Opinião

A voz do defensor público da criança no Protocolo de depoimento especial do CNJ

Autor

  • é defensor público do estado do Maranhão assessor de ministra do Superior Tribunal de Justiça membro da Comissão Criminal do Condege e especialista em Direito Constitucional.

    Ver todos os posts

22 de novembro de 2024, 7h02

123RF

A ministra aposentada Rosa Weber, no exercício da Presidência do Conselho Nacional de Justiça, instituiu, por meio da Portaria 359, de 11 de outubro de 2022, grupo de trabalho, com o escopo de elaborar protocolo para o depoimento especial de crianças e adolescentes nas ações de família em que se discuta alienação parental.

Em virtude da morte do então coordenador, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, o citado grupo de trabalho passou, nos termos da Portaria 123/2023 do CNJ, a ser coordenado pela ministra Nancy Andrighi, contando com o conselheiro do CNJ João Paulo Shoucair como coordenador-adjunto.

Por meio das Portarias/CNJ 160/2023, 168/2023 e 194/2023, o referido GT passou a contar com representantes de todas as instituições do sistema de Justiça e de equipes técnicas que auxiliam o Poder Judiciário, fato que proporcionou uma visão plural e panorâmica acerca do tema e viabilizou que os debates fossem realizados à luz da doutrina contemporânea produzida sobre a matéria e da realidade vivenciada nas mais distantes comarcas do nosso país.

As reuniões promovidas pelo grupo, juntamente com consulta pública realizada no sítio do CNJ e análise de dados encaminhados pelos Tribunais de Justiça, levaram ao estabelecimento de diretrizes gerais, específicas e, inclusive, de roteiro para a oitiva de crianças e adolescentes, a fim de que esse ato processual possa contribuir para o esclarecimento dos fatos apurados em Juízo, sem o risco de causar danos aos depoentes.

O grupo de trabalho apresentou texto final do protocolo, que foi submetido à deliberação pelo plenário do CNJ, que, por unanimidade, aprovou o documento, em sessão realizada no dia 17 de setembro de 2024.

No dia 3 de outubro 2024, foi editada a Recomendação 157/2024 [1], na qual o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do CNJ, orienta que o mencionado protocolo poderá ser adotado no âmbito de todos os órgãos do Poder Judiciário brasileiro, nas ações de família em que se discuta alienação parental.

Recomendações em audiências

De acordo com o protocolo [2], o agendamento das audiências de depoimento especial deverá respeitar o tempo mínimo de uma hora para cada caso, a fim de que todas as etapas previstas no documento sejam cumpridas.

Recomenda-se que seja limitada a quantidade de entrevistas para cada turno de trabalho, evitando que a fadiga e o estresse da autoridade judiciária e do profissional capacitado no Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense (PBEF) interfiram na condução do procedimento, viabilizando que a criança e o adolescente possam exprimir sua opinião em um ambiente e linguagem adaptados à sua cognição e condições emocionais.

Spacca

O documento afirma que deve ser assegurado à criança ou ao adolescente, sempre que possível, o contato inicial com o profissional especializado, a fim de que seja analisada qualquer circunstância que possa desaconselhar a tomada do depoimento especial, em razão do estado emocional, do nível de desenvolvimento cognitivo e da capacidade do menor de se expressar e fornecer informações.

O uso do ponto eletrônico pelo entrevistador para comunicação com a sala de audiência é obrigatório desde o início do ato, de modo a manter a comunicação com o juiz durante todo o ato processual, sendo vedado deixar a criança ou o adolescente sozinhos ou desassistidos na sala reservada ao depoimento.

Conforme disposto na introdução do documento, as diretrizes para o depoimento especial de crianças e adolescentes em processos de família contribuem para a materialização do macrossistema da proteção integral e visam a “[…] tornar mais simples, recorrente e eficaz a possibilidade de que as pessoas em desenvolvimento contribuam para a solução dos conflitos que lhes afetam diretamente e que, não raro, recebem uma instrução e uma decisão judicial adultocêntricas”.

Em caso de não realização de depoimento

Da leitura do item 4.7 do citado protocolo, extrai-se que, havendo recomendação para a não realização do depoimento especial, o caso deve ser objeto de perícia/estudo psicossocial ou biopsicossocial, “[…] hipótese em que deverá ser oportunizada a apresentação de quesitos pelas partes e pelo Ministério Público, recomendando-se a apresentação de quesitos por parte da Defensoria Pública, nos termos do artigo 4°, XI, da LC 80/94, dos artigos 88, VI e 141, ambos da Lei 8.069/90 e dos fundamentos utilizados no REsp 1.854.842/CE (3ª Turma, relatora ministra Nancy Andrighi, DJe 4/6/2020) e no RMS 70.679/MG (6ª Turma, relatora ministra Laurita Vaz, DJe 7/11/2023)”.

Neste ponto, verifica-se que o Conselho Nacional de Justiça promoveu um avanço significativo na tutela dos direitos das pessoas em desenvolvimento, viabilizando que a Defensoria Pública, mesmo quando não preste assistência jurídica a qualquer das partes, possa intervir assumindo a posição de guardiã dos hipervulneráveis (crianças e adolescentes), formulando quesitos e contribuindo para o aprimoramento da prestação jurisdicional.

Tal postura vai ao encontro do entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento dos retrocitados julgados, oportunidade em que o Tribunal da Cidadania decidiu ser necessária a construção de decisões em ambiente colaborativo e democrático, por meio da participação ativa da Defensoria Pública, que, prestando assistência jurídica plena, promove os direitos humanos e tutela os direitos individuais do citado segmento da população [3].

Conforme destacado pela relatora ministra Laurita Vaz, nos autos do RMS 70.679/MG (recurso em que se questionava a atuação de magistrado que, de ofício, intimava a defensoria pública para assistir crianças vítimas de violência nos procedimentos de escuta especializada):

“É importante destacar que a integração operacional entre os órgãos do sistema de justiça tem como um de seus objetivos evitar que a ineficiência de qualquer um desses órgãos comprometa o atendimento célere e diligente que deve ser dispensado às crianças e adolescentes […]. […]

A intervenção da Defensoria Pública tem se mostrado essencial na proteção integral das crianças e adolescentes, razão pela qual deve ser compreendida como parte integrante do conjunto de ações “indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do adolescente.”

Papel da Defensoria

Observa-se que a atuação defensorial, nas ações de que cuida a referida recomendação, está em sintonia com o disposto no artigo 6° do CPC, no artigo 227 da CF/88 e concretiza o paralelismo existente entre o Ministério Público e a Defensoria Pública, “[…] instituições essenciais à função jurisdicional do Estado que atuam na defesa da sociedade, sem desbordar do espírito do Constituinte de 1988”, conforme trecho de voto proferido pela relatora ministra aposentada Rosa Weber, nos autos da ADI 5.296/DF [4].

O protocolo materializa o instituto do defensor público da criança, permitindo a potencialização da voz das pessoas em desenvolvimento, sujeitos de direito que são os protagonistas das demandas de família que versam sobre suposta prática de alienação parental.

Dissertando sobre o tema, Maurilio Casas Maia [5] afirma que “[…] o defensor público Integral da Criança instrumentaliza a representação da criança frente ao Poder Judiciário e à vontade de outras instituições — inclusive da própria Defensoria e do Ministério Público —, pois a criança não pode mais ser encarada, em pleno século 21, como se fosse ‘mera destinatária’ de provimentos jurisdicionais, ‘sem fala’, ‘muda'”.

Direito da criança

Nesse sentido, Gustavo Cives Seabra [6] assevera que “a novidade do ‘defensor da criança’ está na defesa da vontade da própria criança. Ou seja, trata-se de um corolário da doutrina da proteção integral que visa dar voz ao posicionamento de crianças e adolescentes”.

Na mesma toada, o artigo 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança (tratado que foi internalizado no ordenamento jurídico pátrio pelo Decreto 99.710/90) prevê que a criança tem o direito de expressar suas opiniões sobre os assuntos relacionados a si próprias e o direito de ser ouvida em todo processo (judicial ou administrativo) que a afete, quer por “por intermédio de um representante ou órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais da legislação nacional”.

Constata-se, ainda, que a mencionada recomendação de oitiva da defensoria para apresentação de quesitos não se confunde com o munus de fiscal da lei exercido pelo Ministério Público, sendo relevante consignar que o parquet pode, inclusive, eventualmente divergir do interesse do incapaz, quando compreender que esse não se coaduna com a ordem jurídica [7].

Verifica-se, portanto, que o CNJ, ao editar a Recomendação 157/2024, alinhou-se ao atual entendimento do STJ e do STF sobre a conformação constitucional da Defensoria Pública [8], instituição que, a par de prestar assistência jurídica integral e gratuita aos hipossuficientes, promove os direitos humanos [9] e tutela, individual e coletivamente, os direitos dos hipervulneráveis [10] (vulneráveis etários, organizacionais, por migração etc), constituindo o mencionado ato normativo mais uma garantia em prol das crianças e dos adolescentes, na esteira dos compromissos assumidos internacionalmente nesse campo pela República.

 


[1] Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5777. Acesso em 6 nov. 2024.

[2] Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/compilado21571520241105672a94bb49a00.pdf Acesso em 6 nov. 2024

[3] Art. 4°, XI e XVIII, da LC 80/94; art. 141 da Lei 8.069/90

[4] ADI 5296, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 04-11-2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-280  DIVULG 25-11-2020  PUBLIC 26-11-2020

[5] MAIA, Maurilio casas. A Defensoria Pública enquanto custos vulnerabilis (DPCV) e defensor público integral da criança (DPIC): cooperação interinstitucional em tempos de pandemia (ou não) – Primeiras reflexões. In: Temas atuais de direitos da criança e do adolescente / Abdoral Cardoso Santos Junior [et al.]; Anderson Lincoln Vital da Silva, Maria Lenir Rodrigues Pinheiro, Maurilio Casas Maia (Org.). Thandra Pessoa de Sena (Coord.). – 1.ed. — São Paulo : Tirant lo Blanch, 2021. P. 172.

[6] SEABRA, Gustavo Cives. A defesa das crianças e adolescentes pela Defensoria Pública. In: Defensoria pública e a defesa constitucional de grupos vulneráveis/Adolfo Etienne [et al]. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2024. P. 164.

[7] REsp n. 135.744/SP, relator Ministro Barros Monteiro, Quarta Turma, julgado em 24/6/2003, DJ de 22/9/2003, p. 327.

[8] STP 1007 MC-Ref, Relator(a): LUÍS ROBERTO BARROSO (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 07-08-2024, DIVULG 16-08-2024,  PUBLIC 19-08-2024; ADI 6852, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 21-02-2022, PUBLIC 29-03-2022; RE 1240999, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 04-11-2021, DIVULG 16-12-2021  PUBLIC 17-12-2021.

[9] Art. 134, caput, da CF/88

[10] EREsp n. 1.192.577/RS, relatora Ministra Laurita Vaz, Corte Especial, julgado em 21/10/2015, DJe de 13/11/2015.

Autores

  • é defensor público do estado do Maranhão, chefe de gabinete de ministra do Superior Tribunal de Justiça, mestrando em Direito Constitucional (IDP), especialista em Direito Constitucional (Unisul), professor do LLM em Processo nas Cortes Superiores na Faculdade Mackenzie Brasília e ex-Assessor da Presidência do STJ e da Corregedoria Nacional de Justiça.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!