Opinião

Direito fundamental à prova

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  • é advogado formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF) professor da Escola de Administração Judiciária do TJ-RJ especialista em Direito Constitucional e Ciências Penais e Direito e Administração Pública além de autor do livro 'Assédio Moral no Serviço Público (Violação da Dignidade Humana)' e outras obras.

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22 de novembro de 2024, 9h25

Comento aqui uma decisão novíssima, na ação rescisória nº 0069342-30.2022.8.19.000, em 8 de novembro de 2024, da Seção de Direito Privado, do TJ-RJ. Trata-se de uma crítica epistemológica que, aliás, deve sempre ser feita pela doutrina, academia e advogados. A propósito, cabe à doutrina encontrar respostas adequadas à Constituição.

Por isso, é preciso, sim, debater com o Poder Judiciário, que é o guardião dos direitos fundamentais. Mas é preciso coragem para se opor aos equívocos que os tribunais dizem.

É preciso que acordemos do pesadelo do negacionismo jurídico. Não se pode jamais afrontar a Constituição. Não dá para ficar em cima do muro. Direito é escudo e lança!

Spacca

Não bastasse, em regra, o “copiar e colar” das decisões, sentenças e acórdãos e a resposta padrão nos embargos de declaração, recurso especial e recurso extraordinário. Incrível: o juiz não erra. O causídico nunca tem razão.

É um faz-de-conta de que há fundamentação…

Vejam, então, o imbróglio, o qual trago à baila pelo simbolismo. A questão de fundo é a violação de uma garantia constitucional: direito à prova. Não dá para passar batido. Está em jogo a democracia.

Entenda o caso

A demandante requereu o depoimento pessoal de uma parte (prova nova) para que fosse ouvida na ação rescisória, pois havia relevância e pertinência da sua oitiva e, também, necessidade de esclarecer e jogar luz em fatos relevantes.

Como é sabido, na ação rescisória, observar-se-á, no que couber, o procedimento comum (artigo 970 CPC), e cabe à parte requerer o depoimento pessoal da outra parte a fim de que esta seja interrogada (artigo 385 do CPC).

Sendo mais claro: isso importa dizer que o artigo 385 do CPC aplica-se a ação rescisória.

Além do que, na ação rescisória, se os fatos alegados pelas partes dependerem de prova, o relator poderá delegar a competência ao órgão que proferiu a decisão rescindenda, fixando prazo de um a três meses para a devolução dos autos (artigo 972 do CPC).

Alguma dúvida?

Uma coisa importante: na fundamentação da apelação civil, da ação declaratória de união estável, rescindenda, o relator aduz:

“A narrativa de que o casamento com (…) teria perdurado por apenas um mês não é crível (…) “Assim, não está claro quando houve a separação de fato indispensável ao reconhecimento da união estável.”

É sempre assim: não é crível a meu sentir… Ora, isso é juízo moral. Subjetivismo e achismo que rimam com ativismo que, por sinal, faz prevalecer o desejo do julgador e não a vontade da Constituição e a lei.

Não obstante, a decisão do relator gerou imensa perplexidade:

“Outrossim, não vejo necessidade da tomada do depoimento do Sr. (…) por considerá-la desnecessária, já constando dos autos prova suficiente dos fatos em discussão.”

Indago: não há necessidade? Prova suficiente? Como assim? E a garantia constitucional? Começa por aí o problema. Nada de novo. Se vê muito dessas decisões todos os dias.  Há uma violação escancarada ao direito fundamental à prova.

Triste. Decide-se contrariamente à Constituição! É o arbítrio judicial!

Partes são titulares de direito subjetivo de produzir prova relevantes

É de uma obviedade óbvia que, pela engenharia constitucional, as partes são titulares de direito subjetivo de produzir prova que lhes pareçam relevantes. Não cabe ao Estado-juiz meter a colher, dizendo que “não vejo necessidade do depoimento por considerá-la desnecessária”.

Apesar do grande poder que o magistrado tem, jamais poderá impedir um depoimento pessoal. Juiz não pode ser protagonista. Querer ser o dono do mundo. Não há discricionaridade. Caso contrário, será despotismo judicial!  Às vezes, deveriam calçar as sandálias das humildades.

Ora, a prova é de todo mundo! Deixa a testemunha falar! Qual o problema?

Vale lembrar que a seção civil do TJ-RJ tem mais 14 julgadores. Logo, a oitiva da parte pode, sim, ajudar no convencimento do relator e dos outros desembargadores, não é?

Fundamentação deficitária

Com a cordialidade e respeito de sempre, permito-me discordar do relator. Há um grande equívoco na sua decisão. Por que? Primeiro, porque é, sim, uma decisão com fundamentação deficitária. Aliás, com três linhas, a qual pode servir para qualquer decisão.

Segundo: fundamentar uma decisão envolve explicar por a + b, o porquê. Por que não há necessidade da prova? Por que há prova suficiente? Porém, nada disso foi explicado.

Aliás, a fundamentação completa das decisões não é favor. É dever! É uma garantia do cidadão na democracia! Não basta dizer, “já constando dos autos prova suficiente dos fatos em discussão”, como diz o relator.

Terceiro, quais seriam as provas suficientes? Pois é. A “fundamentação” não diz. É omissa!

Quarto, e última, constatação: é de uma obviedade óbvia que: as partes caberá pedir a produção de provas que lhes pareçam relevantes, pois, como falado, são titulares do direito subjetivo de produzir prova, não é?

Explico: não se pode jamais impedir a parte de produzir prova que, em tese, poderia comprovar seu direito.

Isso tudo nos leva à pergunta de 1 milhão de dólares: as supostas “provas suficientes” alegadas pelo relator são favoráveis à parte autora, podendo justificar uma decisão que a beneficie?

Ou será o julgamento antecipado, vale dizer, um pré-julgamento, com o “livre convencimento”?

Pode uma decisão ser “fundamentada” no livre convencimento? Procurei no CPC. Não encontrei nada. No artigo 371 do CPC não existe a palavra livre.

Verdade seja dita, decidir de acordo com o livre convencimento não é decidir conforme a Constituição e a lei. Em nome da ficção do livre convencimento milhares de pessoas estão perdendo direitos!

Do direito fundamental à produção da prova

A Constituição garante à ampla defesa, o contraditório (artigo 5º LV) e o devido processo legal (artigo 5º LIV), o qual teve origem no artigo 39 da Magna Carta de 1215, assinada pelo rei João Sem-Terra. Essas garantias foram conquistadas com muita luta, ferro e fogo.

A propósito, sempre com todo o respeito, os tribunais não podem deixar de aplicar leis sem fazer jurisdição constitucional. Não existe a alternativa “não concordo com o legislador”, como fala o genial professor e jurista Lenio Streck [1].

Assim, há o direito subjetivo inafastável à prova; imprescindível à solução justa do litígio. Não há o mais ou menos. Não vale a ladainha de que não é necessária à prova. Ponto final.

À vista disso, a decisão proferida está, sim, na contramão das garantias constitucionais do direito à prova. É um escancarado cerceamento de defesa. Isso gera nulidade absoluta.

Em outro caso, no TJ-RJ, olha o problema-dos grandes, onde a fundamentação da decisão foi a seguinte:

“Indefiro a prova pericial requerida, por desnecessária. A mídia acautelada em Cartório demonstra plenamente não ter o autor conseguido cumprir as exigências do Edital.”

Inacreditável. Vem sempre a palavra mágica “desnecessária”. Muito pelo contrário. A mídia acautelada no cartório mostrava que o candidato cumpriu às exigências do edital fazendo 53 abdominais, no tempo de 1 minuto, vale dizer, bem além dos 40 abdominais determinados pelo edital, estando, assim, por óbvio aprovado.

É assustador ver decisões como essas. Dá um arrepio na alma. Não são pontos fora da curva. Expõe o tamanho do problema. E a doutrina? Quem se preocupa por isso?

Mas existe coisa boa no direito. Uma ótima notícia. O professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e desembargador Luiz Roldão de Freitas Gomes Filho, no Agravo de Instrumento nº 0004672-46.2023.8.19.0000, deu uma aula de direito constitucional processual ao juízo, que indeferiu a prova pericial, mandando chamar o VAR. Observem:

“Com efeito, a Constituição da República estabelece como garantia fundamental o acesso à justiça (art. 5º, XXXV CRFB), que se materializa por meio da adequada prestação jurisdicional assegurado o devido processo legal. Nesse diapasão, a busca da verdade real é corolário do princípio do devido processo legal, como instrumento necessário para que se concretize o acesso à ordem jurídica justa. Assim, não se pode fazer justiça sem entender, com segurança, o quadro fático trazido à consideração do órgão judicante. Na medida em que a justiça da prestação jurisdicional se vincula ao compromisso do processo com a verdade real, e a essa só se chega mediante a instrução probatória, ao julgador é lícita a determinação de produção de provas a fim de que o conjunto probatório resulte completo.”

Da relevância probatória do depoimento pessoal

A principal finalidade do depoimento pessoal, como meio de prova, consiste em obter esclarecimentos e/ou a confissão sobre fatos relevantes à solução justa da causa.

Desse modo, esse meio de prova é de grande utilidade à boa instrução processual. Cumpre trazer, neste ponto, a doutrina do professor Alexandre Câmara [2]:

“Sendo juiz e partes destinatários da prova, a todos eles são reconhecidos a existência de poderes de iniciativa instrutória. Às partes evidentemente caberá postular a produção de provas que lhes pareçam relevantes, pois é delas o direito material em debate e, por isso, são titulares de interesse de produzir prova.”

Todos são destinatários da prova

Conforme leciona o desembargador Alexandre Câmara [3]:

“A prova possui dois tipos de destinatários: um destinatário direto, o Estado-juiz, e destinatários indiretos, as partes. A prova levada aos autos, pertence a todos, isto é, pertence ao processo, não sendo de nenhuma das partes (o que costuma ser chamado de “princípio da comunhão da prova”. (…) Na verdade, a prova tem por destinatários todos os sujeitos do processo (FPPC, Enunciado nº 50: “os destinatários da prova são aqueles que dela poderão fazer uso, sejam juízes, partes ou demais interessados, não sendo a única função influir eficazmente na convicção do juiz.”

Por outras palavras, todos atuam com o mesmo fim, qual seja, um processo justo. Uma Justiça justa. Em consequência, a atividade probatória deve ser destinada ao processo para que haja o melhor debate. Em consequência, o destinatário da prova não é somente o juiz.

Conclusão

O juiz jamais pode indeferir a produção de provas que achar desnecessárias, impertinentes e irrelevantes, ao seu bel-prazer, com subjetivismo e livre convencimento.

A prova é de todo o mundo! A prova pertence ao processo!

Há o direito subjetivo à prova pelas partes, pois é delas o direito material em debate. Logo, o destinatário da prova não é somente o juiz. Todos têm poderes de iniciativa instrutória!

Não se pode impedir a parte de produzir prova que, em tese, poderia comprovar seu direito. É óbvio que essas decisões não passam por uma filtragem hermenêutica-constitucional. Cabe à doutrina encontrar respostas adequadas à Constituição.

Por favor, não altere a Constituição tanto assim! Mais respeito às garantias! Isso é pedir muito?

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Referências

[1] https://www.conjur.com.br/2024-mai-23/tst-legisla-e-tj-sp-explica-prisao-de-170-anos-por-livre-convencimento/

[2] [3] CÂMARA, Alexandre Freitas, Manual de Direito Processual Civil, 2023, p.416/417, Gen/Atlas)

Autores

  • é advogado, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Escola de Administração Judiciária do TJ-RJ, especialista em Direito Constitucional e Ciências Penais e Direito e Administração Pública e autor do livro Assédio Moral no Serviço Público (Violação da Dignidade Humana).

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