Opinião

O marco concepcionista e a resistência simbólica ao STF

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  • é mestre em Ciências Jurídicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e doutorando em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) professor de Direito Constitucional e coordenador do curso de direito das Faculdades Doctum de Caratinga e coordenador do Núcleo de Estudos Realistas do Direito e membro do Observatório da Justiça Brasileira (OJB/UFRJ).

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22 de novembro de 2024, 18h29

Uma nova proposta de emenda à Constituição, trazendo de volta um velho e já conhecido tema, volta a ser discutida no Congresso: a inclusão da concepção como o marco inicial do direito à vida no artigo 5º da Constituição. Em 2015, uma proposta com o mesmo conteúdo foi apresentada no Senado [1], mas acabou sendo arquivada definitivamente em 2022 por não ter sido votada dentro do prazo estipulado pelo artigo 332, §2º, do Regimento Interno [2].

Agora, a questão retorna por meio da PEC 29 de 2024 [3], apresentada em 10 de julho pela bancada conservadora da Câmara dos Deputados. O tema reacende o debate entre grupos conservadores e progressistas, com forte apoio da bancada evangélica, marcando novamente a polarização em torno dos direitos reprodutivos e da proteção à vida desde a concepção.

Neste artigo, pretendo explorar duas hipóteses relacionadas à tramitação dessa PEC. A primeira analisa as implicações jurídicas que sua aprovação traria para o ordenamento brasileiro, considerando o histórico de decisões da Corte sobre o direito à vida e os direitos reprodutivos. A segunda hipótese sugere que a PEC não visa necessariamente à aprovação, mas opera como um instrumento narrativo da bancada conservadora no Congresso, funcionando como uma estratégia de oposição simbólica e ativa ao avanço do Supremo em temas relacionados aos direitos reprodutivos.

Primeira hipótese: desejadas implicações jurídicas da PEC 29 de 2024

A primeira grande decisão do STF envolvendo o direito à vida foi a ADI 3510, que, em 2008, validou as pesquisas com células-tronco embrionárias [4], previstas na Lei de Biossegurança. A corte, ao deliberar sobre o uso de embriões excedentes de fertilização in vitro, afirmou que esses não podem ser considerados sujeitos de direito no mesmo patamar que uma pessoa nascida, considerando a inexistência de atividade neural em estágios iniciais de desenvolvimento embrionário.

Essa decisão destacou o marco neurológico como referência para a proteção jurídica da vida. Posteriormente, em 2012, na ADPF 54, o STF avançou na discussão ao descriminalizar o aborto em casos de anencefalia [5]. O julgamento reconheceu que, nesses casos, a inviabilidade do feto para a vida extrauterina impede que ele seja equiparado a um sujeito pleno de direitos. Novamente, a corte reforçou que a proteção jurídica deve ser pautada por critérios científicos, como o desenvolvimento neurológico, em vez de abordagens puramente morais ou religiosas.

A Constituição não estabelece um marco inicial explícito para o direito à vida, deixando espaço para interpretações diversas. Documentos normativos como o Pacto de San José da Costa Rica e o Código Civil sugerem a concepção como marco de proteção de certos direitos, mas essa visão não é unânime. Divergem, por exemplo, as teorias que adotam a nidação (fixação do embrião no útero), o desenvolvimento (marcos biológicos progressivos) e a teoria neurológica, que vincula o início da proteção jurídica ao surgimento de atividade cerebral, espelhando a definição de morte no ordenamento jurídico pela Lei de Transplantes.

Spacca

O STF, alinhado com fundamentos científicos, tem adotado o marco neurológico em suas decisões. Essa escolha, além de impactar diretamente as pesquisas biomédicas, tem implicações importantes sobre a interpretação do aborto, que, no Brasil, carece de uma definição legal clara sobre o momento da gestação em que passa a ser considerado crime. Pelos precedentes da corte, o período de 12 semanas desponta como um parâmetro provável, já que é nesse ponto que se inicia o desenvolvimento significativo da atividade cerebral.

A aprovação da PEC 29 poderia apresentar uma mudança substancial no ordenamento jurídico. Em primeiro lugar, ela configuraria uma tentativa explícita de revisão das decisões já consolidadas pelo STF, como a autorização para pesquisas com células-tronco embrionárias e o aborto de fetos anencéfalos. Com a fixação da concepção como o marco inicial do direito à vida, esses precedentes poderiam ser reinterpretados ou até invalidados, estabelecendo um novo entendimento quanto à proteção jurídica.

Outro impacto que a PEC poderia resultar seria criminalização da interrupção voluntária da gestação desde a concepção, configurando crime de aborto em qualquer etapa, inclusive nos casos hoje autorizados, como gravidez decorrente de estupro, risco à vida da gestante ou anencefalia, gerando forte insegurança jurídica para profissionais da saúde e pacientes. Embora a exposição de motivos afirme que “a proposta não interfere no direito ao chamado aborto legal já garantido por décadas em nosso sistema penal”, a redação sugerida pela PEC não traz a mesma clareza.

Ao incluir, como um aposto ao direito à vida previsto no artigo 5º, a expressão “desde a sua concepção”, sem mencionar explicitamente exceções, a proposta abre margem para interpretações que coloquem em risco os direitos atualmente assegurados, ampliando a abrangência da proibição e criando incertezas sobre a continuidade das permissões previstas na legislação penal.

Além disso, a aprovação da PEC poderia influenciar debates futuros sobre o aborto, direcionando o Judiciário e o Legislativo a adotar uma postura mais restritiva. Essa mudança não seria apenas uma questão normativa, mas também um reflexo de um realinhamento moral e ideológico no campo jurídico, com possíveis consequências para outras questões éticas e científicas.

A PEC 29 de 2024 não apenas propõe incluir a concepção como marco inicial do direito à vida na Constituição, mas também desafia diretamente o entendimento consolidado do STF sobre o tema. Suas implicações vão além do texto constitucional, potencialmente revisando decisões anteriores, restringindo direitos reprodutivos e impondo novos limites à autonomia individual e às pesquisas científicas. Trata-se, portanto, de uma proposta que transcende o âmbito jurídico, simbolizando um embate entre diferentes visões de sociedade e de proteção à vida.

Segunda hipótese: arma simbólica do Parlamento

Já citei anteriormente que o conteúdo da PEC 29 não é novo, e que já foi objeto de outra proposição há quase dez anos. A proposta é idêntica àquela apresentada em 2015 e que acabou caducando, e volta a ocupar o debate legislativo sem uma perspectiva clara de aprovação. O que, então, justifica essa insistência em um tema que parece destinado ao não consenso e, provavelmente, ao esquecimento?

Para entender essa insistência, é necessário ir além da simples intenção de aprovação da PEC e enxergar seu papel como uma estratégia política. A proposta, mais do que um texto normativo, funciona como uma arma simbólica, destinada a marcar posição e exercer pressão institucional.

Pelo termo “armamento simbólico”, quero me referir ao uso de iniciativas legislativas ou ações políticas não com o propósito principal de alcançar um resultado prático imediato, mas para sinalizar intenções, consolidar narrativas e influenciar o ambiente político. No caso da PEC 29, seu objetivo parece ser menos a aprovação concreta da proposta e mais uma resposta direta ao contexto jurídico atual. Essa estratégia reforça o papel da PEC como uma ferramenta de mobilização política, evidenciando que a insistência não está no conteúdo normativo em si, mas no efeito simbólico que ele gera.

A proposta ressurge em um momento estratégico: enquanto a ADPF 442 está em análise no Supremo Tribunal Federal. Essa ação, sob pedido de vista [6], já conta com um voto favorável da ex-ministra Rosa Weber, que se posicionou pela descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação [7]. A ADPF 442, apresentada pelo PSOL, questiona os artigos do Código Penal que criminalizam a interrupção da gestação, argumentando que eles violam os direitos fundamentais das mulheres, como dignidade, liberdade e saúde.

O armamento simbólico representado pela PEC 29 atua como uma espécie de backlash — uma reação política e cultural contra avanços percebidos como ameaças. Contudo, neste caso, o backlash não se coloca contra uma decisão já tomada, mas antecipa-se a ela. É uma forma de constrangimento institucional, uma mensagem clara de que o Legislativo está atento e pronto para reagir caso o STF avance na descriminalização do aborto.

Essa antecipação funciona como um mecanismo de resistência dos setores conservadores, demonstrando que o Congresso está disposto a se posicionar em temas que tocam valores morais sensíveis. Trata-se de um jogo político que, mesmo sem alterar a Constituição, já gera efeitos simbólicos e práticos. A PEC sinaliza um Congresso mobilizado, disposto a atuar como contrapeso às decisões progressistas do STF, especialmente em matérias de direitos reprodutivos.

A PEC 29 de 2024 não precisa ser aprovada para alcançar seu objetivo político. Seu valor reside na narrativa que constrói, reafirmando a influência de setores conservadores no Parlamento e exercendo pressão sobre os ministros do STF. Esse armamento simbólico, por si só, já produz efeitos jurídicos e políticos práticos. Ele fortalece o discurso de resistência, consolida alianças entre parlamentares conservadores e cria um ambiente de maior pressão sobre o Judiciário.

Além disso, a proposta funciona como uma ferramenta de comunicação com a base eleitoral conservadora, reforçando a ideia de que seus representantes estão na linha de frente da defesa de valores tradicionais. Esse efeito mobilizador não pode ser desconsiderado, em um momento em que os temas relacionados à moralidade continuam a dividir profundamente a sociedade brasileira.

 


[1] BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição nº 29 de 2015. Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pec-29-2015-sf. Acesso em: 23 set. 2024.

[2] O Regimento Interno do Senado Federal prevê que proposições em tramitação por duas legislaturas serão automaticamente arquivadas, exceto se houver um requerimento assinado por um terço dos senadores, dentro do prazo de 60 dias após o início da primeira sessão legislativa da legislatura seguinte ao arquivamento, solicitando a continuidade da tramitação. Caso o desarquivamento seja aprovado pelo Plenário, a proposição retorna à tramitação. Contudo, se a proposição desarquivada não tiver sua tramitação concluída durante essa legislatura, será arquivada definitivamente ao final dela. Esse procedimento está descrito no art. 332, §§ 1º e 2º, do Regimento Interno do Senado Federal, Disponível em: https://www25.senado.leg.br/documents/12427/45868/RISF+2018+Volume+1.pdf/cd5769c8-46c5-4c8a-9af7-99be436b89c4 . Acesso em: 23 set. 2024.

[3] BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição nº 29 de 2024. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2448752. Acesso em: 23 set. 2024.

[4] Supremo Tribunal Federal. Plenário do STF começa julgamento da ADPF 442 sobre descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=89917&ori=1. Acesso em: 18 nov. 2024.

[5] CONJUR. STF acertou ao descriminalizar aborto de anencéfalos. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-dez-18/stf-acertou-descriminalizar-aborto-anencefalos. Acesso em: 18 nov. 2024.

[6] G1. Barroso pede destaque, e votação sobre descriminalização do aborto é suspensa. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/09/22/barroso-pede-destaque-e-votacao-sobre-descriminalizacao-do-aborto-e-suspensa.ghtml. Acesso em: 18 nov. 2024.

[7] Supremo Tribunal Federal. Relatora vota pela descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação na ADPF 442. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=514619&ori=1#:~:text=Relatora%20vota%20pela%20descriminaliza%C3%A7%C3%A3o%20do,do%20ministro%20Lu%C3%ADs%20Roberto%20Barroso. Acesso em: 18 nov. 2024.

Autores

  • é mestre em Ciências Jurídicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), doutorando em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor de Direito Constitucional, coordenador Geral de Ensino nos Cursos de Direito da Rede de Ensino Doctum-MG e do Núcleo de Estudos Realistas do Direito (Nerd) e membro do Observatório da Justiça Brasileira (OJB-UFRJ).

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