). Especialista em Filosofia do Direito (PUC-PR), mestre (UFPR); doutor (Università degli Studi di Roma "La Sapienza"). Presidente de Honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória. Advogado. Membro da Comissão de Juristas do Senado que elaborou o anteprojeto de reforma global do CPP, hoje Projeto 156/2009-PLS.

  • é doutorando em Direito Público na Università degli Studi di Roma, 'La Sapienza'.

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