Opinião

Alteração legislativa que coloca em xeque a lei da liberdade econômica: foro de eleição

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  • é advogado no escritório Pádua Faria Sociedade de Advogados. Especialista em Direito Processual Civil pela USP e em Direito da Família e Sucessão pelo Cers. Cursando o LL.M. em Direito Societário pelo Insper.

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  • é advogado no escritório Pádua Faria Advogados graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Franca pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (Ibet) LLC em Direito Empresarial pelo Insper e mestre em Direito pela Unesp atuante.

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22 de novembro de 2024, 13h22

O Estado tem importante papel no fomento do empreendedorismo e na criação de um ecossistema nacional voltado para o desenvolvimento e incentivo aos negócios, ao passo que vem dele as leis que regem as relações empresariais. Nesse contexto, mostra-se essencial permitir a liberdade e autonomia das partes contratantes em suas atividades comerciais, possibilitando-as regramentos privados, específicos e eficientes, com único limite nas condições básicas morais, éticas e sociais.

Ao contrário disso, a edição de normas que impactam negativamente na fluidez e autonomia do funcionamento dessas relações comerciais, dando ao Estado o poder excessivo de intervencionismo, atrapalham a liberdade e o desenvolvimento econômico privado nacional e devem ser utilizadas com muita cautela e somente quando extremamente necessário para preservar algum bem social mais valioso

No Brasil, após a vigência do Código Civil brasileiro de 2002, ocorreu a unificação das obrigações civis e mercantis, logo, abrangendo as normas de direito empresarial/comercial, dando ao Estado certo controle sobre os contratos particulares, engessando a autonomia das partes nas definições de cláusulas privadas.

Contra esse paradigma centralizador, em 2019, a promulgação da Lei nº 13.874/19, a Lei da Liberdade Econômica, mitigou os efeitos dessa concentração, o que proporcionou e incentivou às relações empresariais e civis paritárias e a livre pactuação de suas vontades.

Até aqui, parecia que o ambiente de negócios no Brasil havia tomado um rumo voltado a privilegiar a autonomia das partes. Porém, recentemente, na contramão da inovação e do incentivo à liberdade contratual, os legisladores nacionais deram indícios da tomada de uma nova direção, novamente intervencionista e centralizadora.

Isso porque, no dia 5 de junho de 2024, foi publicada a Lei nº 14.879/24, que alterou o artigo 63 da Lei nº 13.105/15. Ele dispõe sobre o Código de Processo Civil brasileiro, que trata de disposição legal relativa à cláusula de eleição de foro (local em que deverá ser proposta eventuais ações judicias para resolução de eventuais conflitos provenientes do contrato), antes redigida e definida conforme a vontade das partes, passando, com a alteração legal, a ter sérias restrições, fixando o seguinte padrão obrigatório e intransponível: ou será o domicílio ou residência de uma das partes ou o local relacionado com a obrigação, sob pena de ser considerada uma pactuação abusiva.

Spacca

Tal alteração foi feita única e exclusivamente sob a justificativa de uma suposta melhor distribuição e controle dos processos judiciais nos estados a fim de não sobrecarregar os tribunais que possuem melhor desempenho e maior velocidade de tramitação, que, buscando as partes usufruir dessas características, são alvos de “enxurrada” de ações sem qualquer vínculo com suas respectivas regiões de atuação [1].

Varas especializadas em direito empresaria

Apesar dessa preocupação organizacional, o legislador virou as costas para a autonomia das partes e da busca dos empresários por magistrados especializados em direito empresarial, que possui diversas peculiaridades e especificidades relevantes, que dão a possibilidade de melhor e mais justa análise sobre o caso.

É amplamente difundido e incentivado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que os Tribunais de Justiça dos estados adotem a criação de varas especializadas em matérias de direito empresarial [2], a fim de atribuir tal função a magistrados capacitados e especializados, que tratarão do assunto diuturnamente, lhes garantindo ainda mais vivência na matéria, conforme indicado no “considerando” da Recomendação CNJ nº 56/2019:

CONSIDERANDO que estudos indicam que as varas especializadas em recuperação empresarial e falência são significativamente mais eficientes na condução de processos afetos à matéria do que as varas de competência comum cumulativa;

Prova disso é que o Tribunal de Justiça de São Paulo, em outubro de 2023, concluiu a criação de varas regionais especializadas que abrangem todo seu território. E, conforme relato do desembargador Ricardo Mair Anafe, presidente do TJ-SP à época [3]:

A segurança jurídica é peça-chave para o ambiente de negócios. Cabe ao Judiciário conferir estabilidade e previsibilidade às relações, contribuindo, assim, para a eficiência operacional do mercado. E a especialização da jurisdição exerce papel central nesse processo, ao assegurar padronização de rotinas cartorárias e menor variabilidade decisória.

Porém, essa não é a realidade dos demais tribunais nacionais que muitas vezes só possuem varas especializadas em suas capitais.

E é exatamente por isso que a modificação legislativa ora analisada é um forte freio ao desenvolvimento econômico, notadamente quanto aos locais mais interioranos dos estados nacionais, ao passo que traz a insegurança aos contratantes espalhados pelo Brasil, por lhes colocar sob a potencialidade de ter seus imbróglios judiciais relacionados ao direito empresarial decididos de maneira não especializada, retirando completamente sua escolha por comarcas que melhor atendam as especificidades do negócio entabulado.

Ressalta-se que, caso o local relacionado com o negócio jurídico e com o domicílio e residência das partes seja abrangido pela atuação das varas especializadas, tratar-se-á de competência absoluta em razão da matéria (artigo 62 do CPC), resolvendo qualquer questionamento sobre o problema aqui tratado, ao passo que, mesmo que as partes convencionem foro diverso e permitido pelo artigo 63, §1º, do CPC, o processo deverá ser remetido à vara especializada.

Entretanto, nem todas as regiões do Brasil possuem essa condição, como mencionado. Para quem se encontra nessa situação, caso seja definido foro de eleição em desrespeito ao artigo 63, §1º, do CPC, quando utilizado, terá sua cláusula declarada ineficaz.

Assim, pela nova redação do referido artigo, caberá tanto ao juiz quanto à parte contrária alegar incompetência do Juízo, que, desde logo, indicará a incompetência para julgamento, remetendo os autos ao juízo especializado (artigo 62 do CPC) ou para o foro de domicílio do réu (artigo 63, §§1º, 3º e 5º, do CPC), que, se nada disser, tornar-se-á foro prevento (artigo 65 do CPC).

Dito isso, certamente surgirá a indagação de “como ficam os contratos que já estão em desconformidade com a norma?” Assunto que deve ser tratado.

Aplicabilidade da norma aos contratos preexistentes

Tempus regit actum. Esse é um brocardo em latim muito conhecido no meio jurídico. E é exatamente ele que responde como ficam os contratos preexistentes, ao passo que, nos termos do artigo 14 do CPC:

Art. 14. A norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada.

Neste viés, as decisões judiciais já começaram a se adequar à nova realidade legislativa. Recentemente o Tribunal de Justiça de São Paulo assim proferiu decisões:

O ajuizamento de ação em juízo aleatório, sem vinculação com o domicílio ou a residência das partes ou ainda que com o negócio jurídico objeto do processo, representa prática abusiva que autoriza a declinação de competência de ofício. Art. 63, §3º, do Código de Processo Civil. [4]

Ineficácia da cláusula de eleição de foro. Reconhecimento de ofício. Possibilidade. Ausência de pertinência entre o foro de eleição e o negócio jurídico, seja pelo local da negociação, seja pelo domicílio dos devedores. Não fazia sentido a propositura da ação em São Paulo, ainda mais em tempos de processo eletrônico e sem qualquer dificuldade para acesso ou acompanhamento, mormente para grandes instituições financeiras. Inovação da lei processual que permite uma equalização da distribuição do serviço judiciário nacional, adequando-se as discussões processuais aos negócios praticados. [5]

Portanto, vê-se que o TJ-SP tem entendido pela nulidade da cláusula de eleição de foro que desrespeite o artigo 63, §1º, do CPC, sendo primordial, desta maneira, antes da propositura de novas ações judiciais, verificar e respeitar a nova redação do artigo de lei.

Dicas práticas para segurança jurídica na elaboração de contratos societários considerando-se o artigo 63, §1º, do CPC

Portanto, por se tratar de uma alteração legislativa recente, a jurisprudência ainda se encontra em formação, devendo sofrer grandes movimentações até se consolidar. Quanto aos contratos societários, considerados paritários por natureza, pairam ainda grandes dúvidas sobre qual será o impacto final que as restrições ao foro de eleição trarão.

Assim, enquanto a consolidação jurisprudencial acerca do real alcance da nova regra de restrição ao foro de eleição quanto aos contratos paritários não ocorre, algumas dicas práticas podem auxiliar no intuito de assegurar às partes contratantes relativa segurança jurídica quando escolherem um foro especializado para julgar quaisquer disputas referentes ao contrato.

Aqui destacamos duas alternativas interessantes a serem utilizadas pelos contratantes:

Cláusula de Domicílio convencional: Adotar de forma clara e específica a escolha pelo chamado “domicílio convencional” no contrato. O permissivo legal da escolha pelo “domicílio convencional” está previsto no artigo 78 do Código Civil, que faculta às partes o seguinte: “nos contratos escritos, poderão os contratantes especificar domicílio onde se exercitem e cumpram os direitos e obrigações deles resultantes”.

Entretanto, é recomendável deixar claras as razões que levaram as partes a escolherem aquele domicílio para os fins de cumprimento das obrigações daquele contrato, de forma detalhada, o que permitirá maior garantia de que aquela escolha poderá prevalecer.

Sendo assim, combinando-se o disposto pelo artigo 78 do Código Civil, com a previsão trazida pelo artigo 3º, VIII da Lei nº 13.874/19 (Lei da Liberdade Econômica), que prevê que os “…negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado…”, acredita-se que a discussão sobre sua validade teria fortes elementos de defesa, o que não mais ocorre quanto à simples opção por um foro de eleição alheio ao domicílio das partes.

Cláusula de arbitragem: A regra do artigo 63, §1º do Código de Processo Civil abrange apenas a eleição de foro judicial, portanto, na elaboração de um contrato societário, a escolha pelo foro arbitral ainda permanece segura, seja pela possibilidade de se ter uma decisão mais técnica e especializada, seja pela garantia de que a escolha pela Câmara Arbitral prevalecerá.

Embora as alternativas apresentadas sejam boas opções para aqueles contratantes que fazem questão de elegerem um foro judicial especializado para decisões sobre quaisquer questões envolvendo seus contratos, devem ser utilizadas com as devidas precauções e desde que indicadas ao caso de cada contratante, com as ressalvas de que caberá ao próprio Poder Judiciário validá-las. Contudo, ao serem utilizadas de maneira adequada, referidas alternativas trazem considerável probabilidade de que a autonomia da vontade das partes prevaleça.

Conclusão

Em suma, a liberdade contratual foi restringida pela alteração legislativa ora em análise, passando a proibir a definição do foro de eleição discricionariamente, exigindo, a partir de então, relação com as partes ou com o negócio jurídico, sob pena de sua desconsideração.

Isso tem impacto direto no fomento do Estado ao ambiente nacional de negócios e desenvolvimento da economia, ao passo que causa aos contratantes a limitação da busca por locais que abrigam julgadores especializados para análise de seus eventuais litígios, deixando suas pactuações sob potencial análise de varas comuns e abarrotadas de ações de diversas naturezas, não se tratando, portanto, de ambiente de segurança e propício ao desenvolvimento econômico e social brasileiro, tratando-se de modificação prejudicial à atividade econômica.

 


[1] BRASIL. PL 1803/2023, transformada na Le Ordinária 14879/2024. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2355765. Acesso em: 28/07/2024.

[2] CNJ. Recomendação nº 56 de 22 de outubro de 2019. Funcionamento dos Órgãos Judiciais. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3068. Acesso em: 14/08/2024.

[3] TJSP. Estado de São Paulo tem varas empresariais em todo seu território nacional. Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=95356&pagina=8. Acesso em: 14/08/2024.

[4] TJSP, AI 2074515-35.2024.8.26.0000. 18ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Hélio Faria, Julgamento: 16/07/2024.

[5] TJSP, AI 2208689-78.2024.8.26.0000, 12ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Alexandre David Malfatti, Julgamento: 19/07/2024

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  • é advogado no escritório Pádua Faria Sociedade de Advogados, especialista em Direito Processual Civil pela USP e em Direito da Família e Sucessão pelo Cer e LL.M. em Direito Societário pelo INSPER.

  • é advogado no escritório Pádua Faria Advogados, graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Franca, pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet, LLC em Direito Empresarial pelo Insper e mestre em Direito pela Unesp.

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