Opinião

Foro especial por prerrogativa de função: proteção funcional ou erosão republicana?

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  • é advogado criminalista professor de Direito Penal e Processo Penal mestrando em Direito pela Universitat de Girona especialista em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).

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22 de novembro de 2024, 20h42

O foro por prerrogativa de função transcende sua natureza como norma de competência. Trata-se de uma proteção institucional destinada a salvaguardar a independência e o equilíbrio das instituições republicanas, indo além da figura do agente público.

Carlos Moura/SCO/STF

No julgamento do HC 232.627 e do Inq 4.787, em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), o tema é reposicionado no centro do debate jurídico. A tese discutida busca garantir que crimes funcionais permaneçam sob a jurisdição dos tribunais superiores, mesmo após o término do mandato, com prevalência, até o momento, da ideia de manutenção do foro nessas circunstâncias, desde que os crimes tenham sido cometidos no exercício e em razão do cargo. O julgamento já conta com maioria formada em favor dessa tese, mas encontra-se suspenso por pedido de vista do ministro Nunes Marques, com um placar provisório de 6 votos a 1.

Desde a decisão proferida na Ação Penal 937, em 2018, o foro foi limitado a delitos praticados durante o mandato e em conexão com as funções do cargo, determinando o deslocamento para a primeira instância ao término da função pública. Embora bem-intencionada, essa interpretação revelou fragilidades, como a instabilidade processual e a possibilidade de instrumentalização da jurisdição como estratégia de defesa, retardando o andamento dos processos.

O voto do relator, ministro Gilmar Mendes, destacou que essa “flutuação de competências” compromete a segurança jurídica e vulnera o princípio da duração razoável do processo, consagrado no artigo 5º, LXXVIII, da Constituição.

A nova tese apresentada reconhece que os crimes funcionais possuem vínculo indissociável com o exercício do cargo, justificando sua manutenção sob a jurisdição superior, mesmo após o término do mandato. Nesse contexto, a prerrogativa de foro não deve ser compreendida como privilégio pessoal, mas como garantia de julgamento imparcial, resguardado de pressões locais que podem comprometer a autonomia do Judiciário.

Salvaguarda institucional

A evolução histórica do foro por prerrogativa de função confirma sua relevância como salvaguarda institucional. A decisão proferida no Inquérito 687, em 1999, ao cancelar a Súmula 394, visou corrigir distorções no sistema, mas também abriu margem para interpretações que fragilizaram a proteção de agentes públicos em situações de elevada sensibilidade. Exemplos como a renúncia estratégica do então deputado Natan Donadon evidenciam os riscos associados ao deslocamento abrupto de competência, com a potencial manipulação da jurisdição para evitar decisões de mérito por tribunais superiores.

Nesse sentido, a prerrogativa de foro protege não o agente público, mas a própria função pública. Como argumentado no voto relator, a transferência de processos para instâncias locais expõe autoridades a pressões que comprometem a imparcialidade do julgamento e a segurança jurídica. Autoridades públicas frequentemente desafiam interesses regionais de grande peso, reforçando a necessidade de que o julgamento ocorra em tribunais superiores, que oferecem maior isenção.

Spacca

A teoria hermenêutica de Hans-Georg Gadamer, ao enfatizar que a interpretação jurídica deve considerar os horizontes de sentido que estruturam o direito, é particularmente pertinente nesse debate. A prerrogativa de foro, nesse contexto, emerge como uma garantia de estabilidade institucional, coerente com o pacto republicano e com os valores constitucionais que protegem o processo de influências externas (GADAMER, 1997, p. 274).

Críticas à ampliação do foro, fundamentadas na ideia de privilégio pessoal, desconsideram a lógica que embasa a tese em julgamento. A prerrogativa é restrita aos crimes relacionados ao exercício do cargo, não configurando um alargamento de privilégios, mas a garantia de que a jurisdição mais apropriada analise as condutas funcionais.

Além disso, essa interpretação corrige distorções resultantes da decisão de 2018, que fragmentou processos e comprometeu a celeridade e a coerência processual. Manter o foro em casos de crimes funcionais assegura que a jurisdição não seja instrumentalizada para atrasos ou manipulações, permitindo que o processo judicial cumpra sua função de maneira justa e eficaz.

Julgamento independente

O julgamento do HC 232.627 reafirma o papel do STF como guardião da estabilidade constitucional. A ampliação da prerrogativa de foro, limitada aos limites estabelecidos, não representa afronta ao princípio republicano, mas o fortalece ao garantir que o julgamento de agentes públicos ocorra de forma independente, longe de pressões externas. Como ensina Ronald Dworkin, a integridade do direito exige que o foro seja entendido como uma proteção contra o desvirtuamento do processo judicial (DWORKIN, 2010, p. 225).

Em um contexto de polarização política e desconfiança nas instituições, a preservação do foro por prerrogativa de função para crimes funcionais simboliza o compromisso com a estabilidade das regras do jogo democrático. Mais do que conferir privilégios, trata-se de proteger a ordem jurídica contra desvios que possam enfraquecer a confiança da sociedade no Estado de direito. Ao decidir pela ampliação nos moldes propostos, o STF resgata o sentido originário do foro e reafirma que a justiça deve ser conduzida com imparcialidade e estabilidade, conforme determina a Constituição.

Preservar a prerrogativa de foro para crimes funcionais, portanto, é mais do que uma escolha técnica: é um compromisso inegociável com a integridade do sistema de Justiça, garantindo que a independência e a estabilidade das instituições prevaleçam sobre as pressões e o sabor de interesses circunstanciais.

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Referências Bibliográficas

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 225.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 274.

Autores

  • é advogado criminalista, professor de Direito Penal e Processo Penal, mestrando em Direito pela Universitat de Girona, especialista em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).

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